“Me conta tudo, para que eu,
Mais rápido do que um pensamento de amor,
Voe para a vingança”(Shakespeare, Hamlet, Cena V, Ato I)
A palavra Vingança é derivada do francês antigo vengier e revancher, e do latim revindicare que provém de vindicare (Weekley, 1952). A sua definição nos principais dicionários inclui frases como:
Vingar por meio de retaliação em espécie ou grau
Infligir ferimentos em troca de um insulto
Uma oportunidade para obter satisfação.
Uma implicação inequívoca da vingança são os seus aspectos ideativos, emocionais e comportamentais. Na esfera ideacional, a vingança é acompanhada por fantasias de ter sido gravemente ferido por alguém e de encontrar alívio ao retaliar o perpetrador. Na esfera emocional, a vingança é acompanhada por sentimentos de amargura, ódio, exaltação defensiva e proteção da honra; a pessoa vingativa costuma ficar eufórica quando do planejamento da vingança. No aspecto comportamental, as manifestações comuns da vingança incluem agressões verbais e físicas em vários graus, desde sarcasmo e difamação até acometimentos físicos grosseiros ou graves de diversos tipos. Contudo, até as ações mais grosseiras não esgotam as manifestações comportamentais da vingança (Akhtar & Parens, 2015).
VINGANÇA – A RETALIAÇÃO ERRA O FOCO
Os fenômenos associados à vingança são complexos em muitos aspectos. Em primeiro lugar, os atos de vingança nem sempre são dirigidos ao indivíduo ou à instituição que se aventa ter causado o dano ou o trauma. Frequentemente, a raiva que emana do sentimento de mágoa, ressentimento ou ódio é dirigida a objetos que simbolicamente representam o provocador ou aqueles que são mais fracos e vulneráveis, mas relacionados com o provocador; portanto, o erro do foco é comum e ainda mais prejudicial para a vítima da injustiça primeva. Em segundo lugar, a ruminação vingativa pode provocar a autoanulação crônica, o isolamento social, a autoprivação, a autodepreciação, a automutilação, a hetero e a autodestruição.
VINGANÇA: AÇÃO E TRAÇO
A vingança é uma resposta muito humana ao sentimento de raiva ou ódio. Porém, não é apenas uma reação imediata ou minuciosamente planejada contra o provocador de uma conduta afrontosa. Existem pessoas com tendências vingativas fortes, as quais constituem traços da própria personalidade, o que as torna de forma perene irascíveis, egoístas, sádicas e prepotentes.
Analiticamente, a vingança, em personagens neuróticos, pode se tornar um modo de vida. Os seus objetivos são então humilhar, explorar e frustrar os outros. Os seus meios podem ser variados e incluem a indução de culpa e inferioridade nos outros, ingratidão, indiferença e ataques às características e habilidades de terceiros. Horney (1948) descreveu três formas de vingança:
A vingança abertamente agressiva que está associada ao orgulho ferido, ao próprio senso de justiça
A vingança que opera secretamente “em favor” da sociedade. O vingador observa as inclinações dos outros em relação ao cumprimento do que é “justo”, ou seja, a vingança deste tipo evoca a impressão intrigante de ser feita às custas de uma vingança em nome da sociedade, da “limpeza social” etc. Aqui, a raiva e/ou o comportamento descontrolado, por assim dizer, é voluntário; é ligado e desligado pelo indivíduo que deseja utilizá-lo como um dispositivo para cometer atos violentos e justificá-los. Atos de vingança surgem de um sentimento elementar de injustiça, um sentimento primitivo de que alguém foi arbitrariamente submetido a um poder tirânico contra o qual se é impotente para agir (Stevens, 2001).
A vingança desapegada, mas entranhada que expressa hostilidade com os outros “ao não ouvir, ao desconsiderar as necessidades alheias, ao esquecer os seus desejos, ao fazê-los sentir-se como intrusos perturbadores, ao negar elogios ou afeto, e ao afastar-se psiquicamente ou socialmente” (Horney, 1948).
