O eminente psiquiatra alemão, Richard von Kraft-Ebing, descreve na sua obra seminal Psychopathia Sexualis, caso 97, a seguinte situação (von Kraft-Ebing, 1886):
“L., trabalhador, foi preso porque havia cortado um grande pedaço de pele do antebraço esquerdo com uma tesoura em um parque público. Ele confessou que há muito tempo desejava comer a pele branca e fina de uma donzela, e que, para esse fim, estivera à espreita de uma vítima; mas, como não teve sucesso, desistiu do seu propósito e, em vez disso, cortou a própria pele. Seu pai era epiléptico e sua irmã tinha deficiência intelectual. Até os dezessete anos, L. sofria de enurese noturna, era temido por todos por causa de sua natureza áspera e irascível, e foi dispensado da escola por causa de sua insubordinação e crueldade. Ele começou o onanismo em tenra idade e lia textos com conteúdos religiosos. Seu caráter mostrava traços de superstição, propensão ao místico e atos vistosos de devoção. Aos treze anos, sua anomalia lasciva acordou ao ver uma bela jovem que tinha uma pele branca. O impulso de morder/cortar um pedaço daquela pele e comê-la tornou-se primordial para ele. Nenhuma outra parte do corpo feminino o excitava. Ele nunca teve nenhum desejo de relações sexuais e nunca tentou isso. Ele esperava alcançar seu fim mais facilmente com a ajuda de uma tesoura ou mesmo com os dentes, razão pela qual sempre carregava uma tesoura com ele por anos. Em várias ocasiões, seus esforços foram quase bem-sucedidos. Desde o ano anterior, ele achou mais difícil suportar seus fracassos por mais tempo, quando decidiu por um substituto, a saber, cada vez que perseguia sem sucesso uma garota, ele cortava um pedaço de pele de seu próprio braço, coxa ou abdômen e… comia. Imaginando que era um pedaço da pele da rapariga, ele se masturbava e obtinha ejaculação e orgasmo, enquanto comia. Muitas feridas extensas e profundas além de numerosas cicatrizes foram encontradas em seu corpo...”
Afora este clássico caso médico descrito nos gêneros textuais médico-psiquiátricos, alguns outros casos caracterizados por fantasias, atividades e/ou pensamentos sexuais recorrentes envolvendo a ingestão de corpos vivos ou partes deles também têm sido relatados tanto nos gêneros literários quantos nos jornalísticos e textuais médicos. Há duas décadas, um caso de grande divulgação midiática de um homem alemão que havia combinado, através da Internet, com um parceiro sexual de ter corpo deste devorado ganhou manchete nos principais jornais do mundo todo. Armin Meiwes filmou a si próprio matando, tirando as vísceras e cortando em pedaços o engenheiro de computação Bernd Brandes, de 42 anos, o qual Meiwes havia conhecido através de mensagens postadas em salas de bate-papo, procurando “homem para massacre“.
Em entrevista para o jornal Der Spiegel, Meiwes, servindo pena de prisão perpétua por matar e comer um homem que “implorou” para ser devorado, explicou como a carne humana tinha sabor de carne de porco meio amarga, e como preparou uma requintada refeição – filé com molho de pimentão verde, croquetes e couve de Bruxelas.
Aqui é importante lembrar que Meiwes cortou o pênis de Brandes e ambos, VIVOS, tentaram comer o pênis decepado. Depois disso, Meiwes acabou matando Brandes e devorando-o por inteiro e aos poucos…
Quando lemos os casos acima, imediatamente pensamos em Canibalismo; inclusive, a mídia usualmente os apelida de canibais. Por exemplo, Meiwes é conhecido como o “Canibal de Rotenburg”.
Apesar disso, os casos descritos acima consistem de fato em formas de Canibalismo per si? Canibalismo é o ato de ingerir corpos humanos (ou partes dele) vivos ou já mortos, com intenções e/ou motivações variadas.
