Reconhecer quando o vinho pode ser uma porta para o alcoolismo pode se tornar uma tarefa difícil; entenda por quê
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“Minha namorada é sommelier. Ela toma meia garrafa de vinho em dias de semana, mas isso não é diário. E no final de semana pode ser diário ou não. Isso já é um hábito de longa data, onde não percebo aumento desse consumo. Tudo é feito de forma ritualística e científica: atenta a uma infinidade de detalhes como tipo de uva, ano da safra, temperatura, acompanhamentos para harmonizar com o vinho…. Enfim, isso pode se transformar numa porta de entrada para o alcoolismo? O vinho é meio que o sentido e a razão da existência dela. Ficaria muito contente em ver minha pergunta publicada.”
Resposta
Os problemas relacionados ao consumo de bebidas alcoólicas podem afetar quaisquer pessoas, transcendendo fronteiras culturais, profissionais, nacionais e pessoais. Manifestados de formas diversas, o abuso e a síndrome de dependência de álcool são uma realidade para todos nós.
Por que é difícil reconhecer quando o vinho é uma porta para o alcoolismo
O vinho é um tipo de bebida considerado por muitos como de moderado teor alcoólico. Problemas relacionados com o consumo dessa bebida são de difícil reconhecimento, dada a sua ampla aceitabilidade social e disponibilidade. Mais do que 36 bilhões de garrafas de vinho são produzidas anualmente e o seu uso é comumente associado com atividades festivas, sociais e familiares.
O Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos da América (CDC) ressalta que o consumo de bebidas alcoólicas é associado com uma miríade de riscos à saúde, incluindo acidentes domésticos, automotores, comportamentos inadequados e de risco, elevação da pressão arterial sistêmica e vários tipos de neoplasias.
Naturalmente, o risco de consequências nocivas aumenta à medida que a soma de álcool etílico ingerido cresce.
Objetivando reduzir os danos físicos e psicológicos do consumo de bebidas alcoólicas, o CDC recomenda que adultos devem optar por não beber ou, se isso não corresponder ao desejo do adulto, que o homem consuma até 2 drinks de álcool (grosseiramente, 28 gramas de álcool etílico) e que a mulher consuma até 1 drink de álcool (grosseiramente, 14 gramas de álcool etílico) nos dias de bebida. Para simplificar, 01 taça (150ml) de vinho (com concentração alcoólica de 12%) corresponde a 01 drink, ou seja, 14 gramas de álcool etílico.
Para relembrar respostas já fornecidas neste site Vya Estelar, vale ressaltar que o álcool é um poderoso depressor do Sistema Nervoso Central que afeta a coordenação motora, o julgamento, a habilidade para desempenhar tarefas e tomar decisões. Estes efeitos imediatos do consumo de vinho variam bastante para cada pessoa, dependendo da própria tolerância, susceptibilidade individual, metabolização, aspectos genéticos, peso, altura, sexo cromossômico, combinação com medicações, dentre outros fatores.
O abuso de bebidas alcoólicas, como o vinho, pode levar a diferentes problemas, desde a famigerada e desagradável fala empastada até insônia e, mesmo, coma.
Efeitos agudos do consumo do vinho
- Redução da tensão;
- Lentidão psicomotora;
- Prejuízo da coordenação psicomotora;
- Fala empastada;
- Variações do humor;
- Náuseas e vômitos;
- Sonolência
O uso abusivo de vinho pode afetar negativamente diferentes sistemas orgânicos, como por exemplo:
- Cérebro: o álcool etílico interfere com vias de comunicação cerebral, por vezes, provocando lesões funcionais em regiões relacionadas com a memória e habilidades de regulação emocional e autorregulação.
- Coração: Embora o vinho seja alardeado como um benemérito do funcionamento cardiovascular, o abuso pode induzir inúmeras disfunções, tais como arritmias, elevação da pressão arterial, cardiomiopatias, acidentes vasculares. O exagero é a mãe dos problemas;
- Fígado: o consumo continuado de bebidas alcoólicas pode provocar inflamação hepática, acúmulo de gordura (esteatose hepática), fibrose e, por fim, cirrose.
- Pâncreas: o consumo continuado de bebidas alcoólicas também pode afetar o pâncreas, causando inflamação. A pancreatite é uma condição médica comumente vista entre alcoolistas. A pancreatite crônica é associada com diabetes mellitus;
- Outros problemas: o consumo crônico e abusivo de vinho pode causar disfunção do sistema imunológico, esofagite, gastrite, úlcera gástrica.
Quando o vinho pode ser uma porta para o alcoolismo
Quando o uso do vinho se torna problemático, o bebedor literalmente é incapaz de controlar a soma da bebida ingerida, até mesmo se isso está causando problemas na sua vida. Aqueles com problemas relacionados ao consumo de bebidas podem insistir que o atual padrão de uso não lhes é um problema e que “vinho é sempre benéfico”.
