“Se Satanás tivesse esse tipo de poder, como alguém poderia enfrentá-lo voluntariamente? Então ele não o fez.”
(Felicitas D. Goodman, 1981. The Exorcism of Anneliese Michel)
Embora exista um extenso corpo de literatura sobre crenças religiosas, poucos estudos têm envidado esforços na investigação do Mal enquanto construto ou mesmo reificação. A crença na realidade de Satanás, do inferno, dos demônios ou de outras concepções do Mal constitui um componente importante da estrutura geral de muitas crenças religiosas que pode ter associações importantes com outros tipos de crenças, incluindo a intolerância a grupos específicos de pessoas (Wilson & Huff 2001). Além de estar associada com outras crenças, uma pesquisa Gallup de 2004 relatou uma tendência de que a crença no Mal tem aumentado… e no Mal “coisificado…”
Enquanto 56% dos americanos acreditavam no inferno em 1997, 70% afirmavam acreditar nele em 2004. Da mesma forma, 55% acreditavam no Diabo em 1990, enquanto 70% afirmavam acreditar em 2004. A mesma pesquisa Gallup de 2004 relatou que a crença no inferno era mais forte entre os frequentadores das igrejas e entre aqueles com diploma de ensino médio ou inferior. Estas estimativas sugerem que a crença em concepções do Mal é generalizada e não parece ser negligenciável (Baker, 2015).
Nós todos temos a tendência para buscar explicações rápidas e reconfortantes para eventos negativos e ameaçadores. Uma explicação comum é a crença em forças ativas do Bem e do Mal, que influenciam as vidas das pessoas bem como as situações. Pesquisas já demonstraram uma correlação entre a crença no mal e julgamentos mais severos e comportamentos menos pró-sociais.
Baker cita a pesquisa de Wilson e Huff (2001) como precedente importante. Este trabalho demonstrou a possibilidade de mensurar significativamente a crença em um Satanás ativo no mundo material e estabeleceu uma associação entre essa crença e a intolerância às minorias raciais e sexuais. Outrossim, a crença no Mal reificado pode estar conectada com vivências de extremo sofrimento, desvantagem social e busca de explicações religiosas para as mazelas cotidianas. Apesar da crença no Mal apresentar uma correlação negativa com a classe social, essa relação é atenuada pela frequência da participação em serviços religiosos. De fato, a crença em entidades malignas é um fenômeno complexo e multifacetado, influenciado por uma interação de fatores sociodemográficos, religiosos e culturais.
As Dimensões do Mal
Apesar das várias tentativas de insistir que o termo “Mal” deve ter mais propriamente um sentido religioso e paranormal do que um significado nas arenas científico-forenses, é praticamente impossível eliminar a concepção sobre forças e entidades malignas do ideário de muitos de nós.
Dito isso, e tentando minimizar os problemas de entendimento e discernimento, o Mal pode ser visto sob seis dimensões fundamentais:
- Existe a intenção de causar o dano
- Existe o prazer em causar o dano
- Existe a crença na completa inocência da vítima do Mal
- O Mal representa a antítese da paz, da ordem e da estabilidade
- O Mal é egocêntrico
- O Mal deseja o controle total sobre a vítima.
Bom, até aí, considerando tais dimensões, não estaríamos muito longe das avaliações médicas sérias realizadas com agressores sexuais seriais ou mesmo predadores. Na verdade, valores éticos e construtos pessoais orientam as avaliações do comportamento humano. Por detrás destas dimensões, estão vários construtos médico-psiquiátricos, tais como a Tríade Negra (Narcisismo, Psicopatia e Maquiavelianismo), a psicopatia, o narcisismo maligno, a flexibilidade cognitiva, a baixa conscienciosidade, a falta de empatia, dentre outros.
Compreendendo o Mal
A compreensão daquilo que chamamos Mal tem intrigado filósofos, teólogos e cientistas por séculos. Embora a investigação do Mal amiúde assuma uma perspectiva moral e/ou teológica mística, muitas vezes o termo é usado na Psicologia, buscando entender os processos mentais que levam os indivíduos a cometer atos criminosos e execráveis. Abandonando definições abstratas e dogmáticas, adotamos aqui uma abordagem científica, analisando o que a psicologia tem a oferecer para a compreensão do ato maléfico.
Como reiterado em texto anterior, associamos o Mal à produção de sentimentos de profunda angústia e perplexidade frente ao sofrimento humano. Apesar da natureza ilusória do conceito, procuramos entender o que o Mal significa no contexto humano e não no sobrenatural. Não se trata de uma definição universal e imutável, mas sim de uma construção social e individual, sujeita às variações culturais e individuais.
A abordagem mais simplista equaciona “Mal” com sofrimento, qualquer tipo de sofrimento. Mas isso é insuficiente. Um terremoto que causa sofrimento e mortes não é, necessariamente, “maligno” no sentido moral. O sofrimento em si, sem uma intenção perversa por trás, não se enquadra em uma concepção psicológica do Mal.
Assim, considerando as dimensões do Mal, uma definição mais precisa identifica o Mal como o sofrimento intencionalmente infligido. Um ato intencional de causar dor, dano ou privação a outra pessoa, sem justificativa razoável, se configura como um ato “maligno”. Essa intenção é fundamental. A ação acidental, por mais trágica que seja, não configura maldade. Considere o exemplo de um acidente de carro: o sofrimento causado é real, mas a ausência de intenção malévola diferencia este ato de um ato de violência premeditada ou intencional.