De acordo com estudos antropológicos, existem duas formas distintas de canibalismo: aqueles que consomem os cadáveres dos seus companheiros em funerais ou mesmo para situações extremas de sobrevivência, e aqueles que comem a carne de inimigos estrangeiros durante tempos de guerra. Essas duas formas de comer carne humana parecem ser bastante distintas uma da outra, ou seja, os cadáveres dos inimigos são canibalizados por razões bélicas; já os cadáveres dos membros da mesma tribo ou de tribos amigas (irmãs) são devorados por razões de compaixão, espirituais ou mesmo de sobrevivência. A questão da “sobrevivência” poderia não apenas ocorrer no chamado endocanibalismo, mas também no exocanibalismo; porém, a intenção aqui é obter alimento para evitar o próprio desfalecimento.
No endocanibalismo, a maneira como os praticantes assam e/ou consomem os seus próprios mortos transmite “honra e respeito” pela pessoa que está sendo comida. Já a maneira como os praticantes do exocanibalismo manuseiam e comem os cadáveres inimigos marca explicitamente o inimigo como uma não-pessoa, ou seja, um objeto, expressando hostilidade e ódio (Conklin, 2001).
De fato, o canibalismo de guerra e o canibalismo funerário transmitem e evocam significados e emoções muito diferentes. No endocanibalismo, há o respeito pelos parentes e amigos; no exocanibalismo, é como enterrar o lixo.
Didaticamente falando, exocanibalismo significa comer estranhos – isto é, inimigos ou outros seres humanos que não são membros do seu próprio grupo social, enquanto endocanibalismo significa comer pessoas de dentro, membros da própria comunidade social ou grupo.
Como o endocanibalismo geralmente ocorre durante funerais ou outros rituais mortuários, é comumente chamado de canibalismo mortuário ou funerário.
As literaturas etnográfica e histórica contêm muito mais material sobre exocanibalismo, como os famosos relatos do século XVI da execução ritual e consumo de cativos de guerra entre os índios da tribo Tupinambá do litoral do Brasil e os astecas do México central. Pode ser que o exocanibalismo seja (ou era) mais comum do que o endocanibalismo, pelo menos nos últimos séculos. Por alguma razão e em linha com informações sobre mortuários, o canibalismo é bastante limitado e é improvável que tenhamos muito mais hoje, já que quase todos os povos que o praticavam deixaram de fazê-lo, deixando poucos indivíduos capazes ou dispostos a falar sobre suas próprias experiências com as pessoas comendo seres humanos.
Dito isso, no Canibalismo per si, não há excitação sexual ou gratificação erótica. Apesar do ódio e da vingança, temas analíticos comuns usados nos estudos das Perversões Sexuais, aqueles que praticam o exocanibalismo ou o endocanibalismo não reportam sensações sexuoeróticas no momento da ingestão de outros seres humanos, sejam vivos ou já mortos.
Bom, e sobre aqueles que ingerem partes de corpos vivos com a intenção de satisfazer a lascívia ou a concupiscência? E sobre o que os dois casos relatados no início deste artigo versam? Se não se trata de um Canibalismo per si, do que se trata?
É certo que não se trata de Necrofilia, visto que são corpos vivos e não mortos.
Vejamos: os indivíduos devoram partes do corpo vivo com concupiscência, prazer sexual, obtendo ereção e, às vezes, chegando à ejaculação com orgasmo. Nestes dois casos (descritos no início desse artigo), estamos nos reportando a uma Parafilia, ou seja, fantasias, atividades e/ou pensamentos sexuais recorrentes envolvendo a ingestão de corpos de pessoas vivas (ou partes dos corpos vivos).
Autores têm denominado este tipo de Parafilia de Vorarefilia (Vorare, do latim, DEVORAR), ou seja, indivíduos que são sexualmente excitados:
- Pela ideia de serem comidos ou comer corpos vivos
- Por comer uma outra pessoa e/ou ser comido por ela
- Pela observação desse processo para a satisfação da lascívia.
