O termo canibal, definido como comer a sua própria espécie, é um legado do encontro do genovês Cristóvão Colombo em 1492 com os caribenhos das Antilhas, que se dizia serem consumidores de carne humana. Etimologicamente, esse termo é derivado do espanhol (Caríbales ou Caníbales) para os Carib, uma tribo das ilhas do Caribe.
Apesar de ser um termo originário após da “descoberta” da América, trata-se de um costume generalizado que remonta ao início da história humana. Estudos que documentam a prática do canibalismo entre não-humanos, identificados em mais de 1.500 espécies, levaram à distinção entre canibalismo humano e não-humano (Polis, 1981). O termo antropofagia (do grego, “comer homens”), é mantido para se referir ao consumo de humanos por outros humanos. Dito isso, o termo canibalismo é usado para descrever a prática humana e não humana (White, 2001).
O canibalismo representa um comportamento tabu para muitas sociedades ocidentais, algo a ser relegado às outras culturas, a outros tempos e a outros lugares. Novas pesquisas arqueológicas forneceram evidências de que muito antes da invenção dos metais, antes da construção das pirâmides do Egito, antes das origens da agricultura e antes da explosão da arte rupestre paleolítica, o canibalismo já podia ser encontrado entre muitas pessoas diferentes, bem como entre muitos dos nossos antepassados.
O canibal também foi objeto de fascínio na literatura antiga registrada por historiadores, teólogos e filósofos, e depois nos relatos de exploradores, mercadores e embaixadores durante a Era da Exploração da Europa. Pejorativamente, pessoas que habitavam terras distantes da dita “civilização” eram frequentemente retratadas como canibais: isto é, como estranhas criaturas semelhantes aos animais, dada a “ferocidade” atribuída aos ditos canibais. No século XX, os antropólogos descreveram o canibalismo como outro exemplo das muitas formas do comportamento humano, respondendo à questão dos motivos e significados de comer seres da mesma espécie. Algumas pessoas comeram os corpos de inimigos mortos durante a guerra, e algumas mataram e comeram feiticeiros que acreditavam ter lhes trazido morte e infortúnio. Outros consumiram os corpos de parentes falecidos em cerimônias mortuárias, expressando amor e tristeza por aqueles que perderam, um sentimento que nos une como seres humanos. A diversidade do canibalismo como prática, e dos contextos em que ocorreu, é evidente nas três regiões do mundo onde a prática recebeu mais atenção, nomeadamente Papua Nova Guiné, América do Sul e África.
Uma nova abordagem ao canibalismo estendeu o significado do termo de ingerir outros para considerar os outros como alimento para o corpo, a mente e a alma. Esta noção mais ampla de canibalismo transmite uma compreensão muito mais ampla e sensível da natureza das relações humanas (Nyamnjoh, 2018.).
Embora antigamente considerado um fenômeno raro e “anormal”, pesquisadores têm demonstrado que o canibalismo já foi uma prática não tão incomum entre os nossos antepassados. Relatos etnográficos de canibalismo normalmente vêm de evidências antropológicas de mutilação esquelética, como vértebras perdidas e esmagadas, abrasões e restos de ossos humanos cozidos.
Pesquisadores também demonstraram que a ocorrência do canibalismo em sociedades humanas passadas pode ter sido uma rota de transmissão de doenças. Por exemplo, uma doença rara chamada Kuru foi encontrada entre quatro pessoas em Papua Nova Guiné como resultado da canibalização de um grupo de pessoas já mortas, como parte de um ritual fúnebre. Kuru é uma forma de encefalopatia espongiforme causada pela transmissão de príons, o que leva a sintomas como tremores e perda de coordenação motora devido à neuro-degeneração (Lindenbaum, 2008).
Embora diversas formas de canibalismo têm sido reconhecidas, a maioria dos antropólogos concorda com a classificação de três principais tipos de canibalismo:
- O canibalismo ritual
- O canibalismo para sobrevivência
- O canibalismo patológico (Lindenbaum, 2009).
O canibalismo ritual envolve a ingestão de seres humanos por grupos tribais por causa de um sistema de crenças. O canibalismo ritual pode envolver consumir a carne de pessoas de fora do grupo social após um ataque a aldeias vizinhas ou tribos, ou mesmo o consumo de membros do próprio grupo como parte de uma cerimônia fúnebre após a morte.
