Os “gatilhos” que podem levar a recair nas drogas devem ser evitados. No entanto, os “gatilhos”, per si, não necessariamente assolam o controle do dependente em recuperação
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“Meu irmão largou a maconha e a cocaína há uns três anos e hoje frequenta um grupo de autoajuda. Ele me contou que recentemente voltou a ouvir bandas de rock, cujo conteúdo das letras fala muito sobre maconha e cocaína. Não falei nada com ele no sentido de repreendê-lo, mesmo porque ele está abstêmio, mas fiquei pensando sobre isso… Se ele ficar “se nutrindo” com as ideias veiculadas nessas letras, se isso poderia ser um gatilho para ele voltar às drogas. Há razão para me preocupar? Obrigado.”
Resposta
Com raízes neurobiológicas, genéticas e psicossociais, a Síndrome de Dependência de Substâncias Psicoativas é uma doença de curso crônico. Aquele que apresenta problemas com o uso de substâncias, mesmo que atualmente abstinente, deve sempre observar situações de risco relacionadas com possíveis lapsos ou recaídas. Sendo assim, o tratamento deve se dar por tempo bastante prolongado.
Gatilhos que podem levar a recair nas drogas
São várias as situações e fatores ditos “gatilho”, ou seja, aqueles que facilitam, promovem ou mesmo evocam o uso de substâncias. Uma das estratégias terapêuticas mais utilizadas no tratamento psicossocial daqueles com problemas com o uso de substâncias psicoativas é a identificação dessas situações/fatores “gatilho” objetivando evitá-los ou mesmo driblá-los.
Devemos sempre lembrar que os “gatilhos” não forçam o dependente a usar drogas; eles aumentam a chance do dependente de voltar a usá-las.
Infelizmente, durante o curso prolongado de consumo de substâncias psicoativas, algumas áreas cerebrais fazem uma “associação” entre o uso de drogas e determinadas situações do dia a dia. Estas situações do dia a dia podem acabar tornando-se verdadeiros estímulos para o uso de substâncias. Diante desses estímulos ou “gatilhos”, aqueles usuários problemáticos de substâncias podem apresentar importante fissura pela droga de preferência, tornando-os vulneráveis aos lapsos e recaídas.
“Gatilhos” para recair nas drogas podem ser internos ou externos
Os “gatilhos” externos são pessoas, objetos, atividades ou locais que promovem recordações a respeito do uso prévio de substâncias. Alguns destes “gatilhos” externos podem ser citados abaixo:
- Manter contato com amigos usuários;
- Ter parceiros usuários;
- Ter uma vizinhança complacente ao consumo de substâncias;
- Ir para bares e clubes;
- Assistir a shows;
- Passear nos centros de cidades;
- Ir para locais em que o uso é frequente;
- Passar em frente às “biqueiras”;
- Ter as parafernálias (papel de seda, canudos, cachimbo etc);
- Ter dinheiro disponível;
- Certas mobílias (pia de mármore, criado-mudo etc) usadas previamente para preparar as substâncias e usá-las;
- Ouvir um particular gênero musical;
- Ter atividades sexuais com novos parceiros ou com parceiros usuários;
- Estar em férias (“eu mereço curtir um pouco”).
Os “gatilhos” internos são pensamentos, sentimentos e emoções associadas ao prévio consumo de drogas. Estes “gatilhos” são mais difíceis de manejar, uma vez que os pensamentos sobre drogas, as lembranças das emoções prazerosas vividas durante o uso podem ser espontâneas ou mesmo evocadas por situações de estresse, frustração, solidão e apatia.
Em termos bastante amplos, o cérebro do usuário procura recompensa através da ativação de regiões cerebrais (tais como a amígdala cerebral), praticamente deixando de lado as lembranças negativas também associadas ao consumo de substâncias. A saliência da memória para os efeitos prazerosos tende a superar a memória para as repercussões negativas do consumo.
“Gatilhos” internos que podem levar a recair nas drogas
- Raiva e irritação;
- Solidão;
- Sintomas depressivos;
- Tédio;
- Insegurança no trabalho, na escola, em casa;
- Extrema pressão no trabalho ou mesmo em casa;
- Busca por excitação sexual;
- Exaustão;
- Estresse.
Na prática clínica diária, é comum que pessoas em recuperação sucumbam aos ditos “gatilhos”. Seus cérebros criam razões para usar a droga e desenvolvem uma espécie de ambivalência entre “eu quero usar” e “eu não posso usar”. Não incomumente, após este conflito, o indivíduo tende a reinventar o seu uso, como, por exemplo, fazendo-o em um ambiente protegido, isolado. É claro que esta estratégia trapaceira tende a promover a reinstalação do quadro anterior de consumo.
Independentemente do tipo da droga preferencialmente usada, o indivíduo pode tentar trair-se. Os pensamentos sobre drogas usualmente são frequentes e as tentativas de barganha consigo mesmo são um denominador comum (por exemplo, vou me dar uma recompensa só hoje à noite; preciso sentir o prazer da cocaína novamente…mas amanhã eu paro).
Os “gatilhos” devem ser evitados. No entanto, os “gatilhos”, per si, não necessariamente assolam o controle do dependente em recuperação. Existem pensamentos e sentimentos prévios, permeados pela fissura, que impelem o indivíduo ao uso. Os “gatilhos” são a gota d’água.
Você está corretíssimo a respeito do seu irmão. Parece que ele está se expondo a um “gatilho” externo, que deve ser evitado. Lembre-se: o tratamento para aqueles que padecem de Dependências Químicas deve ser longo, tendo em vista a cronicidade da doença.
Aja rapidamente!!!
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.