VINGANÇA: NÃO APENAS UM CONSTRUTO NEGATIVO
Horney (1948) enfatizou ainda que a vingança, embora tenha intenções destrutivas, também, para poucas pessoas, pode desempenhar funções positivas para o provocado ou o lesado. Estas incluem o seu poder protetor contra a hostilidade real e/ou imaginária de outros, o seu objetivo defensivo contra a autodestruição e a sua promessa de restaurar o orgulho ferido. A necessidade de um triunfo vingativo surge de muitas fontes, sendo a principal variável uma pressão interna para reverter a negligência ou as humilhações abertamente cruéis experimentadas nas mãos de outros. A sensação de vitalidade e até mesmo de transformação pessoal proporcionada pelos atos da vingança triunfante, de uma maneira saudável, pode contrariar o sentimento de inferioridade e de vergonha, dentro de um saboreio pessoal vingativo. Por exemplo, o ofendido passa a levar uma vida melhor, adquire um outro emprego, passa a escrever livros, textos, papers etc.
Na verdade, existe uma variação no grau de vingança ou do tipo de vingança que a parte lesada persegue. Em muitos casos, o ofendido persegue com tal brutalidade que excede a maioria das suas outras conquistas; o objetivo é a destruição do agressor e a inclusão de espectadores que podem nem ter concordado ou feito parte da ofensa original. A identificação no grupo é suficiente para punir os erros dos outros. O objetivo final é a erradicação e a destruição. Em outros casos, a vingança ocorre, mas é transformadora e reconstrutiva para o bem social, sem desestabilizar quaisquer pessoas ou torná-las fracas ou expostas. Neste último caso, busca-se a vingança ideológica (ao que eu chamo de vingança triunfante) pelos danos e humilhações pessoais com o objetivo da melhoria de si próprio. Embora o ofendido seja bastante capaz de realizar um ataque mais brutal e vingativo ao causador do dano, ele obtém a recompensa através da crença de que a melhor vingança deve ser projetada para servir a si mesmo sem destruição de outrem.
A RAIVA COMO PROPULSORA DA VINGANÇA
A antipatia expressa uma oposição parcial ou total de natureza emocional entre duas ou mais pessoas. Pode ser a fase que antecede o ódio. Segundo Altavilla (1954), o ódio é um construto psicológico complexo, porque é composto de tendências tanto à repulsa quanto à destruição.
Algumas características arquiteturais desse construto podem ser apontadas:
O ódio pode ser dirigido contra uma ou mais pessoas, de forma obsessiva
Não é necessário que a pessoa-alvo seja a autora de um erro de fato, para que o ódio faça sentido
Uma pessoa pode odiar alguém simplesmente porque esse alguém tem mais sorte, mais presença, mais dinheiro, mais amigos
O ódio não precisa de uma emoção inicial, de um choque; pode formar-se lentamente, como uma intoxicação
Não é necessária uma repetição de estímulos, porque o ódio não deriva necessariamente de uma recorrência de estados de raiva que criam uma cronicidade. Todavia, para despertá-lo, basta uma única ofensa, a qual inicia uma reação sistematizada
O ódio causado por uma ofensa real ou mesmo presumida tem grande importância, porque alimenta uma vingança que se segue cronologicamente
O ódio pode gerar uma necessidade interna por vingança
A sensação de injustiça dá um propósito à vingança: fazer alguém sofrer é o deleite do vingador
A explosão final tem características de uma libertação para o vingador, como acontece nos fenômenos obsessivos (Altavilla, 1954).
A antipatia, o ódio e a vingança devem ser sempre vislumbrados dentro de um determinado contexto e nunca isoladamente. Contrariamente ao estado emocional do ofendido durante o planejamento da vingança, na concretização dela o estado emocional de inquietação do vingador pode diminuir e então um prélio de natureza vingativa é cometido em um estado de tranquilidade, o que pode revelar a sua adesão à personalidade de seu autor.
A vingança é uma tendência humana presente em todos nós em graus variados. O desafio não é tão somente “desafiar” o ofensor mas seguramente a reconstrução saudável e feliz do lesado.
Referências Akhtar, S., & Parens, A. (2015). Revenge: Narcissistic Injury, Rage, and Retaliation. Toronto: Jason Aronson. Altavilla, E. (1954). Il Delinquente e la Legge Penale. Napoli: Morano Editore. Horney, K. (1948). The value of vindictiveness. American Journal of Psychoanalysis, 8(3-12.). Stevens, D. J. (2001). Inside the Mind of Sexual Offenders: Predatory Rapists, Pedophiles, and Criminal Profiles. New York: Authors Choice Press. Weekley, E. (1952). A Concise Etymological Dictionary of Modern English. London: Secker & Warburg.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.