O Heteroengano pode ser definido como o ato de deliberadamente induzir o outro ao erro; dessa forma, o heteroengano é o tipo genérico da falsidade intencional, cujas duas formas essenciais são a mentira e a simulação.
Mentir é o ato de falsear a verdade por meio de palavras ou códigos linguísticos equivalentes. Sem a linguagem (principalmente verbal) não pode haver mentira, mas apenas simulação, dissimulação ou qualquer outra forma de engano voluntário. Um homem mudo pode também mentir, mas, para isso, deve usar seus códigos convencionais, que psicológica e socialmente equivalem à palavra falada ou escrita. Essa necessidade da linguagem articulada permite definir o homem como um animal capaz de mentir (Rojas, 1951). Para o autor Nerio Rojas (1951), a mentira é exclusiva do homem, já que ele é o único capaz de falar. Devido à falta de meios verbais ou simbólico-verbais, os animais não poderiam a priori mentir; porém, em linha com tal conceito, os animais conseguem sim simular e camuflar.
Na simulação, o indivíduo tenta, através de atos, gestos, sintomas físicos e/ou psicológicos mostrar que algo inexistente é real. Por outro lado, uma mentira apresenta uma falsidade como verdadeira, e a palavra falada ou escrita é usualmente o veículo necessário para tal engano, que pode referir-se a qualquer tipo de fato próprio ou de outrem, passado ou presente. O alcance da mentira é, portanto, maior que o da simulação, com a qual pode colaborar em muitas situações para torná-la ainda mais eficaz; porém, tal amplitude é possível graças às palavras ou signos linguísticos, condição necessária da mentira e uma espécie de moeda falsa ao alcance de qualquer pessoa.
Ela, a mentira, dá forma concreta à invenção e serve como um veículo eficaz para atingir quem quer que seja, com um alcance inimaginável.
Para Rojas (1951), existe um tipo de “arquitetura” da mentira, ou seja:
- A criação imaginativa
- A consciência da falsidade
- A exteriorização “verbal” ou mesmo através de outros “códigos linguísticos” para outrem
- A intenção de enganar, de ludibriar.
É muito provável que os mentirosos usem a imaginação para criar histórias falsas, mas mentir é mais do que apenas criar uma história falsa. É literalmente uma declaração falsa feita com a intenção deliberada de enganar.
A definição acima envolve então dois componentes:
- A inverdade da informação
- A intenção enganosa dolosa do comunicador.
Portanto, para que uma pessoa possa mentir, é preciso elaborar um “conto” e “persuadir” o ouvinte. Usualmente, os mentirosos olham para o ouvinte para perscrutar se ele está acreditando e tentam dizer algo plausível que não cause espanto e/ou desconfiança no observador. De fato, é pouco provável que acontecimentos implausíveis sejam acreditados e/ou respaldados mesmo por ouvintes precariamente interessados.
Contar mentiras exige um certo esforço. O cérebro é mais ativo ao contar mentiras do que ao dizer a verdade. De fato, os mentirosos devem manter a consistência interna (como evitar se contradizer) e a consistência externa (certificar-se de que as mentiras não contradizem o que os outros sabem ser verdade) e, portanto, mentir requer mais atividade cognitiva do que dizer a verdade. Já nas mentiras não previamente preparadas, a sua regurgitação é mais cognitivamente exigente do que criar e contar mentiras já preparadas (DePaulo et al., 2003).
Tanto ao planejar uma mentira quanto simplesmente ao contar uma mentira na hora, os mentirosos são livres para atualizar e alterar continuamente as versões das suas histórias. Uma mentira se torna uma mentira quando ela é compartilhada. O objetivo de mentir é fazer acreditar. Bons mentirosos monitoram as reações do seu público e se acomodam às suas próprias histórias e aos comportamentos associados para manter a “credibilidade” da mentira. Uma vez compartilhada, os mentirosos devem “persistir” em suas mentiras para evitar a detecção da verdade. Assim, tanto planejar quanto contar e compartilhar mentiras demandam que o enganador sempre se lembre das mentiras exatamente como foram contadas com a finalidade de evitar o desmascaramento (Polage, 2017).
