A Influência do “Mal” na Atribuição da Responsabilidade pelos Comportamentos Sexualmente Criminosos

“Ninguém, exceto pelo menos um insignificante pajenzinho, um pateta que exibia por toda a parte ofuscante fealdade e cujas opiniões não tinham a mínima importância possível. Tinha o desaforo de afirmar — se as suas ideias valessem a pena ser mencionadas — que o seu dono jamais subira para a sela sem um inexplicável e quase impercetível arrepio, e que no regresso de cada um dos seus longos e habituais passeios, uma expressão de maldade desfigurava a sua face.”

(Edgar Allan Poe, Metzengerstein)

O termo mal tem sido usado, muitas vezes de forma pouco responsável, na teoria e na prática em diferentes arenas do conhecimento científico. Esse termo, que traz uma noção religiosa moralmente carregada, não tem base natural e sim sobrenatural. Há razões sobrepostas, mas também diferentes, pelas quais a noção do mal − e não apenas da palavra mal, como se pudesse ser divorciada de suas conotações − é usada na psiquiatria, na psicanálise e em outras psicoterapias e na jurisprudência. Em cada caso, pode apontar para uma certa inquietação e insegurança reflexivas sobre os fundamentos dessas disciplinas, quando faltam construtos melhores para definir determinada ocorrência.

Rotular alguém ou algo como mau é categorizá-lo de uma maneira especial, separá-lo da normatização moral comum. Por exemplo, os nazistas não eram meramente brutalmente amorais, mas maus; mal, não porque o que eles fizeram foi tão ruim, mas porque o que eles fizeram foi tão ruim que foi categoricamente diferente ou dissimilar do meramente imoral e amoral. Pensemos, por um momento, que o mal seja um termo útil, precisamente porque captura um mundo que não está claramente dividido em dois, um mundo em que o sagrado, o profano e seus desdobramentos se encontram e se misturam quase todos os dias, e certamente todas as noites, das nossas vidas. A moralidade é sobre discernir o certo e o errado; já o mal expressa a dissolução do significado, limites e sentido. Dessa forma, o mal desafia a própria existência da moral. Achar que o mal possa ser um conceito útil, porque evoca não apenas o sadismo, mas também a ausência de limites, ajudando a explicar o prazer em infligir dor aos outros, o prazer de controlar os outros. Para muitos no Ocidente, o mal acrescenta uma compreensão mais rica dessa experiência, porque o conceito de mal invoca uma tradição na qual a maldade é uma violadora de limites, rastejando sobre nós, picando-nos, envenenando-nos e aparecendo em lugares onde menos esperamos.

No entanto, as disciplinas ditas científicas têm compromissos que são incompatíveis com as estruturas conceituais nas quais o mal tem relevância interpretativa ou descritiva. A visão de que essas disciplinas devem se comprometer a evitar a noção de mal em seus discursos profissionais tem recebido pouca atenção na literatura recente. A visão predominante, que ignora as considerações etimológicas e metodológicas, é que se usa o termo naturalmente, quase que de forma espontânea.

A visão predominante é que se pode usar o termo naturalissimamente, mais ou menos como se quer, uma vez que “quaisquer pessoas” entenderão o que se quer dizer. Será mesmo?

Na realidade, muitos acham chocante e inadequado quando um advogado, ou pior ainda, um psiquiatra, descreve um indivíduo como algo mau, reificando o mal. Embora o conceito de mal seja usado ativamente na cultura contemporânea, não é uma ideia totalmente respaldada para a prática da psiquiatria, psicologia, psicanálise ou do direito. Mais está em jogo no uso do termo mal do que pode parecer evidente à primeira vista. A questão do uso é em si indicativa de problemas e preocupações mais amplos. Deixe-me levantar a hipótese de como o uso do termo mal na psiquiatria aponta para um problema mais profundo no campo. O leitor pode substituir a Medicina pela Jurisprudência (embora não exatamente mutatis mutandis) e construir argumentos semelhantes.

O uso do termo “mal” em discussões sobre comportamentos sexuais criminosos, considerando a sua conotação religiosa e moralmente carregada, torna-o inadequado para uma análise científica e jurídica séria. Expandindo essa última premissa, podemos explorar as implicações dessa crítica, analisando diversos aspectos da questão:

 

A Problemática da Linguagem

A escolha da linguagem é crucial em qualquer discussão sobre assuntos complexos e sensíveis. O termo “mal”, enraizado em uma rica tradição teológica e moral, evoca imediatamente julgamentos de valor e implicações de culpabilidade. Isso impede uma análise objetiva, necessária para compreender os fatores contribuintes para comportamentos sexuais ofensivos, que são multifacetados e raramente se reduzem a uma simples noção de “maldade” inerente ao indivíduo. A utilização de uma linguagem descritiva e despida de valores morais, que priorize a precisão e a neutralidade axiológica, é fundamental para uma abordagem científica e ética. A opção por uma análise que considere fatores psicológicos, sociais e biológicos, em vez de atribuir a responsabilidade a uma abstração moral como o “mal”, se mostra crucial para evitar conclusões simplistas e moralistas.

