Caso 1 (Na Literatura)
“Ah, o senhor ainda não me conhece, pois saiba, eu realmente sou cruel no sentido gozoso que lhe tem esta palavra , e acaso não teria o direito de sê-lo? O homem é o cobiçoso; a mulher, a cobiçada… eis aí a vantagem plena e crucial da mulher. A natureza dotou o homem de paixão, e a mulher que não souber submetê-lo, fazer dele seu escravo, seu brinquedo e, ao final, traí-lo com um riso estampado no rosto não será uma mulher inteligente (…) Severin deliciava-se com a realização do ato”
(Sacher-Masoch, 1870)
Caso 2 (Nos gêneros textuais médico-literários)
“X., literato, vinte e oito anos. Aos seis anos, ele sonhava em ser chicoteado por uma mulher. Ao acordar, revelava intensa excitação lasciva; por isso, ele praticava masturbação constantemente. Aos oito anos, ele uma vez pediu ao cozinheiro que o chicoteasse. Do seu décimo ano até os seus vinte e cinco anos, ele sonhava em
flagelação ou fantasias semelhantes quando acordado, e era indulgente no onanismo. Há três anos, ele teve o desejo de ser chicoteado por uma rapariga (…). O orgasmo era apenas feito possível pelo seguinte artifício: enquanto realizava o coito com uma rapariga, ela tinha que contar a ele como ela usualmente açoitava de forma impiedosa outros homens impotentes. Além disso, era necessário que ele imaginasse que também estava sendo açoitado e humilhado. Ocasionalmente, para se tornar “potente”, era necessário sentir-se realmente açoitado. Assim o coito era possível. Poluções
eram acompanhadas por sentimentos lascivos apenas quando ele sonhava que havia sido abusado ou que a parceira o chicoteava.
Ele nunca teve um verdadeiro prazer lascivo no coito per si. As únicas coisas nas mulheres que o interessavam eram as mãos. Mulheres poderosas com punhos grandes eram a sua preferência”.
(Kraft-Ebing, 1896 – Caso 52)
O termo masoquismo foi cunhado em 1886 pelo psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing (1840–1902), em homenagem a um escritor contemporâneo, Leopold von Sacher-Masoch (1836–1895), cujo romance Vênus em Peles (1870) fala do protagonista Severin e da dominatrix Wanda, ou seja, sobre o desejo do protagonista em ser chicoteado, escravizado e traído sexualmente por ela.
Krafft-Ebing apropriou-se do sobrenome do autor (Masoch), não sem algumas rusgas entre ambos, para conceituar “uma perversão peculiar da vida sexual na qual o indivíduo afetado, em sentimentos e pensamentos sexuais, é controlado pela ideia de estar completamente e incondicionalmente sujeito à vontade de uma outra pessoa, de ser humilhado e de ser abusado”, ou seja, masoquismo sexual. Freud também considerava o masoquismo sexual uma perversão e acreditava que era “nada além de uma continuidade do sadismo dirigido à própria pessoa em que esta toma inicialmente o lugar do objeto sexual”. Em outras palavras, o masoquista sexual teria o controle do cenário sexual-erótico e não o contrário (Aggrawal, 2009).
Autores argumentam que o masoquismo sexual, em muitas situações, apesar de parecer autodestrutivo, é na realidade uma força propulsora para a autodescoberta. Esse pode ser o caso dos praticantes e membros de grupos conhecidos como BDSM (Bondage, Disciplina, Sadismo, Masoquismo). O masoquismo sexual pode refletir diferentes aspectos, desde a sua relação com o místico e a sexualidade até mesmo com as artes e a filosofia.
Deixando de lado os conceitos que definem o masoquismo sexual como um Transtorno Mental, ou seja, o de danos a si mesmo e/ou aos outros bem como o de prejuízos sociais, laborais, pessoais, familiares etc. resultantes do comportamento sexual masoquista, devemos considerar que a prática sexual masoquista, além de vasta em suas práticas e imaginário erótico, pode fazer parte de um repertório sexual não necessariamente patológico.
Algumas das vertentes do masoquismo podem ser incluídas aqui nesse momento:
- O masoquismo é uma experiência complexa que não se limita ao prazer sexual. Destaca-se aqui a relação entre o masoquismo e a experiência mística, e argumenta-se que, tanto na vivência erótica quanto na mística, o masoquismo representa a busca por uma experiência diferente e transcendente.
