Embora os interesses eróticos incomuns (ou paralelos) conhecidos como parafilias têm sido objeto de considerável atenção por parte de médicos e pesquisadores, um esquema de classificação universalmente aceito para os interesses sexuais parafílicos permanece vago. As tentativas de classificar as parafilias geralmente enfatizam duas dimensões principais:
- Preferências incomuns por alvos eróticos e
- Preferências incomuns por atividades sexuais (Freund, Seto, & Kuban, 1996).
Por exemplo, para a Associação Psiquiátrica Americana, as parafilias são conceituadas em termos de objetos (ou alvos) incomuns de atração (ou seja, atração preferencial por crianças, pessoas sem consentimento, objetos inanimados) ou de preferências incomuns de atividade sexual (por exemplo, atração por experimentar sofrimento ou humilhação de si mesmo ou do parceiro). No início da década de 1990, Blanchard (1991) sugeriu a existência de mais uma dimensão expressiva da sexualidade parafílica: os então denominados Erros de Localização de Focos Eróticos. Essa dimensão consistiria na localização errônea dos focos eróticos preferidos observados no ambiente. Blanchard (1991) propôs que algumas pessoas com parafilias direcionam erroneamente seu interesse erótico para partes periféricas ou não essenciais dos seus alvos eróticos (por exemplo, as roupas, o cabelo ou os pés de um alvo), o que se manifesta, por exemplo, no fetichismo. Mais tarde, Freund e Blanchard (1993) cunharam o termo Inversão da Identidade do Foco Erótico para descrever as pessoas que localizam erroneamente seus alvos eróticos preferidos em seus próprios corpos e desejam personificar ou tornar-se fac-símiles desses alvos.
Enquanto a teoria do “Erro de Localização do Foco Erótico” baseia-se na hipótese de que as parafilias definidas a partir de um forte e recorrente interesse sexual em características que estão em algum lugar que não nos parceiros sexuais nem tampouco em si mesmos, o termo “Inversão da Identidade do Foco Erótico” baseia-se na forte excitação sexual ao imaginar-se em uma outra forma física. Ou seja, na primeira, o alvo erótico está aquém de um(a) parceiro(a) e da própria identidade; na segunda, a gratificação sexual consiste em imaginar-se como uma pessoa diferente, ou seja, um bebê, um animal ou mesmo uma pessoa do sexo biológico oposto (Blanchard, 1991).
Embora a maioria dos homens sinta atração sexual por outros indivíduos (por exemplo, mulheres, homens e/ou ambos) e, portanto, têm alvos eróticos externos, alguns homens ficam sexualmente excitados pela fantasia de que eles mesmos são um desses indivíduos e, portanto, localizam o alvo erótico nos seus próprios corpos. Neste último caso, a sexualidade compreende uma Inversão de Identidade do Foco Erótico (Freund & Blanchard, 1993).
Como quaisquer parafilias, a exclusividade da excitação sexual com as fantasias paralelas está longe de ser uma regra. Existem, por exemplo, homens com Inversão da Identidade do Foco Erótico que também têm atração sexual por outros indivíduos. Todavia, também existem aqueles homens com tal inversão do foco erótico (aqui também chamados de “analoeróticos”) que somente ficam excitados sexualmente fantasiando sobre si mesmos como se fossem uma outra pessoa. Muitos dos “analoeróticos” acabam reportando que são assexuados, quando na verdade não o são (Brotto & Yule, 2017). Infelizmente, aqueles que exclusivamente portam algum erro de localização ou mesmo algumas formas de inversão da identidade do foco erótico também podem presumir que lhes falta atração sexual.
Também infelizmente, os analoeróticos podem querer mudar a sua própria aparência e comportamento para se tornarem mais parecidos como seu alvo erótico internalizado (Lawrence, 2009). Por exemplo, alguns homens são tão fortemente motivados pelas Inversões da Identidade do Foco Erótico que procuram procedimentos médicos caros e irreversíveis para tornar os seus corpos mais parecidos com o seu alvo erótico internalizado.
O quadro abaixo (Figura 01) pode deixar mais clara a distinção entre “Erro de Localização do Foco Erótico” e “Inversão da Identidade do Foco Erótico”.
Figura 01 Exemplos de parafilias derivadas do erro de localização ou da inversão da identidade do foco erótico
a) Uso de objetos inanimados para obter excitação sexual
b) Excitação sexual ao vestir roupas do sexo oposto
c) Excitação sexual imaginando-se tendo um membro (partes dos membros superiores e/ou partes dos membros inferiores) ou mesmo os órgãos genitais amputados
d) Excitação sexual gerada pelo pensamento de ter corpo de uma mulher ou partes do corpo de uma mulher, como as mamas
e) Excitação sexual com a fantasia sexual de ser um bebê a ser cuidado por um adulto, frequentemente envolvendo o uso de fraldas ou outros elementos do vestuário infantil.
