Os Vingativos (Parte II) – Pesos e Medidas

Suportei o melhor que pude as injúrias de F.; mas, quando ousou insultar-me, jurei vingança. (…) Por fim, eu seria vingado; este era um ponto definitivamente resolvido, mas o próprio plano como foi traçado impedia a ideia de risco. Deve-se não apenas punir, mas punir impunemente. Um erro não é reparado quando a retribuição vence o seu reparador. É igualmente irreparável quando o vingador não consegue se fazer sentir como tal para aquele que fez o mal”.

(Edgar Allan Poe, O Barril de Amontillado)

A mitologia grega está repleta de temas de vingança. Nêmesis, por exemplo, a Deusa da Vingança, é a personificação da reverência moral pela lei, do medo natural de cometer um erro; ela é frequentemente mencionada junto com o Deus Aedos, o Deus da Vergonha. Para escritores posteriores, como Heródoto e Píndaro, Nêmesis é uma espécie de divindade fatal, pois ela dirige os assuntos humanos de maneira a restaurar as proporções corretas ou o equilíbrio onde quer que tenha sido perturbado. Outrossim, a vingança é um dos motivos centrais nos gêneros literários e é um tema comum em filmes de Hollywood. O sucesso de tais filmes muito possivelmente se deve ao fascínio público pelo deleite da vingança, “o doce sabor da vingança”. Em quase todas as culturas, a vingança, quando “justificada”, assume amiúde o status de uma “obrigação sagrada”. Em muitas culturas, desde os tempos bíblicos e mesmo antes, sempre existiu o princípio da retribuição simétrica, como o “olho por olho” e o “dente por dente”.

Tanto na Mitologia, na Literatura e no Cinema, a vingança concretiza-se através de ações agressivas ou impactantes para amortizar a vergonha do ofendido, sujeitar o ofensor ao castigo e, assim, restituir um “equilíbrio.”

No excerto postado no início do texto, podemos constatar uma reflexão profunda sobre o tema da vingança e a complexidade emocional envolvida nesse processo. O narrador expressa um sentimento de dor e ressentimento pelas injúrias que sofreu, destacando que a ofensa recebida desencadeou um desejo ardente de retribuição. A menção de “jurei vingança” indica uma determinação intensa e uma busca por justiça pessoal, embora essa busca esteja imbuída de um entendimento estratégico sobre como a vingança deve ser exercida. A frase “deve-se não apenas punir, mas punir impunemente” sugere uma ideia de que a vingança não deve apenas ser um ato de retribuição, mas também deve ser realizada de forma que não traga consequências para o vingador. O uso do termo “impunemente” revela uma intenção de ocultar o ato, o que adiciona uma camada de complexidade moral ao que seria inicialmente uma simples busca por justiça. Além disso, o texto também reflete sobre a natureza do erro e da retribuição. A afirmação de que “um erro não é reparado quando a retribuição vence o seu reparador” implica que a vingança que se torna pública ou que é visivelmente sentida pelo ofensor falha em trazer a satisfação esperada ao vingador. Isso sugere que o verdadeiro impacto da vingança deve ser sutil, garantindo que o ofensor sinta a consequência de seus atos sem que o vingador se exponha a riscos.  Por fim, a ideia de que a vingança deve ser sentida pelo ofensor como algo efetivo envolve um componente psicológico que é fundamental para a psicologia da vingança. Isso revela que o objetivo não é apenas corrigir um erro, mas também reestabelecer uma dinâmica de poder onde o ofensor reconhece o sofrimento que causou. Em suma, o texto de Poe aborda de forma sutil e reflexiva as motivações, as emoções e as estratégias envolvidas na vingança, convidando o ledor a considerar as implicações morais e filosóficas que a cercam.

