Análise Qualitativa das Atribuições ao Mal dos Atos Sexualmente Ofensivos entre Agressores Sexuais – Uma Análise dentro do Dialogismo Bakhtiniano

“Essa luta contra o temor cósmico, em todas as suas formas e manifestações, apoiava-se (…) sobre o princípio material incluído no próprio homem. De alguma forma, o homem assimilava os elementos cósmicos, encontrando-os e experimentando-os no seu próprio interior, no seu próprio corpo; ele sentia o cosmos em si mesmo”.

(Mikhail Bakhtin – A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François Rabelais)

 

INTRODUÇÃO

Este texto pretende:

  1. Amalgamar na Introdução a aplicação das teorias da atribuição com o dialogismo bakhtiniano na interpretação e na forma do “dar desculpas” por alguma ação ou algum comportamento; no caso em pauta, comportamentos sexualmente ofensivos.
  2. Explorar os diferentes enunciados ao atribuir causas sobrenaturais à própria conduta (teoria da atribuição) e como tais pronunciados se aplicam à experiência de agressores sexuais que tentam desculpar-se pelos seus atos nocivos através da crença da influência de um Mal reificado sobre o seu comportamento nocivo.
  3. Elaborar uma tipologia de agressores sexuais baseada nos seus enunciados sobre a influência do Mal no comportamento sexualmente ofensivo.

As teorias da atribuição, originalmente da psicologia social, investigam como as pessoas explicam os seus próprios comportamentos ou o de outras pessoas, atribuindo causas a eventos e ações, dando “desculpas”.

Mikhail Bakhtin, pensador russo influente no campo da teoria literária, desenvolveu o conceito do dialogismo, que enfatiza a natureza interativa e multifacetada da linguagem e do significado. No dialogismo, o significado não é inerente às palavras em si, mas sim emergente da interação entre os enunciados, os contextos e os participantes do diálogo. O ato de se desculpar, portanto, não é simplesmente um evento monológico, mas sim um evento complexo, situado em um contexto dialógico que envolve múltiplas vozes e perspectivas (Dendith, 1995).

Ao analisar o ato de pedir desculpas, devemos considerar as diversas vozes que contribuem para a sua constituição e para o seu significado. A voz do indivíduo que se desculpa é, sem dúvida, central, mas é também moldada e afetada pelas vozes dos outros envolvidos na situação. Isso inclui a voz da pessoa a quem o pedido de desculpas é direcionado, a voz do contexto social mais amplo, e até mesmo a voz do ideário do “Mal”.

A questão da atribuição da culpa ao “Mal” em um pedido de desculpas não é trivial. De acordo com o dialogismo bakhtiniano, a culpa pode não ser atribuída a um único agente, mas sim emergir de uma interação complexa e muitas vezes ambígua de fatores diversos. Isso é semelhante à experiência literária descrita por Bakhtin, onde a voz do narrador muitas vezes se entrelaça com as vozes dos personagens, criando uma polifonia de significados.

No contexto de um ato de se desculpar, essa polifonia pode refletir a percepção de que o “Mal” não é simplesmente uma força externa, mas sim algo inerente à condição humana. O “dar desculpas” pode, por exemplo, refletir a tomada de consciência da própria falibilidade ou da inabilidade de controlar eventos externos que levaram à situação atual. No ato de se desculpar, dessa forma, o sujeito reconhece a própria contribuição do “Mal”, mas sem assumir toda a responsabilidade por ele.

O dialogismo permite que diferentes vozes e interpretações se entrelacem no significado de um ato de se desculpar, não culminando em uma resolução unívoca ou final. O significado permanece aberto, multifacetado, situado no processo contínuo de negociação e interação entre as vozes participantes. Assim, o ato de se desculpar, com sua atribuição da culpa ao Mal, destaca a complexidade e a riqueza da experiência humana em um contexto social e interacional.

É importante observar que a aplicação do conceito do dialogismo a situações cotidianas requer uma reflexão cuidadosa sobre o contexto específico e as nuances do discurso. Não há uma maneira única e correta de interpretar o ato de se desculpar, e a riqueza do dialogismo reside, justamente, nessa pluralidade de significados.