Porém, mesmo esta definição requer considerações mais sutis. A subjetividade na avaliação da intencionalidade e da justificação é inerente. O que é considerado “justificável” para um indivíduo, pode ser inaceitável para outro. O mesmo ato pode ser visto como heroico sob certas circunstâncias e como abominável sob outras. Imagine uma mãe que mata o agressor de seu filho: a intenção era proteger seu filho, mas a ação é de causar a morte de outra pessoa. O contexto é crucial. A justiça, a cultura e as crenças individuais influenciam essa interpretação.
Para agregar clareza à complexidade inerente a esta definição, alguns autores propõem um modelo tripartido mais sucinto para a compreensão do Mal:
- Intencionalidade: O ato precisa ser intencionalmente direcionado para causar prejuízo.
- Prejuízo: O ato precisa resultar em dano físico, psicológico, social ou econômico a outrem.
- Sem Justificação: O ato precisa ser percebido por terceiros como injustificável, ou seja, sem uma razão plausível ou aceitável pela sociedade.
Dito isso, a convergência desses três elementos configura o que é tipicamente reconhecido e rotulado como “mal” em um contexto psicológico. A ausência de apenas um deles, reduz a intensidade da percepção de maldade. Por exemplo, um ato não intencional que causa dano, embora lamentável, não é “maligno” no mesmo sentido que um ato cruel e deliberadamente infligido.
O Mal encarnado
A aplicação do rótulo de “malfeitor” (ou “maligno”) a um indivíduo que pratica atos considerados “maus” é um processo intrincado. É aqui que o conceito do “Mito do Mal Puro” (MOPE) entra em cena.
O MOPE é um estereótipo arraigado que caracteriza os “malfeitores” como seres intrinsecamente maus, implacáveis e irredutíveis.
O MOPE é um atalho cognitivo, simplificando a compreensão de atos complexos e perturbadores. Embora útil em situações extremas, pode levar a julgamentos injustos e superficiais. A crença no MOPE exacerba a tendência a desumanizar os malfeitores e a justificar punições severas, muitas vezes desproporcionais à natureza do ato (Burris, 2022).
Ao desumanizar alguém, torna-se mais fácil justificar atos de violência ou punição severa contra ele. Novamente, considerar a perspectiva dos atores envolvidos, e as nuances do contexto, é essencial para uma análise mais justa e equilibrada da natureza do mal.
A Marca de Caim
A consciência da possibilidade de ser rotulado de “maligno” induz as pessoas a desenvolver estratégias de defesa para evitar o estigma. A história bíblica de Caim e Abel ilustra esse ponto. Caim, após matar seu irmão, teme ser morto e lamenta sua condição. Deus marca-o para protegê-lo, mas essa marca de Caim o condena à marginalização perpétua. A “marca de Caim” simboliza a condenação social irreversível, o estigma de quem comete um ato considerado “maligno”.
Diante disso, as pessoas recorrem a diversas estratégias para evitar o rótulo de “maligno”, minimizando a sua responsabilidade, negando o ato, ou justificando sua ação através de diversas racionalizações. Algumas das táticas incluem:
- Licenciamento Moral: A justificação de um ato reprovável é obtida previamente demonstrando condutas morais exemplares
- Negação do Papel: A recusa em assumir a responsabilidade pelo ato cometido.
- Minimização do Prejuízo: A redução da gravidade das consequências negativas da ação.
- Minimização da Intenção: A justificação do ato com base na ausência de intenção maliciosa.
- Invocação de Justificativas: A procura de explicações externas ou justificáveis para a ação.
Essas estratégias são frequentemente usadas em conjunto, reforçando-se mutuamente. Estudos demonstram que criminosos sexuais, por exemplo, tendem a usar essas táticas objetivando desviar a própria culpa e a própria responsabilidade, mesmo que as ações sejam reconhecidamente prejudiciais a outros. Muitas vezes, alegar a ocorrência de lapsos de memória, ou um tipo de “esquecimento motivado”, é uma forma de lidar com as memórias dos atos violentos cometidos e combatidos naturalmente pela mídia.
Tornando-se Mal
A crença na insignificância ou irrelevância da vítima facilita a prática de atos maus. O processo de tornar-se “maligno” pode ser gradual e complexo, influenciado por fatores individuais, como a predisposição à crueldade, a falta de empatia e a baixa capacidade de autocontrole, além de fatores situacionais, tais como a pressão social, a influência de grupos e a desumanização das vítimas.
Pergunta final
Onde está o Mal? Ele está no meio de nós…
Referências Baker, J. (2015). Who believes in religious evil? An investigation of sociological patterns of belief in Satan, Hell, and Demons. Rev Religious Res, 50(2): 206-220. Burris, C.T. (2022). Evil in mind: The psychology of harming others. Oxford: Oxford University Press. Wilson, K.M., and Huff, J.L. (2001). Scaling Satan. J Psychol, 135(3):292-300.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC durante 26 anos. Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC por 20 anos, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) durante 18 anos e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex) durante 22 anos. Tem correntemente experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.