O GHB, ou Ácido Gama Hidroxibutírico (C4H8O3), seja em um passado recente ou mesmo correntemente, tem servido para seis propósitos nem sempre benéficos:
- Foi utilizado como um anestésico na década de 60 e parece que ainda o é em alguns locais ao redor do mundo
- Trata-se de uma droga ilícita estupefaciente, depressora do Sistema Nervoso Central, desde a década de 70 até o presente momento
- Tem sido usada como uma das chamadas “Droga do Estupro”, usualmente colocada em bebidas de vítimas inocentes e desatentas
- Já foi usada abundantemente como substância termogênica por bodybuilders nas décadas de 80 e 90; todavia, o uso do GHB para fins de desempenho físico não foi ainda abandonado (Giorgetti, Busardò, & Giorgetti, 2022)
- É uma substância aprovada (trade name: Xyrem®) pelo FDA (Food and Drug Administration) no ano de 2017, com indicações precisas para o tratamento da Hipersonia Idiopática, Narcolepsia e Narcolepsia com Cataplexia
- É uma substância que tem sido utilizada em alguns países da Europa para o tratamento da Síndrome de Dependência de Álcool (inclusive da Síndrome de Abstinência) (Caputo et al., 2016).
Dado o caráter minimamente duplo da droga, ou seja, a de uma substância psicoativa com alto potencial de abuso versus o de uma substância aprovada para usos clínicos específicos, a prescrição dessa substância para as indicações médicas apontadas tem sido altamente regulamentada nos Estados Unidos da América.
Os nossos cérebros normalmente produzem pequenas quantidades de GHB (produção endógena). No cérebro, o GABA (Ácido Gama-Aminobutírico), principal neurotransmissor inibitório central, é transformado em Ácido Succínico Semialdeído através da atuação da enzima GABA transaminase. O GHB, por sua vez, é o produto da conversão deste metabólito do GABA, ou seja, do Ácido Succínico Semialdeído, o que ocorre devido à ação da enzima GHB redutase (Felmlee, Morse, & Morris, 2021). GABA e GHB usualmente localizam-se em terminais nervosos inibitórios.
O papel fisiológico preciso do GHB endógeno, ou seja, do GHB produzido pelo próprio cérebro, ainda não está claro. Os locais específicos de ligação de alta afinidade foram encontrados no hipocampo, córtex pré-frontal e tálamo. Receptores seletivos de GHB têm sido isolados e os efeitos comportamentais da ativação desses receptores seletivos de GHB ainda precisam ser elucidados. A ativação dos receptores neuronais de GHB no córtex pré-frontal é bloqueada apenas pela administração de antagonistas seletivos do receptor de GHB (NCS-382, ainda sob investigação para desenvolvimento clínico) e não pelos antagonistas de GABA (Ciraulo & Knapp, 2011).
De uma forma geral, o GHB também atua como um agonista parcial nos receptores GABAb. Concentrações muito baixas de GHB já são suficientes para ativar esses receptores. Consequentemente, a atividade do GHB sobre os receptores GABAb é de relevância para as ações dessa droga quando administrada de forma exógena.
Estudos demonstram que animais (camundongos) que não expressam os receptores do tipo GABAb não apresentam quaisquer respostas motoras ao GHB.
A partir de agora, dado o escopo desse texto, falarei sobre o uso do GHB exógeno, principalmente no que concerne ao seu uso recreativo / abusivo.
É verdade que algumas carnes, cervejas e vinhos contêm GHB; um litro de vinho pode conter entre 4 mg e 21 mg de GHB. Por outro lado, o GHB ilícito confiscado em clubes e vendidos nas ruas geralmente contém entre 500 mg e 3 g de GHB (Ciraulo & Knapp, 2011).
A prevalência do uso do GHB nos Estados Unidos da América não é bem conhecida devido aos dados epidemiológicos limitados. Os dados sobre mortalidade e morbidade também são limitados, em parte porque o GHB é facilmente confundido com outras drogas e não é testado em exames toxicológicos rotineiros. Os dados disponíveis revelam que a maioria dos consumidores de GHB são jovens adultos brancos, do sexo masculino e de classe média (Busardò & Jones, 2019).