Dito isso, o ato de se desculpar, aparentemente simples, revela-se, sob a lente do dialogismo bakhtiniano, um complexo palco de vozes em luta por hegemonia. Não se trata apenas de uma declaração isolada, mas de um microcosmo de discursos que se entrelaçam, revelando as tensões entre a responsabilidade pessoal e as justificativas externas. Ao se desculpar, o indivíduo não emite uma voz única e monolítica, mas sim um coro de enunciados que dialogam entre si e com o contexto da situação.

 

As Vozes nos Enunciados

Em primeiro lugar, temos a voz da responsabilidade, que reconhece a inadequação do comportamento e a necessidade de reparação. Essa voz, frequentemente tímida e hesitante, busca assumir a culpa e a consequência dos atos. Porém, ela muitas vezes entra em conflito com outras vozes, que tentam diluir ou até mesmo anular sua força.

Uma dessas vozes é a voz da justificativa, que busca explicar o comportamento inadequado, atenuando sua gravidade. Essa voz pode evocar diversos discursos sociais: a voz da cultura, que apresenta normas e valores que justificariam, parcialmente, a ação; a voz da situação, que descreve as circunstâncias que tornaram o comportamento inevitável; a voz do agressor, que aponta a responsabilidade de terceiros pelo ocorrido. Todas essas justificativas procuram criar uma espécie de “contra-discurso” que desafia a voz da responsabilidade.

Em seguida, temos a voz do arrependimento, que expressa pesar pela ação realizada. Esta voz não necessariamente busca eximir a culpa, mas reconhece a dor causada e a própria dor interna do agressor. Ela dialoga com a voz da responsabilidade, reforçando a sinceridade da desculpa, mas também pode conflitar com a voz da justificativa, se o arrependimento for superficial e não conduzir a uma mudança do comportamento.

Finalmente, a voz da desculpa também implica uma resposta esperada da outra pessoa, a quem a desculpa é dirigida. A voz do interlocutor, por sua vez, também é heteroglóssica. Ela pode ser a voz da aceitação, do perdão, da compreensão; ou, ao contrário, a voz da desconfiança, da incredulidade, da revolta. A eficácia da desculpa depende, em grande parte, da recepção dessa voz.

Assim, o “dar desculpas” pode ser encarado como uma complexa negociação entre diversas vozes, expressando tensões, contradições e estratégias. A análise bakhtiniana revela que a desculpa é um processo comunicativo profundamente dialógico, onde a sinceridade e a eficácia da desculpa dependem da articulação e da interação dessas diversas vozes e de como o contexto social influencia a recepção dessa comunicação.

 

Os Enunciados sobre o Mal

Sob a ótica do dialogismo (Bakhtin, 1981), esse complexo palco de vozes em conflito pode não se harmonizar simplesmente com uma declaração de arrependimento, mas sim de uma intrincada trama discursiva onde a responsabilidade pessoal dialoga com forças externas, atribuindo o desvio moral a uma entidade transcendente – o Mal reificado. A análise desta performance discursiva revela a complexidade da experiência humana e as estratégias utilizadas para lidar com a culpa e a transgressão moral.

A ambivalência das múltiplas vozes manifesta-se na própria escolha de atribuir a ação a uma força externa, o Mal, demonstrando a luta entre a assunção da culpa e a necessidade de se proteger da responsabilidade moral. Voloshinov (1973) já abordara a natureza ideológica da linguagem, lembrando que o discurso nunca é individual, sendo moldado pelas forças sociais e culturais dominantes, incluindo crenças sobre o livre-arbítrio e a interferência divina ou demoníaca.

Contrapondo-se à voz da responsabilidade, surge a voz da justificativa, que busca atenuar a gravidade do comportamento inadequado ao transferi-lo para o Mal. Essa voz evoca um discurso teológico místico ou supersticioso, atribuindo à ação uma causalidade sobrenatural. Ela se apropria de crenças e narrativas pré-existentes sobre o poder do Mal na influência do comportamento humano. Essa voz dialoga com a responsabilidade, não a contradizendo completamente, mas sim a relativizando, sugerindo que a ação, embora inadequada, não foi inteiramente produto da vontade consciente do indivíduo. A análise de como o indivíduo utiliza esse recurso é a chave para compreender as implicações ideológicas e as relações de poder no jogo discursivo (Foucault, 1999).