- O masoquista pode ser alguém que se identifica com a dor e o sofrimento, mas não se deixa destruir por eles. O masoquista usa a dor como uma ferramenta para se transformar e crescer, buscando o sublime através da experiência da dor e do sofrimento.
- O masoquismo também pode ter uma função social e política. Argumenta-se que o masoquismo pode ser uma força para a mudança social, ajudando a desafiar as normas sociais e a questionar as estruturas de poder (dominador versus dominado).
UMA INTERPRETAÇÃO DO MASOQUISMO
Parece que tanto os místicos quanto os masoquistas sexuais buscam, durante a experiência do sofrimento, a dissolução das próprias amarras e das restrições em favor de um sentido maior nas suas vidas. Durante o estado de êxtase, nenhuma ironia, nenhuma proteção autoimposta pode ser mantida por muito tempo.
O fervor do masoquista sexual (ou não sexual) não pode ser quebrado de fora para dentro. Toda dor, humilhação ou aflição apenas intensificam essa resiliência. A intenção não é controlar o mundo ou exercer poder sobre ele, mas sim envolver e absorver o que é externo, particularmente as suas facetas mais desconhecidas.
A CURIOSIDADE
A curiosidade sexual-erótica pode ser insaciável na busca por novas experiências. A necessidade de transgredir do masoquista faz com que ele assuma riscos e se exponha diretamente ao desconhecido como uma parte crucial de sua existência. Por exemplo, ao se perder deliberadamente em uma cidade estrangeira à noite, ignorando as indicações para a estação de ônibus mais próxima, você, leitor, estará exposto a esse tipo de perigo. Ao permitir que um estranho entre em sua casa, você está praticando a mesma ação. Esses riscos implicam em perigo concreto, como se fosse necessário se expor dessa forma para adquirir qualquer nova experiência autêntica, através de provas inusitadas e amedrontadoras.
A AUTOEXTINÇÃO
Sem dúvida, os termos “autodestrutivo” e “suicida” são adequados para retratar a forma constante como o masoquista pode comprometer a sua saúde e o seu bem-estar, além de colocar em perigo o seu próprio corpo. Eles desafiam as regras fundamentais da sobrevivência por seu relacionamento amoroso com a própria suposta aniquilação.
AUTODISCIPLINA
Nesse manuscrito, estamos muito distantes do conceito de masoquismo como algo lúdico, cômico, poético ou religioso, ou da sua capacidade de redenção. Voltamos nossa atenção para aquele instante no meio do ato masoquista onde a dor é verdadeiramente insuportável. Para superar isso, é necessária muita autodisciplina. Uma representação da morte é apresentada, a morte é concebida de duas formas. Inicialmente, como um acontecimento inescapável que ocorrerá no futuro. Em segundo lugar, todas as formas de morbidade que as pessoas experimentam ao longo da vida. O objetivo do masoquista pode ser tentar compreender, através da imaginação, como é a transição entre a vida e a morte, através do corpo e da vontade. Como já mencionamos, o indivíduo que aceita voluntariamente a dor deve ser corajoso. A razão para isso reside na quantidade de forças poderosas que ele ou ela mobiliza durante a submissão. Deve existir um momento de seriedade, quando a comédia sedutora, o vestuário e as posturas extravagantes terminam, antes que a dor tenha sido transformada ou amenizada pelo prazer erótico. Todo o perigo do excesso está presente naquele instante. Trata-se de um instante de silêncio causado por uma sensação orgástica de auto extinção temporária.
A CONEXÃO
A prática do masoquismo sexual entre os adeptos sempre renasce após uma provação dolorosa, e o relato do torturador sobre a provação indica que nunca existe um instante de abandono total. A submissão sexual ocorre entre duas pessoas, dentro das restrições de um contrato que versa sobre o que é ou não aceitável pelo masoquista. Portanto, mesmo que a dor pareça insuportável, o masoquista sempre mantém a conexão e o controle.