Embora os dados sobre o uso internacional de GHB sejam limitados, um uso substancial particularmente no Reino Unido e na Austrália tem sido reportado. Embora o uso de GHB na população geral na Europa seja considerado baixo, o uso em populações específicas e em determinados contextos, como no “sexo químico” (chemsex), pode estar aumentando (Corkery et al., 2015; Corkery, Loi, Claridge, Goodair, & Schifano, 2018; Wang, Jonas, & Guadamuz, 2023). Em 2019, o GHB foi identificado em 11% das apresentações de toxicidade aguda por medicamentos e em 27% das internações em cuidados intensivos, tornando-se a quinta substância mais comum em casos de toxicidade aguda.
Uma meta-análise de 80 estudos sobre o uso de GHB publicados entre 1997 e 2019 revelou que os principais fatores de risco para o consumo de GHB incluíam o status soropositivo para HIV, maior número de parceiros sexuais, sexo em grupo e práticas sexuais inseguras com parceiros casuais (Dijkstra, Beurmanjer, Goudriaan, Schellekens, & Joosten, 2021; Wang et al., 2023).
Existem alguns nomes utilizados nas ruas (street names) para designar essa droga, tais como:
- G (pronunciado Gi)
- Êxtase Líquido
- Líquido X
- Vitamina G, dentre outros.
O GHB ilícito é fornecido por fabricantes clandestinos e frequentemente vendido na Internet como se fosse um alucinógeno. Pode ser encontrado na forma de um líquido incolor e inodoro ou na forma de um pó branco que pode ter um sabor de sabão ou mesmo salgado. Além de tudo, é difícil controlar ou dimensionar a concentração de GHB ilícito. A droga em pó é muito amiúde diluída em água pelos traficantes. Assim, ela aparenta ser um tipo de COLÍRIO e não chama a atenção (nem tampouco dos familiares do usuário).
Muitas pessoas já ouviram falar sobre o GHB ilícito por causa da sua popularidade nos clubes e nas casas de música eletrônica. Alguns relatam o uso da droga devido aos seus efeitos semelhantes aos do etanol; a diferença “atraente” para os usuários recreativos do GHB é que os efeitos ditos “semelhantes” aos do álcool etílico não incluem a fala arrastada e a ressaca. É por essa razão que aqueles que optam por fazer uso do GHB em festas, raves, clubes etc. evitam o consumo de bebidas alcoólicas ao mesmo tempo. Contudo, a combinação do uso do GHB com outras substâncias psicoativas, tais como o ecstasy (3,4-metilenodioximetanfetamina (MDMA)), cocaína, cetamina, maconha e metanfetamina (Crystal) é bastante comum.
O GHB é prontamente absorvido quando administrado por via oral. O pico das concentrações desta droga é atingido em cerca de 30 minutos após a ingestão oral. O GHB também é rapidamente eliminado do corpo, tendo uma meia-vida na faixa de 20 a 40 minutos. A rápida eliminação deste composto dificulta a detecção do seu uso nos ensaios químicos. Também, como consequência da sua meia-vida curta, pode ocorrer reversão rápida dos efeitos do GHB, com transições céleres de um estado de inconsciência para um estado de alerta (Busardò & Jones, 2015).
Efeitos do GHB
O uso recreativo do GHB pode induzir os seguintes sintomas:
- Euforia
- Aumento da libido
- Desinibição comportamental
- Náuseas e vômitos
- Sedação
- Diminuição da atividade locomotora
- Perda de reflexos motores
- Amnésia para os eventos ocorridos durante o consumo
- Desmaio
- Alucinações
- Paranoia
Em quantidades elevadas ou mesmo na dependência da suscetibilidade individual, o GHB pode provocar:
- Depressão respiratória
- Mioclonias (espasmos rápidos e repentinos, ou seja, contrações em um músculo ou grupo de músculos)
- Convulsões
- Bradicardia
- Edema pulmonar
- Asfixia posicional
- Coma e morte.