Alguns autores descrevem, didaticamente, seis maneiras pelas quais o ônus cognitivo da desonestidade ultrapassa o da honestidade e o da veracidade:
- A formulação de uma “mentira” pode ser cognitivamente exigente
- Os mentirosos tendem a monitorar e controlar os seus próprios comportamentos não verbais para parecerem honestos
- Os mentirosos monitoram as reações dos alvos para ver se a sua cilada é aceita como realidade
- Os mentirosos podem precisar encenar e descobrir a melhor postura ardilosa para convencer terceiros
- Os mentirosos devem suprimir a verdade e acreditar na própria mentira, até mesmo como uma estratégia para não cair em contradição
- Enquanto a ativação da verdade muitas vezes acontece automaticamente, a ativação da mentira pode ser mais deliberada (Vrij, Granhag, & Porter, 2010).
Quando alguém é flagrado mentindo, a sua reação inicial pode ser de raiva e/ou vergonha. Esse sentimento pode surgir da sensação de estar exposto a algo que deveria permanecer oculto. Nesta situação, a resposta instintiva do indivíduo é atacar para recuperar o poder ou o controle.
De uma forma mais ampla, a maioria das pessoas mente, em média, cerca de duas vezes por dia ou em um quarto das interações com os outros e, portanto, o engano através do “contar mentiras” pode ser visto como uma parte usual da interação social cotidiana. Geralmente, as pessoas são bastante boas em mentir, mas ruins em detectar as mentiras e/ou os mentirosos. Esta falha na detecção da mentira pode ser explicada pelo fato de que muitas das falsidades passam despercebidas, porque o observador não está lá muito motivado para descobrir a verdade (Vrij, 2000).
A típica mentira cotidiana é trivial e a sua detecção tem poucas repercussões para as pessoas, exceto para as partes envolvidas. No entanto, em alguns contextos, julgamentos precisos da veracidade são essenciais. Mais proeminentemente, o sistema de justiça enfrenta usualmente o problema constante de distinguir entre verdade e falsidade. Neste cenário, confundir mentiras com verdades (assim como o erro oposto) pode ter consequências graves não só para as partes envolvidas, mas também para a sociedade em geral.
Esforços para examinar o engano bem como a sua detecção têm sido realizados. Apesar disso, não há ainda o “nariz de Pinóquio” como um sinal comportamental que sistematicamente acompanha a mentira (Hartwig, Granhag, Strömwall, & Vrij, 2005).
Muitas das razões pelas quais diferentes pessoas mentem ou enganam são semelhantes e a motivação para mentir, tanto em contextos jurídicos quanto médicos por exemplo, sempre é forte.
Algumas das Motivações dos Mentirosos
- Instrumental: essa mentira obtém recompensa, poder, posição social, ou outras vantagens, às vezes explorando outros, deleitando-se com a sensação de controle
- Evitar punição: essa mentira evita punição ou a culpa dos mentirosos
- Proteger-se: essa mentira visa a proteger os mentirosos, muitas vezes evitando confrontos ou embaraço
- Criar falsa impressão: essa mentira pode ser relevante para a manutenção da própria identidade. Essas mentiras criam falsas impressões sobre os mentirosos (Desejo de respeito, sentimento de orgulho, redução da insegurança)
- Ajudar os outros: essa é uma mentira altruísta, contada para proteger alvos ou outros (Compaixão, empatia, carinho)
- Mentira por “direito”: esses mentirosos sentem-se justificados em esconder uma verdade, por que sentem que são injustamente reprovados
- Ferir os outros: essa mentira é compartilhada em represália para ferir o alvo (Raiva, vingança)
- Afetar as relações interpessoais/afiliação: essa mentira é construída para aumentar, diminuir, manter ou encerrar a interação com um outro ou mesmo para controlar o relacionamento (DePaulo, Kashy, Kirkendol, Wyer, & Epstein, 1996).
Não basta conhecermos apenas algumas das fortes motivações para mentir, ludibriar, enganar. Temos que tentar conhecer alguns possíveis sintomas dentre os mentirosos, a fim de conseguir o desmascaramento especialmente daqueles mais ardilosos e perniciosos.
Sintomas dos Mentirosos ou Enganadores
- Fecha os olhos enquanto responde, para minimizar distrações do meio ambiente, ansiedade, culpa etc.
- Desvia o olhar do interrogador, concentrando-se em um estímulo neutro. Isso minimiza a distração, a ansiedade, a culpa etc.