Por exemplo, a tribo Wari’, no oeste do Brasil, canibalizava os seus companheiros e membros da tribo depois de terem falecido, uma vez que os membros da tribo acreditavam que o consumo de um membro falecido do grupo transferiria o espírito do morto para os corpos dos vivos (Conklin, 2001). Um membro da tribo Wari’ assim explicou sobre o canibalismo mortuário (endocanibalismo): ‘‘Não sei se você consegue entender isso, porque você nunca teve um filho que morreu. Mas para um pai, quando seu filho morre, é uma coisa triste colocar seu corpo na terra. Está frio na terra… Continuamos nos lembrando de nosso filho, deitado ali, com frio e ficamos tristes. Era melhor antigamente, quando os amigos comiam o corpo. Então nós não ficaríamos pensando muito no corpo do nosso filho. Não ficaríamos tão tristes” (Conklin, 2001).
O canibalismo de sobrevivência já foi cometido por indivíduos que acreditavam não ter uma outra opção para a própria supervivência que não a ingestão de corpos de outros humanos. Usualmente, essas pessoas seriam avessas à ideia. Todavia, em situações de fome, cercos militares ou naufrágios, essas pessoas abririam uma exceção.
Assim, o canibalismo de sobrevivência pode ser entendido como o instinto humano fundamental para sobreviver de qualquer maneira. Um exemplo famoso desta forma de canibalismo foi a queda do avião da seleção uruguaia de rugby nos Andes em 1972. Os sobreviventes admitiram ter ingerido a carne daqueles que haviam falecido durante a queda e/ou ao longo da espera por um resgate. O consumo de carne humana também foi documentado na França, China e Camboja durante períodos de fome (Becker, 1998).
Finalmente, o canibalismo patológico é raro e envolve um indivíduo consumindo voluntariamente a carne, partes do corpo e/ou órgãos de outro ser humano. Casos de canibalismo patológico atraem muito a atenção da mídia e são fortemente condenados pela sociedade. Casos famosos incluem o de Fritz Haarmann, que foi condenado por matar e vender partes do corpo de 24 meninos como comida (Pfäfflin, 2008). O modus operandi de Haarmann consistia em ir à estação de autocarros de Hannover, onde havia dezenas de garotos esperando trabalho. Ali, Haarmann enganava-os prometendo trabalho e comida. Levava-os, um a um, a um sótão que tinha no bairro de Calenberger Neustadt, violando-os sexualmente e, com os seus próprios dentes, destroçava a carótida e a traqueia dos jovens. Além disso, Haarmann descarnava suas vítimas e vendia suas peças de carne assegurando que eram de porco ou de cavalo.
Assassinos em série que praticam canibalismo dos corpos de suas vítimas são por vezes classificados como canibais patológicos.
Apesar da prática histórica do canibalismo entre as civilizações humanas, nos dias modernos o canibalismo ainda não é bem compreendido (Petreca, Brucato, Burgess, Flores, & Leary, 2022; Petreca, Burgess, Stone, & Brucato, 2020). Dada a sua atual rara ocorrência, há pouca compreensão empírica do porquê um indivíduo pode se envolver em canibalismo.
Contudo, parece que assassinos seriais que se envolveram em canibalismo mostram algumas diferenças comportamentais em comparação com aqueles que não se envolveram em canibalismo. Aqueles que se envolveram em canibalismo normalmente cresceram em ambientes adversos, muitas vezes enfrentando abuso físico, suicídios de membros da família, problemas psiquiátricos, doença da mãe e assim por diante. O canibalismo também foi associado à existência de doenças psiquiátricas, incluindo internações psiquiátricas prévias.
Referências Becker, J. (1998). Hungry ghosts: Mao’ s secret famine. New York: MacMillan Publishers. Conklin, B. A. (2001). Consuming Grief. Compassionate Cannibalism in an Amazonian Society. Austin: University of Texas Press. Lindenbaum, S. (2008). Review. Understanding kuru: the contribution of anthropology and medicine. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci, 363(1510), 3715-3720. Lindenbaum, S. (2009). Cannibalism, kuru and anthropology. Folia Neuropathol, 47(2), 138-144. Nyamnjoh, F. B. (2018.). Eating and Being Eaten. Bamenda: Langaa Research & Publishing Common Initiative Group. Petreca, V. G., Brucato, G., Burgess, A. W., Flores, J., & Leary, T. (2022). Female murderers who mutilate or dismember their victims: An exploration of patterns and sex differences. J Forensic Sci, 67(6), 2376-2386. Petreca, V. G., Burgess, A. W., Stone, M. H., & Brucato, G. (2020). Dismemberment and Mutilation: A Data-Driven Exploration of Patterns, Motives, and Styles. J Forensic Sci, 65(3), 888-896. Pfäfflin, F. (2008). Good enough to eat. Arch Sex Behav, 37(2), 286-293. Polis, G. A. (1981). The evolution and dynamics of intraspecific predation. Annual Review of Ecology and Systematics, 12, 225-251. White, T. D. (2001). Once were CANNIBALS. Scientific American., 2856(2), 58-65.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.