Um sádico encontra um masoquista. O masoquista pede ao sádico para espancá-lo. Ao que o sádico responde com um sorriso de prazer: Não!
Introdução
O sadismo sexual refere-se a um comportamento sexual em que a pessoa obtém excitação ao infligir dor – psicológica e/ou física – à sua parceria sexual. Fantasias sádicas ou os atos podem envolver atividades que indiquem o domínio sobre a vítima (por exemplo, forçar a vítima a rastejar, manter a vítima algemada e/ou amordaçada). Rituais sexuais envolvendo a administração de choques elétricos, espancamento, queimadura, corte, mutilação, beliscão, estupro, contenção (bondage), surra, esfaqueamento (piquerismo), estrangulamento, tortura, chicotadas ou até mesmo assassinato (lust murder). Trata-se, de fato, da erotização da dominação e do controle, em oposição ao masoquismo, que é a erotização da submissão. É o sofrimento e/ou submissão da vítima, e não tão somente a inflição da dor física ou psicológica que é sexualmente excitante.
Para os sádicos sexuais, cominar dor é apenas um meio de criar sofrimento e obter as respostas desejadas de obediência, submissão, humilhação, medo e terror (Aggrawal, 2009).
Na prática clínica diuturna, vê-se que, em muitos casos, tanto o sadismo como o masoquismo são encontrados no mesmo indivíduo; de fato, muitos sadomasoquistas são capazes de alterar conscientemente até a sua orientação sexual para se ajustarem às necessidades e/ou demandas de um potencial parceiro. Também é muito comum que pessoas que assumem o papel dominante em atividades sadomasoquistas tenham começado como submissos. Diante disso, muitos clínicos acabam por sugerir que uma distinção entre o sadismo e o masoquismo pode ser nubilosa.
Abaixo, trataremos de algumas concepções sobre o sadismo sexual formatadas por dois eminentes psiquiatras na virada do século XX. Toda a construção dessa questão firmada hoje, nesse atual momento, deve-se ao trabalho árduo de médicos observadores de outras épocas que descreveram quadros clínicos sempre pautados na riqueza de detalhes e nas interpretações pessoais e teóricas.
Wilhelm Stekel (1868-1940)
Para Wilhelm Stekel (1954), uma concepção errônea do sadismo sexual é considerar que o fator central desse fenômeno é a dor e, consequentemente, tratar da dor que produz o prazer. O termo “algolagnia”, cunhado por Albert von Schrenck-Notzing (1862-1929), um psiquiatra alemão, corresponde exatamente a tal concepção. Todavia, algumas características, apresentadas aqui de forma sumária, parecem consubstanciar de forma óbvia o comportamento do sádico sexual:
A necessidade de poder, vencendo resistências e envilecendo o companheiro humilhado.
O comportamento tem um caráter recorrente e se manifesta como uma necessidade obsessiva de recorrência.
Um deslocamento afetivo (detachment) ocorre nas práticas sexualmente sádicas. O prazer, ao contrário de ser manifestado por carinho e afeto, delicadeza e intimidade, é obtido pela imposição da dominação do praticante e, às vezes, pela injunção da dor à parceria.
O sadismo, enquanto um fenômeno “parapático”, caracteriza-se pela reversão. Isso significa que, o sádico pode querer inverter, em algum momento, os papeis, tornando-se masoquista.
Em casos de sadismo sexual, encontraremos as manifestações de uma sexualidade atávica em sua totalidade, além de um fetichismo bem desenvolvido.
O sádico ficará eroticamente excitado quando encontrar uma parceria que o teme voluptuosamente.
O sádico deseja despertar em seu objeto uma sensação de medo.
O sádico alcança a satisfação sexual observando a angústia do outro. As súplicas da pessoa assustada estimulam a sensação sádica até a obtenção do prazer mais intenso.
O sádico, como o masoquista, busca uma voluptuosidade extragenital de ordem erótica no lugar do estímulo puramente genital, que ele não sente ou, pelo menos, não desperta seu interesse de forma plena.
Os atos masoquistas e sádicos geralmente se complementam dentro de uma mesma pessoa, como uma forma de “fome de sensações”.
Havelock Ellis (1859-1939)
Já o sexólogo britânico Henry Havelock Ellis preferiu o termo “algolagnia”, vendo o sadomasoquismo como um amor pela dor. Ele observou que “o sádico deseja infligir dor, mas em alguns casos, se não na maioria, ele deseja que isso seja sentido pela parceria e/ou vítima como uma demonstração de afeto”, muito embora esse conceito tenha sido emprestado de outro psiquiatra, Kraft-Ebing (1840-1902) (von Kraft-Ebing, 1886).