Esconder garrafas de vinho para consumir o produto em momentos de isolamento, beber em quantidades superiores às pretendidas inicialmente, demonstrar dificuldades para permanecer abstinente, demorar para recuperar-se dos efeitos da bebida, procurar vinhos ou outras bebidas com maior concentração alcoólica, ter problemas familiares, conjugais, laborais associados com o consumo da bebida são algumas das bandeiras vermelhas que devem ser hasteadas.
O indivíduo que se tornou dependente do vinho pode apresentar os temidos sintomas da síndrome de abstinência, quando cessa ou reduz abruptamente o consumo da bebida. A síndrome de abstinência pode ser complicada (com alucinações, convulsões e/ou delirium tremens) ou não complicada.
Sintomas da síndrome de abstinência
- Tremores de mãos;
- Ansiedade;
- Fadiga;
- Irritabilidade;
- Pesadelos;
- Sudorese profusa;
- Insônia;
- Perda do apetite;
- Taquicardia;
- Convulsões;
- Confusão mental;
- Delirium tremens.
Os sintomas da síndrome de abstinência podem iniciar cerca de 8 horas após o último gole e durar várias semanas. No geral, o pico de sintomas ocorre 72 horas após o último uso.
A desintoxicação do álcool demanda supervisão médica especializada e, às vezes, internação em clínica médica. Não é um processo fácil; trata-se de um tratamento demorado que demanda paciência tanto do dependente quanto do profissional da saúde. A fissura pelo álcool costuma ser alta e o paciente dependente muitas vezes acredita que pode misturar a bebida com as medicações prescritas para a desintoxicação, o que torna o tratamento ainda mais difícil.
Embora alguns autores afirmem, de forma anedótica, que os profissionais sommeliers estejam altamente expostos ao abuso de bebidas, existe uma surpreendente escassez de estudos científicos envolvendo essa população.
Procurando superar esta escassez, aloco abaixo parte de uma entrevista concedida por um famoso expert em vinhos que reconheceu ter problemas com o seu consumo excessivo e procurou tratamento e formas de contornar as consequências.
Tim Hanni, considerado um importante mestre dos vinhos, instrutor na Napa Valley Wine Academy, tornou-se dependente de vinho e conseguiu, após iniciar um tratamento, manter a sobriedade por mais de 20 anos.
De acordo com Hanni, “Eu apenas saboreio o vinho e cuspo imediatamente. Eu sou um especialista em vinhos e ensino sobre esse assunto para milhares de pessoas. Atualmente, eu consigo não ingerir (…). Uma vez que o cérebro começa a descobrir que existe uma fonte externa de prazer e de alívio da ansiedade, ele passa a precisar demais desta fonte (….). Eu realmente não acho que um sommelier dependente apresenta sintomas ou comportamentos diferentes de outras pessoas de outras profissões. O que pode ser diferente é o ambiente que você frequenta, as pessoas do seu meio, como elas justificam algum episódio vexatório que você causou”.
Da mesma forma como ocorre em quaisquer profissões, o mundo dos sommeliers pode ser tão competitivo quanto um outro mundo qualquer.
Nas palavras de Bianca Bosker, jornalista e escritora sobre o treinamento de sommeliers, “Eu passei muitas horas com sommeliers; às vezes, bebendo até altas horas da noite e sendo educada na arte de saborear, distinguir odores e cuspir… Eu acabei vivendo em uma subcultura que eu não li em livro qualquer sobre vinhos. Para uma área que ostenta o prazer e a cultura, alguns sommeliers submetem-se a uma dura escalada de dor. Eles trabalham horas a fio, acordam cedo para estudar as enciclopédias sobre vinhos, devotam tempo para competições e acabam por dormir pouco (…). Alguns diriam ser uma profissão de hedonismo e masoquismo”.
Dicas para evitar o consumo danoso de álcool
Muitas organizações de “profissionais da bebida” têm manifestado preocupação com o beber imoderado e abusivo, propondo estratégias de prevenção e de monitoramento dos seus afiliados e consumidores. Por exemplo, a Associação dos Cervejeiros de Portugal (dentre várias outras ao redor do mundo) aponta algumas táticas para se evitar o consumo danoso do álcool, como por exemplo:
- Disseminar informações que possam diferenciar consumo de bebidas alcoólicas de abuso de bebidas alcoólicas;
- Assumir estratégias sempre baseadas em evidência científica;
- Identificar os fatores comportamentais relacionados com o abuso do álcool etílico;
- Levar em consideração a ampla diversidade cultural existente no globo;
- Reconhecer a importância do treinamento e da educação continuada;
- Encorajar o comportamento responsável;
- Seguir os protocolos e Leis concernentes ao consumo de bebidas.
A profissão é uma parte da vida da sua companheira; dito isso, a profissão não deve tomar a vida por completo. Ter dias de “descanso” do trabalho é fundamental. Tirar férias do trabalho também é essencial. É uma boa conduta estabelecer limites entre o trabalho e as outras partes da vida.
Recomendo a observância quanto ao exagero, aos sintomas de tolerância e da síndrome de abstinência e a necessidade interna de ser o melhor. Boa sorte!!!
Atenção! Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.