Embora muitas pessoas descrevam os sentimentos causados pela ingestão de baixas doses de GHB como eufóricos e energéticos, mesmo pequenas doses podem causar perda da consciência, alucinações, amnésia e coma. Como a maior parte do GHB consumido nas festas é fabricado ilegalmente, é impossível saber a concentração de GHB em cada dose sem antes testar em laboratório. Além disso, a diferença entre uma dose baixa de GHB e uma dose potencialmente letal de GHB pode ser relativamente pequena.
Outrossim, relatos de casos indicam que a administração diária de GHB (na faixa de 20 g/dia) pode produzir dependência física. Estudos experimentais em babuínos apoiam a ideia de que a administração prolongada de GHB pode resultar em quadros de Síndrome de Dependência (Ciraulo & Knapp, 2011).
A administração do GHB tem um efeito recompensador no sistema meso-córtico-límbico. Na verdade, o GHB exerce ativação dos neurônios dopaminérgicos na área tegmental ventral (VTA) do cérebro. Já no núcleo accumbens, esta ativação parece ser diminuída. A ativação dos neurônios dopaminérgicos na área tegmental ventral (VTA) em conjunto com a inibição dos neurônios dopaminérgicos do núcleo accumbens são também características de outras substâncias psicoativas com potencial para induzir abuso / dependência.
GHB pode Induzir Sintomas de Síndrome de Abstinência?
Além da possibilidade do desenvolvimento de uma Síndrome de Dependência, os usuários regulares e contumazes podem apresentar sintomas de uma Síndrome de Abstinência do GHB quando, de forma abrupta, cessam ou reduzem significativamente o consumo da droga.
Dentre tais sintomas da Síndrome de Abstinência de GHB, podemos citar:
- Tremores em membros
- Insônia
- Inquietação psicomotora
- Taquicardia
- Hipertensão Arterial
- Confusão mental (ou Delirium)
- Náuseas e vômitos
- Alucinações visuais, táteis e auditivas
- Crises convulsivas (Dyer, Roth, & Hyma, 2001).
GHB e Agressão Sexual
Além de ser recreativamente abusado, o GHB tem sido utilizado por agressores sexuais, os quais promovem o “nocaute” das vítimas através de uma forma de “boa noite Cinderela”. Usualmente, estes tipos de predadores sexuais despejam a substância GHB na bebida de uma vítima desatenta. A quantia utilizada por esses criminosos costuma ser suficiente para fazer a vítima perder a consciência, impedi-la de se defender e fazer com que se esqueça, no dia seguinte, dos detalhes do ocorrido (Busardò, Pichini, & Kintz, 2023).
Como já mencionado, o GHB está presente endogenamente, mas a concentração é tão baixa (menos de 1 mg/L) que geralmente não é detectada na urina e no sangue. A concentração habitual em pessoas com sobredosagem (overdose) é igual ou superior a 100 mg/L no sangue e igual ou superior a 1.000 mg/L na urina. As concentrações urinárias são geralmente muito mais altas do que as concentrações sanguíneas. O GHB é metabolizado rapidamente e tem meia-vida de cerca de 30 minutos; o sangue deve ser coletado dentro de 6–8 horas e a urina dentro de 12 horas após a ingestão para que os testes possam ser positivos (nos casos de uso ilícito real).
O método mais comum utilizado para detectar GHB é a espectrometria de massa. Testes pontuais qualitativos simples têm também sido empregados em alguns estudos. O suor pode ser usado para documentar a exposição quando a amostragem é feita 12 horas após o uso da droga. Em apresentações tardias, a análise segmentar do cabelo poderia documentar a presença de GHB. Acredita-se que pequenas quantidades são transferidas da circulação para os folículos capilares e suor e, consequentemente, incorporadas na estrutura capilar. O GHB é normalmente presente no cabelo já que também se trata de uma substância produzida pelo cérebro. Como a concentração fisiológica é estável ao longo de toda a haste capilar, dada a produção endógena, seria de esperar uma concentração semelhante em todos os segmentos do cabelo em situações de não exposição exógena. Porém, no caso de uma exposição exógena, o segmento capilar correspondente ao período da exposição marcaria um aumento na concentração de GHB. Durante a interpretação do teste de detecção no cabelo, deve-se ter cuidado com a potencial contaminação pelo suor. Portanto, é aconselhável que nessas situações algumas semanas sejam aguardadas antes da coleta dos cabelos, para que esse período permita a migração da mancha de GHB ao longo do comprimento da haste capilar.