Outros casos também aparentemente relacionados à Vorarefilia têm sido descritos nos gêneros textuais médicos. Um deles, conforme descrito por Gates (2000), era um empresário viajante que contratava regularmente uma prostituta dominatrix para encontrá-lo em seu quarto de hotel com a finalidade de “cozinhá-lo”. Ele projetava uma espécie de um “forno” a partir de uma caixa de papelão, incluindo botões rudimentares e uma porta que poderia ser aberta e/ou fechada. Ele se deitava nesta caixa, de costas, vestindo apenas meias, enquanto a dominatrix detalhava verbalmente todo o processo do cozimento do seu corpo bem como da forma em que ele seria comido por ela. O homem ficava tão excitado com esta fantasia e role-playing que era capaz de atingir o orgasmo sem qualquer estimulação física em seu pênis (Gates, 2000). Um outro, também descrito por Gates (2000), fantasiava sexualmente e recorrentemente em ser cozido e comido por uma “bruxa”, ao estilo da história de João e Maria…
Engraçado? Eu não consigo achar…
Existem sites que atendem indivíduos com interesses Vorarefílicos (www.vore.net, www.mindlessconsumption.com). Estes sites podem sugerir uma variedade de conteúdos fantasiosos e imaginários sexuais. Os personagens dessas sugestões escritas são muito variados, até mesmo para maquiar o objetivo lascivo. Às vezes, os personagens são humanos; outras vezes, os personagens principais são antropomórficos (como lobos ou gatos que andam eretos e falam), às vezes são criaturas fictícias (como dragões) ou cobras enormes que engolem facilmente suas vítimas inteiras (Lykins & Cantor, 2014).
Aqueles que fantasiam intensamente e recorrentemente em serem devorados (no sentido literal da palavra) podem também ser categorizados como masoquistas. Dentro desse raciocínio, esses indivíduos que ainda apenas fantasiam sexualmente ser vítimas de Vorarefílicos podem:
- Estar agindo como uma forma de transformar a sua própria identidade, o que normalmente resultaria em perda da dignidade e da integridade do Eu
- Estar buscando a própria degradação, a perda do status e a humilhação
- Estar desejando fundir-se com pessoas consideradas poderosas, sádicas, dominadoras (Baumeister, 1990; Baumeister & Campbell, 1999).
Os Vorarefílicos ativos, os seja, os que fantasiam devorar uma pessoa viva (ou que assim o fazem) podem se assimilar aos sádicos sexuais e até mesmo aos Erotofonofílicos (indivíduos que têm fantasias extremamente violentas e normalmente matam as suas vítimas durante o sexo e/ou mutilam os órgãos sexuais das suas vítimas. No entanto, aqui, a mutilação usualmente ocorre após a morte da vítima).
Não sou avesso às filigranas acadêmicas, visto que alguns pequenos detalhes podem fazer uma enorme diferença na concepção do problema, na condução de uma entrevista médica, na avaliação do risco ou da periculosidade e mesmo no processo de tratamento (se for o caso).
Há autores que preferem denominar o fenômeno da excitação sexual proveniente das fantasias e/ou práticas sexuais em devorar carne humana viva de Canibalismo Sexual. Eu não considero um erro; porém, prefiro separar o conceito de Canibalismo do conceito de Parafilia, por uma questão antropológica e mesmo histórica.
Referências Baumeister, R. F. (1990). Suicide as escape from self. Psychol Rev, 97(1), 90-113. Baumeister, R. F., & Campbell, W. K. (1999). The intrinsic appeal of evil: sadism, sensational thrills, and threatened egotism. Pers Soc Psychol Rev, 3(3), 210-221. Conklin, B. A. (2001). Consuming Grief. Compassionate Cannibalism in an Amazonian Society. Austin: University of Texas Press. Gates, K. (2000). Deviant desires: Incredibly strange sex. New York: Juno Books Press. Lykins, A. D., & Cantor, J. M. (2014). Vorarephilia: a case study in masochism and erotic consumption. Arch Sex Behav, 43(1), 181-186. von Kraft-Ebing, R. (1886). Psychopathia Sexualis with special reference to the Antipathic Sexual Instinct: A Medico-Forensic Study. New York: Rebman Company.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.