A exposição à cola de sapateiro traz efeitos tóxicos ao Sistema Nervoso Central com sintomas neurológicos, psiquiátricos
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“Olá, doutor. Meu pai trabalhou como sapateiro a vida toda e por consequência tinha contato diariamente com a cola de sapateiro. Hoje, aos 71 anos, tem apresentado um quadro de neuropatia com perda de movimentos nos membros inferiores e superiores, além de fraqueza muscular. Está fazendo exames para possível diagnóstico de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), mas os mesmos estão inconclusivos. Esse uso da cola no trabalho por muitos anos poderia ser a causa desse problema de saúde?
Resposta
Existem vários solventes orgânicos que podem ser classificados como hidrocarbonetos (alifáticos, aromáticos, cíclicos ou halogenados), éteres, álcoois, aldeídos, cetonas e aminas. Muitos compostos usados na indústria constituem uma combinação de dois ou mais destes agentes.
A absorção através dos pulmões e da pele ocorre rapidamente após a exposição, sendo que os níveis séricos destas substâncias dependerão da ventilação no ambiente de trabalho, da duração da exposição, da solubilidade do agente no tecido gorduroso, dentre outros. O metabolismo dos solventes usualmente é realizado através do fígado e os mesmos são eliminados através das fezes e da urina. No entanto, muitos solventes podem ficar retidos em órgãos com alto teor de gordura, como é o caso do cérebro.
Alguns solventes têm maior toxicidade cerebral do que outros e, às vezes, os seus metabólitos são até mesmo mais tóxicos (por exemplo, o n-hexano e a metil-butil-cetona). Estes agentes e metabólitos podem ligar-se às proteínas, DNA e RNA humanos.
Cola de sapateiro e seus efeitos
Os efeitos tóxicos ao Sistema Nervoso Central decorrentes da exposição ocupacional crônica aos solventes têm preocupado especialistas há muito tempo. Muitos estudos têm apontado sintomas neurológicos e psiquiátricos entre aqueles que, cronicamente, são expostos aos solventes voláteis, tais como:
a) Tontura;
b) Prejuízo da audição;
c) Irritabilidade constante;
d) Sintomas depressivos;
e) Apatia;
f) Pele seca;
g) Extremidades frias;
h) Sensação de formigamento em membros inferiores e superiores;
i) Prejuízo da memória;
j) Prejuízo do processo de execução de tarefas delicadas.
Os mais comuns sintomas neurológicos entre aqueles expostos cronicamente aos solventes em geral residem no prejuízo da atenção, memória, desempenho motor e pensamento abstrato.
Quando uma associação causal unidirecional entre a exposição aos solventes e um problema neurológico é feita, deve-se levar em consideração múltiplos fatores mediadores e moderadores. Fatores como ventilação, uso de equipamentos de segurança individual, tempo de exposição, tipo de solvente utilizado, padrão de abuso, vulnerabilidade genética, tipos de solventes, combinação de solventes são alguns deles.
Cola de sapateiro, Parkinson e ELA
Recentes relatórios publicados nos Estados Unidos da América concernentes à saúde ocupacional de trabalhadores expostos aos solventes, têm investigado uma possível correlação entre a exposição ocupacional crônica de cetonas, benzeno, tolueno e xileno com certas doenças neurológicas, como a Doença de Parkinson e a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Todavia, estes relatórios não são conclusivos sobre uma associação causal unidirecional.
Situando este texto na sua pergunta, devemos pontuar que a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) é uma doença do neurônio motor caracterizada pela perda progressiva das funções motoras. Embora as mortes relacionadas às complicações relacionadas à ELA tipicamente ocorram dentro de 3 a 5 anos após o diagnóstico, cerca de 5% dos casos sobrevivem cerca de 10 ou mais anos. Apesar do curso dramático desta doença (ELA), pouco é conhecido sobre os fatores que influenciam o seu surgimento.
Dentro do campo dos fatores associados com o risco de desenvolver ELA, estão os fatores ambientais e ocupacionais. Alguns estudos têm, de fato, sugerido a associação entre a exposição crônica aos solventes com o surgimento da ELA, principalmente entre homens. Considerando a interação entre fatores genéticos e ambientais/ocupacionais, alguns estudos têm apontado um risco aumentado para o desenvolvimento da ELA entre homens expostos cronicamente a múltiplos solventes, com especial atenção ao cloreto de metileno.
O cloreto de metileno tem propriedades carcinogênicas, devido às suas ações tóxicas ao DNA e indução de estresse oxidativo com consequente lesão e morte celular. Desta forma, a associação entre ELA e exposição crônico aos solventes parece existir, não como uma relação de causalidade, mas sim como um relação de risco.
Atenção! Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.