Além disso, a voz do arrependimento pode ser enfraquecida pela prevalência da justificativa. O arrependimento genuíno implicaria em assumir plena responsabilidade e buscar a reparação, mas, neste caso específico, a culpa é de alguma forma atribuída ao Mal, diminuindo a intensidade do pesar pessoal. Essa voz dialoga tanto com a responsabilidade quanto com a justificativa, buscando uma reconciliação entre o reconhecimento da falha e a minimização da culpa pessoal. Essa tensão se reflete nas expressões (verdadeiras ou não) de remorso, que podem oscilar entre a sinceridade profunda e a busca de perdão por algo sobre o qual o indivíduo tenta se sentir parcialmente inocente.

Por fim, a performance discursiva de pedir desculpas leva em conta a expectativa de resposta do interlocutor, a quem a desculpa é dirigida. Essa voz do interlocutor, como já dito, pode expressar aceitação, perdão, compaixão ou, ao contrário, incredulidade, julgamento, e rejeição da desculpa. A eficácia da desculpa depende, portanto, não só da forma como é expressa, mas também da maneira como essa expressão é recebida e interpretada pelo contexto social. Bauer (2007) demonstra como as práticas discursivas são reguladas por convenções sociais, mostrando que o sucesso de uma desculpa não depende apenas da sinceridade, mas da adequação às expectativas do interlocutor.

O ato de pedir desculpas, atribuindo a culpa ao Mal, é, portanto, uma complexa performance discursiva que reflete as tensões entre a responsabilidade pessoal e as justificativas externas. O dialogismo bakhtiniano nos ajuda a compreender como essas vozes se entrelaçam, revelando as estratégias ideológicas e sociais utilizadas para lidar com a culpa e a transgressão moral. A análise da linguagem, dos seus contextos e das suas interações permite desvendar as estratégias de justificação e as complexidades da experiência humana ao confrontar a falha moral e a responsabilidade por ela.

 

MÉTODO

Procedimento

A análise qualitativa de dados é um processo de trazer ordem, estrutura e significado para os dados coletados. A análise qualitativa de dados está, na verdade, buscando a relação entre categorias e temas de dados almejando aumentar a compreensão de um fenômeno determinado. Assim, em vez do que ser rigoroso e baseado em procedimentos, o pesquisador deve estar alerta, ser flexível e interagir positivamente com os dados coletados.

Como os dados qualitativos são baseados em textos, a pedra angular para analisar esses dados é o processo de codificação. Códigos são rótulos a serem atribuídos para uma ampla gama de informações descritivas ou inferenciais compiladas durante uma pesquisa. Os códigos geralmente aderem a pedaços de palavras, frases, sentenças ou o parágrafo inteiro. A codificação envolve buscar palavras ou frases relacionadas mencionadas pelos entrevistados. Estas palavras ou frases são então combinadas para realizar uma conexão entre elas (Miles and Huberman, 1994).

Usa-se, aqui, o software NVIVO, importando os documentos selecionados. A partir de então, “nós” foram criados. A função dos “nós” é armazenar um local no NVivo para referências ao texto dos códigos, o que pode significar que dois ou mais tipos de nós conterão todas as informações conhecidas sobre um determinado código ou categoria.

 

Participantes

Setenta e cinco homens agressores sexuais de adultas e/ou de crianças em tratamento no ABSex (Ambulatório de Transtornos da Sexualidade das Disciplinas de Psiquiatria e Psicologia Médica do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC), afiliados religiosamente, forneceram por escrito o consentimento livre e esclarecido para a participação nessa pesquisa. Destes, 46 (62%) afirmaram que o comportamento sexualmente ofensivo havia sido influenciado pelo Mal, o Mal reificado.

 

Medidas

Vários instrumentos de avaliação foram utilizados. Para a proposta deste texto, nós estamos considerando apenas as perguntas abertas que lhes foram realizadas:

Você acredita no Mal como uma entidade, uma força ou espíritos?