A agressão humana, enquanto expressão da vingança, pode ser atribuída a uma resposta psicofisiológica concebida para manter a sobrevivência do ofendido. As afrontas à nossa autoestima ou narcisismo são retaliadas, uma vez que as humilhações “consistem em ameaças à integridade do Eu.” A luta que se trava através da vingança deve-se, em parte, a um senso duradouro de si mesmo. O Eu danificado e fragilizado pelo ultraje e/ou ofensa passa a nutrir uma raiva destrutiva contra o Outro, que eventualmente transformou o Eu em um Eu Vingador. Na verdade, é a frustração da necessidade de “preservar um sólido senso de identidade” que muitas vezes é “a fonte da violência humana mais fanática”, ou seja, a vingança. Quando o Eu é ameaçado ou ferido incisivamente por outrem, muitas vezes a única resposta que subsiste à tal devastação é a reparação da injustiça.

Para certos indivíduos, não há como voltar, recuar ou desistir da “Cruzada”, porque seria uma covardia recusar-se a equalizar a injustiça recebida. Essa parece ser a lógica interna do vingador (Knoll, 2010a).

Na prática clínica diuturna, durante o manejo das diferentes síndromes de reação ao stress, usualmente verificamos persistentes e recorrentes pensamentos de retaliação associados com sentimentos de raiva contra os perpetradores. As fantasias de vingança não apenas carregam o conteúdo emocional do ódio e da raiva, mas também o do medo. E o medo, meus caros, pode facilmente evoluir para uma franca paranoia (Knoll, 2010b).

A expressão da vingança pode ser vista como uma tentativa de manter a própria sobrevivência do Eu lesado, estuprado e danificado. Afrontas à nossa autoestima ou mesmo ao nosso inerente narcisismo são respondidas como se fossem ameaças insuportáveis ao nosso bem-estar e à nossa própria sobrevivência.

 

O CAMINHO PARA A VINGANÇA

Uma arquitetura da vingança poderia ser assim proposta:

    1. A ofensa do Outro excede os limites da vergonha, da rejeição e da consciência da autopreservação do Eu 
    2. A dor e a raiva resultantes no Eu não conseguem ser contidas ou manejadas
    3. Um curso de autodestruição, aniquilamento e desrespeito por si mesmo se segue
    4. Como um rebote, as fantasias de vingança instalam-se fortemente e se retroalimentam
    5. Essas fantasias podem levar o vingador a experimentar prazer e deleite só em imaginar o sofrimento do Outro e o orgulho de estar ao lado da justiça
    6. A fantasia de vingança promete falsamente um “remédio” poderoso ao ego triturado pelo ofensor (Outro) 
    7. Esse “remédio” tem um efeito temporário de “ilusão de força”, sensação de controle restaurado e coerência interna (Horowitz, 2007)
    8. Se houver, todas as tentativas de reconciliação podem ser recebidas pelo ofendido (Eu) com suspeita, atitude defensiva e desprezo
    9. Em situações extremas, à medida que as fantasias se aproximam da realidade, o ofendido deve passar por um processo pelo qual ele chega a aceitar que poderá estar sacrificando a sua própria reputação e a sua própria vida para a concretização da vingança outrora apenas fantasiada.

 

O PESO DA VINGANÇA

Os vingativos, na sua grande parte, são vítimas e algozes a um só tempo. E, muitas vezes, são vítimas duas vezes: quando foram injustiçados (ou se sentiram dessa forma) e tempos após a concretização do ato vingativo…

No momento da vingança, o ato produz bem-estar, emoções positivas, gratificação e sensação de “dever cumprido”, de justiça. Assim, embora os comportamentos de busca por vingança sejam muitas vezes o produto da raiva em relação a uma situação, comportamentos de busca por vingança são manifestados pelo desejo de experimentar uma sensação recompensadora (de gratificação), que muitas vezes ocorre quando simplesmente se sabe que se tem a capacidade de se vingar contra o ofensor. Apesar disso, tempos depois, os indivíduos muitas vezes se arrependem das suas ações vingativas (Chester & DeWall, 2017).