Palavras Finais
Novamente, caímos no dito “uma droga não é boa ou má por si só”. No entanto, o uso recreativo e/ou abusivo do “Gi” tem sido muito comum entre baladeiros do mundo todo. Os seus efeitos, nem sempre euforizantes, podem ser fatais. Se não fatais, os efeitos neurológicos e psiquiátricos, tais como os espasmos musculares, o descontrole comportamental, os prejuízos do sono e os comportamentos de risco deveriam refrear o comportamento de busca pelos efeitos “procurados” (euforia, aumento da libido) no início do consumo. Todavia, isso não acontece.
Muitas vezes, há a necessidade da intervenção de familiares e amigos não usuários. No entanto, temo que familiares e não usuários não consigam reconhecer os efeitos desta substância nem tampouco a forma como essa droga é armazenada pelos usuários (frascos de colírio, por exemplo).
A ignorância sobre esse tema não deve ser mais uma justificativa para a não intervenção. E eu falo sobre uma uma intervenção assertiva…
Referências Busardò, F. P., & Jones, A. W. (2015). GHB pharmacology and toxicology: acute intoxication, concentrations in blood and urine in forensic cases and treatment of the withdrawal syndrome. Curr Neuropharmacol, 13(1), 47-70. Busardò, F. P., & Jones, A. W. (2019). Interpreting γ-hydroxybutyrate concentrations for clinical and forensic purposes. Clin Toxicol (Phila), 57(3), 149-163. Busardò, F. P., Pichini, S., & Kintz, P. (2023). GHB-facilitated sexual assaults: How to proper assess a single GHB exposure in hair. Drug Test Anal, 15(7), 796-797. Caputo, F., Vignoli, T., Tarli, C., Domenicali, M., Zoli, G., Bernardi, M., & Addolorato, G. (2016). A Brief Up-Date of the Use of Sodium Oxybate for the Treatment of Alcohol Use Disorder. Int J Environ Res Public Health, 13(3). Ciraulo, D. A., & Knapp, C. M. (2011). Sedative-Hypnotics. In P. Ruiz & E. C. Strain (Eds.), Substance Abuse - A Comprehensive Textbook. (pp. 264-265). Philadelphia: LIPPINCOTT WILLIAMS & WILKINS. Corkery, J. M., Loi, B., Claridge, H., Goodair, C., Corazza, O., Elliott, S., & Schifano, F. (2015). Gamma hydroxybutyrate (GHB), gamma butyrolactone (GBL) and 1,4-butanediol (1,4-BD; BDO): A literature review with a focus on UK fatalities related to non-medical use. Neurosci Biobehav Rev, 53, 52-78. Corkery, J. M., Loi, B., Claridge, H., Goodair, C., & Schifano, F. (2018). Deaths in the Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender United Kingdom Communities Associated with GHB and Precursors. Curr Drug Metab, 19(13), 1086-1099. Dijkstra, B. A. G., Beurmanjer, H., Goudriaan, A. E., Schellekens, A. F. A., & Joosten, E. A. G. (2021). Unity in diversity: A systematic review on the GHB using population. Int J Drug Policy, 94, 103230. Dyer, J. E., Roth, B., & Hyma, B. A. (2001). Gamma-hydroxybutyrate withdrawal syndrome. Ann Emerg Med, 37(2), 147-153. Felmlee, M. A., Morse, B. L., & Morris, M. E. (2021). γ-Hydroxybutyric Acid: Pharmacokinetics, Pharmacodynamics, and Toxicology. AAPS J, 23(1), 22. Giorgetti, A., Busardò, F. P., & Giorgetti, R. (2022). Toxicological Characterization of GHB as a Performance-Enhancing Drug. Front Psychiatry, 13, 846983. Wang, H., Jonas, K. J., & Guadamuz, T. E. (2023). Chemsex and chemsex associated substance use among men who have sex with men in Asia: A systematic review and meta-analysis. Drug Alcohol Depend, 243, 109741.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.