Você acredita que este Mal influenciou as suas condutas sexualmente inadequadas contra crianças ou adultos? Se sim, deixe-nos saber como isso ocorreu (Mason, 2006).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise investigou frases de 46 agressores sexuais afiliados religiosamente que atribuíram ao Mal o seu comportamento sexualmente ofensivo. Treze (28%) eram católicos, 27 (59%) eram protestantes e 6 (13%) eram afiliados às religiões Afro-Brasileiras. Sob a lente da teoria de Mikhail Bakhtin, especialmente fundamentada na obra “Carnaval”, e focando na tensão dialética entre o oficial e o não-oficial, o sério e o cômico, a ordem e o caos, três grupos foram gerados.

As 46 frases, aparentemente pessoais e de natureza confessional, revelaram-se como microcosmos que refletem conceitos mais amplos da obra de Bakhtin.

 

1. O Portador da Revelação (n = 25)

Exemplo de frase: “O exu me contou que me revelará o porquê fiz tudo isso”.

Esse tipo de frase introduz uma voz exterior e marginal, a de Exu, figura da tradição religiosa afro-brasileira associada ao mistério, à ambiguidade e à transgressão. Exu, nesse contexto, representa o elemento não-oficial, o que está fora da ordem estabelecida, a força que opera nos bastidores do consciente e que influencia as ações do sujeito. A revelação prometida por Exu reforça a ideia de um conhecimento oculto, de uma verdade que não se encontra no domínio do discurso oficial ou racional. Essa influência externa se assemelha à penetração do lúdico no mundo oficial, rompendo momentaneamente a hierarquia e introduzindo uma perspectiva alternativa.

 

2. O Possuído (n = 12)

Exemplo de frase: “Às vezes, era como se a própria criança incitasse o demônio dentro de mim”.

Esse modelo de frase aponta para um conflito interno, uma guerra entre a “criança” – símbolo de inocência, pureza ou impulso não-reprimido – e o “demônio” – a força do mal, do impulso destrutivo ou inconsciente. Essa dinâmica interna espelha a luta entre o oficial e o não-oficial na teoria Bakhtiniana. A “criança” seria o elemento externo da espontaneidade, da liberdade, que desafia o controle interno racional, enquanto o “demônio” representa a potencialidade do caos e da transgressão, inerente à natureza humana. A ambiguidade da frase (“como se”) sugere a dificuldade em separar os elementos, apontando para a natureza intrínseca do conflito, análoga à coexistência paradoxal do oficial e não-oficial na visão bakhtiniana.

 

3. O Ambivalente (n = 9)

Exemplo de frase: “Me sentia sem controle, mas às vezes achava que eu mesmo podia controlar o maligno”.

Esse modelo de frase expressa a ambivalência característica do lúdico indecente. A sensação de perda de controle reflete a força do não-oficial, a capacidade do caos de interromper a ordem. No entanto, a crença na possibilidade de controlar o “maligno” indica uma tentativa de recuperar a agência, de dominar o elemento caótico. Essa luta por domínio demonstra a dialética presente no carnaval: a desconstrução do oficial, mas também a busca por uma possível reordenação, por uma nova hierarquia, mesmo que transitória. A frase ilustra a possibilidade de, mesmo no meio do caos, buscar (e, em momentos, até encontrar) o controle, refletindo a natureza fluida e paradoxal da experiência “carnavalesca” proposta por Bakhtin.

Em resumo, as frases, analisadas à luz do pensamento de Bakhtin, revelam a complexa dinâmica entre ordem e caos, oficialidade e marginalidade, controle e perda de controle, assunção e atribuição da responsabilidade. Elas mostram a tensão inerente à experiência humana e à busca de sentido ou salvação, em um contexto em que o não-oficial, ainda que ameaçador, também contém a possibilidade de transformação, cilada ou mesmo redenção.

 

Referências

Bakhtin, M. (2013). A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec Editora.

Bakhtin, M. (1981). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.

Bauer, M.W. (2007). Discurso e processo: uma introdução à sociolinguística. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS.

Dendith, S. (1995). Bakhtinian Thought. An Introductory Reader. London: Routledge Press.

Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes.

Mason, T. (2015). Forensic Psychiatry. Influence of Evil. New Jersey: Humana Press.

Miles, M; Huberman, A. (1994). Qualitative Data Analysis. California: Sage Publications Inc.

Voloshinov, V.N.(1973). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora 34.

 

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