Havelock Ellis preferiu comparar conceituações formuladas por diferentes autores para, enfim, tomar uma posição mais pessoal a esse respeito. Em linha com esse autor, uma das definições mais completa é a de Moll, que descreve o sadismo como uma condição na qual “o impulso sexual consiste na tendência de atacar, maltratar e humilhar a pessoa desejada”. Uma extensão adicional é feita na definição de Féré como “a necessidade da associação da violência e da crueldade com o prazer sexual, sendo que tal violência ou crueldade não necessariamente é exercida pela própria pessoa que busca o prazer sexual nesta associação“. “O sadismo patológico”, afirma ele, “é uma perversão sexual impulsiva e obsessiva, caracterizada por uma estreita ligação entre o sofrimento infligido ou representado mentalmente e o orgasmo sexual”. Iwan Bloch (“Eugen Dühren”), no decorrer de seu livro a respeito do Marquês De Sade, tentou uma definição estritamente nesta base e, como se verá, é necessário torná-la muito elaborada: “Existe uma conexão, seja intencionalmente procurada ou oferecida, de excitação e prazer sexual com a aparência real ou apenas simbólica (ideal, ilusória) de eventos assustadores e chocantes, ocorrências e práticas destrutivas, que ameaçam ou destroem a vida”.
A breve discussão acima a respeito das definições de “sadismo sexual” impõe a ideia de que, em qualquer relação envolvendo o prazer e imposição de dor/submissão, os limites entre o saudável e o doente, o seguro e o arriscado, podem ser facilmente rompidos (Ellis, 1928).
Conjunções de Visões
Ambos os autores, Havelock Ellis e W. Stekel, aventam a existência de dois grupos distintos de sensações: um, na linha mais “masculina”, que se deleita em demonstrar força e muitas vezes inflige dor ou um simulacro de dor; a outra, na linha “feminina”, que se deleita em se submeter a essa força, e até mesmo em encontrar prazer em uma leve dor, ou na ideia da dor, quando associada às experiências de prazer. Eles admitem que estes “dois grupos” de sensações são complementares e, dentro de alguns limites, podem fazer parte de um relacionamento sexual normal.
Pisando, a observação acima não significa que os homens são mais sádicos e as mulheres mais masoquistas. Os autores tratam os termos “masculino” e “feminino” dentro de um contexto representacional, quase arquetípico.
Uma Comparação entre H. Ellis e W. Stekel quanto às formas de representar o conceito de Sadismo Sexual
O texto acima mostra uma clara presença de múltiplas vozes e perspectivas no discurso sobre o sadismo sexual. Não é apenas a comparação entre W. Stekel e H. Ellis, mas também a incorporação de outros autores como Kraft-Ebing, Moll e Féré. Essa multiplicidade de vozes cria uma polifonia, onde cada perspectiva mantém sua individualidade, sem ser totalmente absorvida por uma voz dominante. Esse texto não pretende impor uma única interpretação como a certeira, mas sim um panorama de diferentes compreensões do fenômeno sádico sexual.
O texto não pretendeu desenvolver um diálogo entre W. Stekel e H. Ellis. As ideias de cada autor são apresentadas como pontos de vista distintos, criando um contraponto. W. Stekel, com sua ênfase nas dinâmicas de poder e no comportamento compulsivo, contrasta com a ênfase de Ellis na dimensão sensual do sadomasoquismo, inclusive considerando a possibilidade de um “amor pela dor”.
É importante considerar que as próprias ideologias do século XX, que influenciaram ambos os autores, estão intrinsecamente ligadas às suas perspectivas. O contexto histórico e social é crucial para entender as limitações e preconceitos presentes nas suas análises.
A menção a outros autores, como Kraft-Ebing, Moll e Féré, demonstra a intertextualidade da discussão. O texto se insere numa rede de diálogos pré-existentes e contribui para um debate em constante construção e mesmo desconstrução. A “fome de sensações”, presente em alguns conceitos, representa um acúmulo de diferentes discursos que convergem e se entrelaçam na formação do significado final. E do que se trata?
Trata-se do discurso sobre o sadismo sexual, não como um monólogo de uma única verdade, mas sim como um processo dialógico e polifônico de construção de significados. O texto permite uma análise crítica das ideologias subjacentes às diferentes perspectivas e de como elas moldam a interpretação de um comportamento sexual complexo e muitas vezes mal compreendido. A heteroglossia do texto pode também abrir espaço para uma leitura crítica e um questionamento das perspectivas tradicionais (e preconceituosas) sobre o tema.
Referências Aggrawal, A. (2009). Forensic and Medical-legal Aspects of Sexual Crimes and Unusual Sexual Practices. Boca Raton: CRC Press. Ellis, H. (1928). Studies in the Psychology of Sex. Eonism and other Supplementary Studies. (Vol. 7). Philadelphia: F. A. Davis Company Press. Stekel, W. (1954). Sadismo Y Masoquismo. Psicología del Odio Y la Crueldade. Buenos Aires: Ediciones Imán. von Kraft-Ebing, R. (1886). Psychopathia Sexualis with special reference to the Antipathic Sexual Instinct: A Medico-Forensic Study. New York: Rebman Company.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.