 

MEDIÇÃO DA VINGANÇA

Para realizar pesquisas quantitativas a respeito dos vingativos bem como tentar quantificar o grau de raiva motivadora da vingança, vários autores têm já desenvolvido escalas de avaliação. Uma destas escalas, a chamada Escala Breve de Tendências Vingativas (BSVT) é um instrumento composto de 11 itens criados para avaliar três dimensões (variáveis latentes) da vingança: o ressentimento, o planejamento de vingança e a justificativa para a vingança.

Ao aplicar tal escala, os respondedores devem escolher uma das cinco opções de resposta em uma escala Likert, onde o menor valor é “Discordo totalmente” (1), e em ordem crescente, “Discordo” (2), “Indiferente” (3), “Concordo” (4), “Concordo totalmente” (5). No início da escala, os respondedores leem a seguinte instrução: “Abaixo haverá uma série de afirmações. Por favor indique a opção que melhor descreve você”. Os respondedores devem ser informados de que o teste tem como objetivo avaliar diferentes atitudes relacionadas à retaliação ou diferentes respostas a um tratamento injusto.

Após a tradução e retrotradução dessa escala, bem como a avaliação da compatibilidade das palavras usadas no nosso idioma bem como o sentido de cada frase por uma equipe de especialistas, os itens da escala estão postados abaixo:

    1. Planejar cenários de vingança me dá satisfação
    2. A ideia de magoar a pessoa que me magoou estimula a minha imaginação
    3. Frequentemente tenho pensamentos de vingança
    4. Penso muitas vezes em prejudicar as pessoas que me magoaram
    5. Tenho pensado na vingança como uma forma de reparar os danos que recebi
    6. O dano causado a mim me faz pensar em vingança
    7. Guardo ressentimento quando alguém me machuca/me magoa
    8. Eu já cometi atos de vingança
    9. Considero como o meu dever punir o agressor, caso as autoridades não tenham feito isso
    10. Sinto-me mais calmo quando vingo o meu agressor
    11. Acho que a vingança é a coisa certa a fazer

 

As perguntas 1 a 4 referem-se ao planejamento da vingança, as perguntas 5 a 8 referem-se ao ressentimento e as perguntas 9 a 11 referem-se à justificativa para a vingança (Flores-Camacho, Castillo-Verdejo, & Penagos-Corzo, 2022).

 

PALAVRAS FINAIS

A vingança é uma tendência humana muitas vezes destrutiva. O vingador exaure-se em suas fantasias nem sempre factíveis e rumina a respeito delas. O ideal seria termos um “santuário” cerebral para isolar os males sofridos e transformá-los em ações benéficas para todos nós. Deixar para lá não significa perdoar. Deixar para lá e transformar-se significa dar um novo sentido para a provocação do Outro, sempre visando ao nosso bem-estar duradouro e sem arrependimentos futuros.

Referências

Chester, D. S., & DeWall, C. N. (2017). Combating the sting of rejection with the pleasure of revenge: A new look at how emotion shapes aggression. J Pers Soc Psychol, 112(3), 413-430.

Flores-Camacho, A. L., Castillo-Verdejo, D. L., & Penagos-Corzo, J. C. (2022). Development and Validation of a Brief Scale of Vengeful Tendencies (BSVT-11) in a Mexican Sample. Behav Sci (Basel), 12(7).

Horowitz, M. J. (2007). Understanding and ameliorating revenge fantasies in psychotherapy. Am J Psychiatry, 164(1), 24-27.

Knoll, J. L. (2010a). The "pseudocommando" mass murderer: part I, the psychology of revenge and obliteration. J Am Acad Psychiatry Law, 38(1), 87-94. 

Knoll, J. L. (2010b). The "Pseudocommando" mass murderer: part II, the language of revenge. J Am Acad Psychiatry Law, 38(2), 263-272. 

 

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