A chamada Autoginefilia, por exemplo, pode ser definida como a tendência de um homem ficar sexualmente excitado pelo pensamento de ter corpo de mulher ou partes do corpo de mulher, como as mamas. Os dados disponíveis sugerem que as fantasias eróticas de possuir o corpo (ou partes do corpo) de uma mulher não são necessariamente acompanhadas de alguma forma de comportamento transvéstico; contudo, tais comportamentos podem acontecer (Freund & Blanchard, 1993).
Parece improvável que homens nasçam com interesses eróticos pré-formados, ou seja, imagens de homens, mulheres, animais, objetos inanimados etc. Um cenário mais provável é que eles nasçam com sensibilidades diferentes às classes específicas de estímulos (por exemplo, pilosidade ou suavidade), e que tais sensibilidades interajam com a experiência precoce para produzir uma imagem definitiva do objeto desejado. Blanchard (1991) aventou, com base em seu trabalho sobre fetichismo, fetichismo transvéstico, autoginefilia e autonepiofilia que deve haver algum processo no desenvolvimento que, na maioria dos homens, mantém esse aprendizado “no caminho certo”, talvez direcionando a resposta erótica para outras pessoas e não para si mesmos. Quando esse processo falha, o indivíduo pode desenvolver uma imagem erótica de si mesmo que inclui algumas ou todas as características do objeto desejado.
Esta teoria prevê que, para cada classe de objetos sexuais, haverá pequenos subgrupos de homens que desenvolvem fetiches por roupas associadas ao objeto desejado, que desenvolvem a fantasia erótica de ser o objeto desejado, e que desenvolvem o desejo sustentado de transformar (simbolicamente) seus próprios corpos em cópias do objeto desejado.
Teóricos mais antigos já haviam mencionado prelúdios linkados com a teoria do Erro de Localização do Foco Erótico ou mesmo da Inversão da Identidade do Foco Erótico. Rohleder (1907) descreveu dois tipos de parafílicos dentro do conceito de um foco erótico mal direcionado:
a) Aqueles que nunca sentiriam qualquer interesse erótico em um parceiro; em vez disso, eles experimentariam gratificação sexual por si mesmos e exibiriam vários tipos de comportamento sexual em relação a si mesmos, como beijar as próprias imagens no espelho
b) Aqueles que respondem sexualmente a objetos que não são o próprio corpo de uma pessoa (nem de si mesmos) mas que, de uma certa forma, representam a pessoa desejada (Rohleder, 1907).
O conceito de Erro de Localização do Foco Erótico e da Inversão da Identidade do Foco Erótico tem sido controverso e de difícil entendimento e aceitação. Aqueles que se sentem sexualmente excitados com algumas das parafilias mencionadas aqui usualmente não gostam e mesmo rejeitam a noção de que a vontade de mudar a aparência e o comportamento pode ser sexualmente motivada (Dreger, 2008). De qualquer forma, a autoavaliação do próprio comportamento sexual, bem como dos outros comportamentos que assumimos no dia a dia, é uma forma saudável para uma melhor compreensão, aceitação e/ou correção na medida do possível e do necessário.
Referências Blanchard, R. (1991). Clinical observations and systematic studies of autogynephilia. J Sex Marital Ther, 17(4), 235-251. Brotto, L. A., & Yule, M. (2017). Asexuality: Sexual Orientation, Paraphilia, Sexual Dysfunction, or None of the Above? Arch Sex Behav, 46(3), 619-627. Dreger, A. D. (2008). The controversy surrounding "The man who would be queen": a case history of the politics of science, identity, and sex in the Internet age. Arch Sex Behav, 37(3), 366-421. Freund, K., & Blanchard, R. (1993). Erotic target location errors in male gender dysphorics, paedophiles, and fetishists. Br J Psychiatry, 162, 558-563. Freund, K., Seto, M. C., & Kuban, M. (1996). Two types of fetishism. Behav Res Ther, 34(9), 687-694. Lawrence, A. A. (2009). Anatomic autoandrophilia in an adult male. Arch Sex Behav, 38(6), 1050-1056. Rohleder, H. (1907). Vorlesungen über Geschlechstrieb und gesamtes Geschlechsleben des Menschen (Lectures on Sexual Drive and the Complete Sexual Life of Man) (Vol. 2). Berlin: Fischers medizinische Buchhandlung/H. Kornfeld.
Atendimento – Consultório
Telefone: 0 XX 11 3120-6896
E-mail: [email protected]
Endereço: Avenida Angélica, 2100. Conjunto 13
Condomínio Edifício da Sabedoria
CEP: 01228-200, Consolação – São Paulo
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.