 

Aspectos Psicológicos e Psicanalíticos

A Psicologia oferece importantes contribuições para a compreensão dos mecanismos psicológicos subjacentes aos comportamentos sexuais criminosos. Existem várias teorias testadas e testáveis que ajudam a desvendar a complexa interação entre impulsos violentos, mecanismos de defesa, e a dinâmica intrapsíquica que molda a personalidade do indivíduo. Por exemplo, a exploração de conceitos como a posição depressiva, a esquizoparanoide, e a egotista abre caminho para uma análise mais aprofundada das dinâmicas internas do sujeito, esclarecendo como a divisão do ego e a projeção de impulsos destrutivos podem influenciar o comportamento sexualmente agressivo. A vulnerabilidade do indivíduo, a falta de empatia, as interpretações errôneas, as distorções cognitivas apoiadas na congruência emocional, os fatores culturais e ambientais etc. podem ser ingredientes breves, mas essenciais na avaliação científica do agressor. No entanto, muitas vezes, o pavor provocado nas pessoas eliciado pelos comportamentos violentos, pode atuar como base para a associação de termos disfuncionais com comportamentos destrutivos por terceiros. A análise dessa perspectiva amplia a compreensão da etiologia desses comportamentos, reconhecendo a complexidade das relações e a importância do desenvolvimento psicossocial.

 

O Contexto Social e Cultural

O ambiente sociocultural exerce uma influência significativa na formação da personalidade e no desenvolvimento de comportamentos desviantes. Uma análise mais completa deve considerar fatores como a educação, a cultura, a estrutura familiar, e os sistemas de valores predominantes em uma determinada sociedade. As normas sociais relativas à sexualidade, e a tolerância a diferentes formas de expressão sexual desempenham um papel crítico na forma como os indivíduos internalizam os padrões de comportamento e na probabilidade de desenvolverem comportamentos sexuais criminosos. Desconsiderar esses fatores contribui para análises incompletas e generalizações imprecisas.

 

O Papel da Neurobiologia

Aspectos neurobiológicos também desempenham um papel crucial. Desequilíbrios neuroquímicos, danos neurofisiológicos, e variações genéticas podem contribuir para comportamentos desviantes. Estudos científicos demonstram a correlação entre certos fatores neurobiológicos e determinados comportamentos sexuais, reforçando a necessidade de uma abordagem multidisciplinar que integre diferentes perspectivas, evitando a simplificação dos fatores causais. Por exemplo, o fato de, em portadores do Transtorno Pedofílico, existir uma menor repetição do trinucleotídeo CAG (Citosina-Adenina-Guanina) no genes que codificam os receptores de androgênios (AR), implica em maior capacidade transcricional do gene e, putativamente, maior sensibilidade destes receptores aos andrógenos circulantes. A visão puramente biológica, embora importante, não pode ser aplicada de forma isolada, ignorando as dimensões psicológicas e sociais.

É claro que psiquiatras, juristas, psicanalistas e psicologistas não precisam negar que as ações e as pessoas são hediondas, prejudiciais, repugnantes, imorais e injustas. No entanto, discutir as ações de uma pessoa, ou de uma pessoa, em termos do mal, em vez de psicoses, psicopatias, legalidade ou moralidade da ação, ou quaisquer outras categorias disponíveis que não estejam ligadas à noção de mal, convenientemente ofusca e mistifica as tarefas profissionais em questão. É desistir ou renunciar a essas tarefas. O psiquiatra, enquanto psiquiatra, identificará o psicopata como um psicopata, mas não faz sentido descrever um psicopata como mau. Religiosamente falando, o mal deve ser identificado (por exemplo, como pecado) e reparado teologicamente (por exemplo, em termos de redenção e salvação). Secularmente, no entanto, crimes, atos imorais e doenças mentais devem ser identificados e reparados por meio de ingredientes para a disciplina relevante que os considera. A questão não é meramente verbal porque a identificação, o tratamento ou o julgamento estão em jogo. O que precisa ser mostrado é como e por que isso acontece.

 

Jurisprudência e Responsabilidade

A questão da responsabilidade legal é outro aspecto crucial a ser considerado. A atribuição de culpa a um indivíduo, especialmente no contexto de comportamentos sexuais criminosos, exige uma abordagem cuidadosa, sensível e baseada em evidências. A compreensão dos fatores sociais e psicológicos que contribuem para o desenvolvimento de tais comportamentos é fundamental para uma avaliação justa e para a aplicação de sanções apropriadas. A utilização do termo “mal” prejudica esse processo, levando a uma atribuição de culpa simplista e desconsiderando a complexidade das causas e dos contextos em que esses comportamentos ocorrem. O sistema jurídico deve priorizar a busca por justiça, considerando as nuances da individualidade e da responsabilidade, e evitar julgamentos moralistas e precipitados.

 

Perspectivas Culturais Comparadas

De qualquer forma, observa-se que, em certas culturas asiáticas, a concepção de “mal” possui menor peso ou está ausente. Isso levanta a questão sobre o papel da cosmovisão cultural no entendimento e no manejo dos comportamentos desviantes. A valorização de uma perspectiva mais harmonizada com aquilo que é testável e contextualizada contribui para a implementação de abordagens mais eficazes e culturalmente sensíveis. O que é percebido como “mal” em uma sociedade pode ser interpretado de maneira muito diferente em outra, e essa compreensão intercultural é fundamental para o desenvolvimento de intervenções eficazes.

O termo mal não é uma ferramenta adequada para a análise e compreensão dos comportamentos sexuais criminosos. A abordagem proposta defende a adoção de um modelo científico mais abrangente e interdisciplinar, que considere os fatores psicológicos, sociais, biológicos e culturais. Uma análise que inclua essas diversas dimensões contribui para uma compreensão mais completa, objetiva e sensível dos comportamentos sexuais criminosos, permitindo intervenções mais eficazes e uma abordagem mais justa e equitativa do ponto de vista legal. A discussão sobre o mal necessita de um olhar crítico, desconstruindo seus pressupostos religiosos e moralistas, para abrir espaço para análises mais rigorosas, baseadas em evidências e contextualizadas culturalmente.

Referência

Mason, T. (2006). Forensic Psychiatry. Influence of Evil. New Jersey: Human Press.

 

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