Esses contratos antecipadamente realizados evitam a sensação do desespero total ou do abandono por parte do masoquista. Uma das lições do masoquismo é que se deve compartilhar o sofrimento, ao invés de sofrê-lo sozinho. A inimiga não é a dor, mas a desconexão – incluindo a forma de cinismo que envolve a escolha de se afastar do contrato. A dor em si é uma vivência individual, que pode ser intensificada ou aprimorada pelo ambiente.
O masoquista pode almejar a dor plena, mas dentro da segurança de um vínculo erótico, uma parceria. Em um relacionamento, é possível alcançar praticamente qualquer destino, passando pelos círculos do inferno e do purgatório. Repiso: A experiência de estar conectado a alguém, mesmo no meio da tempestade, é o que possibilita ao masoquista viver a sua aventura.
A VIDA IMITA A ARTE?
Tanto o texto literário de Sacher-Masoch (Caso 1) quanto o relato de um caso clínico publicado por Kraft-Ebing (Caso 2) falam sobre o masoquismo sexual. Como dito, tais práticas sexuais estão presentes nas artes, na clínica médica e em múltiplos outros campos da ciência e da religião.
A análise dos textos sobre os conceitos de curiosidade, conexão com o outro, autodisciplina, e auto extinção revela aspectos interessantes, especialmente no contexto das dinâmicas de desejo e poder entre os gêneros.
Curiosidade
A curiosidade desempenha um papel fundamental em ambos os textos. A curiosidade pode ser vista na exploração das dinâmicas do poder sexual e nas diferenças de gênero. Os protagonistas homens expressam uma curiosidade sobre a natureza da crueldade feminina e a manipulação nas relações entre homens e mulheres, indicando uma busca por entender e dominar a dinâmica do desejo.
Conexão com o outro
A conexão com o outro é palpável em ambos os casos. No primeiro texto, a relação entre os gêneros é mediada por um entendimento sutil de poder e manipulação. O jogo revela uma busca pela conexão através da dominação e da submissão, destacando a maneira como relações íntimas podem ser moldadas por desejos de controle. No segundo texto, a necessidade de sentir-se “açoitado” enquanto busca a intimidade revela uma relação complexa entre prazer e desprazer, onde a conexão com o outro está essencialmente ligada ao sofrimento e ao controle. O masoquista tem o controle em uma ambiente necessário de conexão com a parceira.
Autodisciplina
A autodisciplina revela-se na capacidade de se envolver em rituais que condicionam o prazer. Ao se submeter aos seus desejos específicos, fantasias sexuais a aos seus imaginários eróticos, os homens (nos dois textos) exercem uma forma de autodisciplina sexual, moldando as suas necessidades de acordo com as exigências das torturadoras. Aqui, trata-se de uma estratégia para atender as necessidades sexual-eróticas, mesmo que de forma não convencional.
Autoextinção
A auto extinção é um conceito que está presente de maneira mais explícita no texto de Kraft-Ebing. O desejo de X por experiências que envolvem dor e humilhação indica uma forma de auto extinção, um desejo não apenas de sofrer, mas também de renunciar ao prazer convencional. Seu prazer sexual está atado à dor infligida a si mesmo, o que pode ser lido como uma forma de se extinguir em busca de satisfação através da degradação.
No primeiro texto, a auto extinção é mais sutil, refletindo-se na maneira como a mulher é convidada a sacrificar suas emoções e até mesmo seu desejo verdadeiro em prol de uma performance de controle e dominação. A necessidade de “trapacear” e usar o riso como arma encobre uma perda de autenticidade que pode levar a uma espécie de auto extinção emocional.
Ambos os textos oferecem uma arena para a exploração das dinâmicas de poder, desejo e identidade, revelando como a curiosidade e a conexão podem se desdobrar em autodisciplina e auto extinção. A busca por controle, compreensão e prazer, muitas vezes, vem acompanhada de perdas potenciais de autenticidade e de desconexões profundas, refletindo a complexidade e a ambivalência das relações humanas.
Referências Aggrawal, A. (2009). Forensic and Medical-legal Aspects of Sexual Crimes and Unusual Sexual Practices. Boca Raton: CRC Press. Phillips, A. (1998). A Defence of Masochism. London: Faber & Faber.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC durante 26 anos. Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC por 20 anos, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) durante 18 anos e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex) durante 22 anos. Tem correntemente experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.