- Reduz os movimentos oculares para minimizar distrações do ambiente
- Reduz os movimentos corporais para minimizar os movimentos internos produzidos pela distração
- Tenta relaxar e respirar com mais profundidade
- Pratica relaxamento para reduzir o ônus da mentira
- Aplica estratégias de “compra de tempo” (por exemplo, pedindo para que uma pergunta seja repetida, demonstrando longa pausa antes ou durante a resposta ou dentro das próprias narrativas). Esse delay aumenta o tempo para a construção e/ou para a reconstrução da mentira ou mesmo para a lembrança de mentira
- Aumenta os movimentos dos olhos com o objetivo de procurar dicas ambientais para a reconstrução da mentira e garantir um certo “isolamento” pessoal (Doherty-Sneddon, Bruce, Bonner, Longbotham, & Doyle, 2002).
A Mentira na Clínica Médica
A percepção errônea de que a mentira é infrequente no campo da saúde tem as suas raízes na crença geral de que os “pacientes” que procuram ajuda de um profissional normalmente não tentariam enganá-los. Como a maioria dos profissionais da saúde não é formalmente treinada para considerar ou identificar ativamente mentiras nos seus clientes, é razoável supor que muitos dos “bons” mentirosos não são detectados e, portanto, talvez, poucos casos (ou seja, os mentirosos “menos habilidosos”), que dão origem à suspeição, forneçam uma estimativa baixa.
Tal como outros profissionais, os que trabalham com saúde presumivelmente não gostam de pensar que têm sido enganados. Pilowsky (1985), por exemplo, cunhou o termo “malingerofobia” – para descrever o “medo irracional e desadaptativo de ser induzido a prestar cuidados de saúde a indivíduos que se disfarçam de doentes, mas não têm nenhuma doença, ou têm uma doença muito menos grave do que alegam” (Pilowsky, 1985).
Na verdade, ninguém aprecia ser uma vítima da mentira ou da cilada, uma vez que, moralmente:
A veracidade e a honestidade são esperadas e preferidas às mentiras e à desonestidade
A cooperação é sempre algo esperado, almejado e preferido à exploração e à inutilidade
Os profissionais que prestam cuidados deveriam ser merecedores da confiança dos seus clientes (Fukuyama, 1995).
Palavras Finais
A mentira faz parte do nosso cotidiano social e profissional. Precisamos saber driblar as situações em que o ludíbrio pode ganhar espaço.
Não devemos julgar. Esse é o papel dos juízes. Como profissionais da saúde, precisamos detectar a verdade e, conforme o texto explana brevemente, temos alguns instrumentos para tal missiva.
O descobrir a verdade não é, no caso dos profissionais da saúde na prática clínica diuturna, uma ação de desmascaramento de quem mente. É apenas uma atitude que permite abrir brechas para a introdução do melhor tratamento possível, sem óbices e ciladas no meio do caminho.
Referência
DePaulo, B. M., Kashy, D. A., Kirkendol, S. E., Wyer, M. M., & Epstein, J. A. (1996). Lying in everyday life. J Pers Soc Psychol, 70(5), 979-995.
DePaulo, B. M., Lindsay, J. J., Malone, B. E., Muhlenbruck, L., Charlton, K., & Cooper, H. (2003). Cues to deception. Psychol Bull, 129(1), 74-118.
Doherty-Sneddon, G., Bruce, V., Bonner, L., Longbotham, S., & Doyle, C. (2002). Development of gaze aversion as disengagement from visual information. Dev Psychol, 38(3), 438-445.
Fukuyama, F. (1995). Trust. London: Hamish Hamilton.
Hartwig, M., Granhag, P. A., Strömwall, L. A., & Vrij, A. (2005). Detecting deception via strategic disclosure of evidence. Law Hum Behav, 29(4), 469-484.
Pilowsky, I. (1985). Malingerphobia. Med J Australia, 143, 571-572.
Polage, D. (2017). The Effect of Telling Lies on Belief in the Truth. Eur J Psychol, 13(4), 633-644.
Rojas, N. (1951). El Diablo Y La Locura Y Otros Ensayos. Buenos Aires: El Ateneo.
Vrij, A. (2000). Detecting lies and deceit. Chichester: John Wiley & Sons Ltd.
Vrij, A., Granhag, P. A., & Porter, S. (2010). Pitfalls and Opportunities in Nonverbal and Verbal Lie Detection. Psychol Sci Public Interest, 11(3), 89-121.
Atendimento – Consultório
Telefone: 0 XX 11 3120-6896
E-mail: [email protected]
Endereço: Avenida Angélica, 2100. Conjunto 13
Condomínio Edifício da Sabedoria
CEP: 01228-200, Consolação – São Paulo
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.