Frotteurismo: Avaliação de dois casos

Caso 1.

Richard von Kraft-Ebing, na sua obra seminal Psychopathia Sexualis, Caso 214, assim descreve um Frotteur:

Z., nascido em 1850, de boa família, Oficial particular. Ele estava bem financeiramente. Depois de um curto casamento, ficou viúvo em 1873. Por algum tempo ele havia chamado a atenção de diferentes mulheres nas igrejas lotadas, porque sempre se postava atrás delas. Ele foi então vigiado e um dia foi preso em flagrante…

Z. estava terrivelmente assustado e em desespero com a sua situação; e, ao fazer uma completa confissão, ele implorou por perdão, pois nada além do suicídio restava para ele. Durante dois anos ele esteve sujeito ao infeliz impulso de ir para multidões de pessoas em Igrejas, camarotes, escritórios de teatros e pressionava-se por detrás das mulheres, manipulando a parte traseira proeminente dos seus vestidos e, assim, produzindo orgasmo e ejaculação.

Z. afirmou que nunca foi dado à masturbação e nunca tinha sido perverso sexualmente. Desde a morte prematura da sua esposa, ele satisfez seu grande desejo sexual em casos amorosos temporários, tendo sempre mostrado uma aversão às prostitutas e aos bordéis. O impulso para o frottage de repente o agarrou há cerca de dois anos, enquanto ele estava na Igreja. Embora ele estivesse consciente de que isso era errado, ele não podia deixar de ceder a esse incontrolável impulso. Desde então ele ficava entusiasmado com a postura e as vestimentas de algumas mulheres, e era realmente impelido a buscar uma oportunidade para o frottage. A única coisa sobre as mulheres que o empolgava eram as “nádegas polpudas” … todas as outras partes do corpo eram-lhe indiferentes; nem ele mesmo se importava se a mulher era velha ou jovem, bonita ou feia. Desde que isso começou, ele não teve mais qualquer inclinação para a gratificação sexual natural. As cenas de frottage sempre surgiam durante os seus sonhos noturnos.

Durante seus atos ele estava plenamente consciente da sua situação e da natureza ultrajante do ato, e tentava realizá-lo de tal maneira que atraísse o mínimo de atenção possível. Depois de cada ato, ele sempre sentia vergonha do que havia feito”.

(von Kraft-Ebing, 1886)

Avaliar as dimensões da personalidade do protagonista Z., na história apresentada, permite compreender motivações, comportamentos e as suas complexidades. A seguir, analisaremos algumas dimensões da personalidade de Z., levando em consideração traços psicológicos e comportamentais.

1.Impulsividade e Falta de Autocontrole

Z. apresenta uma clara impulsividade que pode estar relacionada à sua incapacidade de considerar as consequências das suas ações. O ato de esfregar-se em outras mulheres na Igreja lotada demonstra uma falta de autocontrole em situações sociais e mesmo naquelas consideradas sagradas. Essa impulsividade pode refletir uma necessidade por gratificação instantânea, sem qualquer consideração pelo consentimento do outro. A cegueira moral e o descaso são completos.

2. Desconexão com a Realidade e Falta de Empatia

Z. parece ter uma desconexão significativa entre a percepção das suas ações e a realidade. Ele não parece considerar os sentimentos das mulheres que acusam seu comportamento como inadequado, o que sinaliza uma incapacidade de se colocar no lugar dos outros e entender o impacto de suas ações.

3. Irresponsabilidade

A maneira como Z. responde à sua detenção e comportamento sugere uma falta de responsabilidade sobre suas ações. Uma ameaça velada do tipo “nada além do suicídio me resta” é uma amostra da sua inabilidade cognitiva e emocional para assumir a própria responsabilidade pelos atos ofensivos e para promover uma modificação comportamental. Além disso, a sua resistência em se aprofundar em possíveis “ações passadas”, mesmo anteriores ao falecimento da sua esposa, demonstra uma falta de autoconhecimento e vontade de refletir sobre seu comportamento perverso. Essa ausência de responsabilidade pode indicar uma personalidade imatura, que prefere não confrontar os resultados das suas ações.

Z. parece apresentar uma personalidade de fato imatura, incapaz de recuperar-se de forma plena diante dos infortúnios naturais e marcada por impulsividade, falta de empatia, racionalização de comportamentos inadequados, insegurança emocional e uma tendência a manipular as situações em benefício próprio. Esses traços interagem de maneiras que podem levar a comportamentos prejudiciais, tanto para ele mesmo quanto para os outros ao seu redor.

Caso 2.

Uma mulher ligou para o escritório do advogado. Ela estava chorando. Ela explicou que seu noivo, M., havia ligado para ela da prisão. Na verdade, eles moravam juntos há cerca de três meses, logo depois de se conhecerem através de um aplicativo de encontros eróticos. Segundo ela, M. estava “entre empregos” e bebia um pouco demais, mas era “encantador”. O companheiro havia saído naquela manhã bem-vestido, de terno e gravata, a caminho de uma entrevista de emprego no centro da cidade. Infelizmente, ele foi detido pela autoridade de trânsito e posteriormente preso. Uma mulher o acusou de ficar atrás dela e se esfregar intencionalmente nela. O trem estava lotado e a princípio ela achou que o contato foi acidental, mas M. persistiu e ela percebeu que ele estava com uma ereção.

Após a intervenção do advogado, M. foi liberado sob fiança. M. admitiu aborrecimento com sua situação, mas afirmou que não tinha feito nada de errado. Com mais questionamentos, ele admitiu ter já se envolvido em atos semelhantes, quando surgia a oportunidade, e isso ocorreu durante anos. Questionado sobre como foi preso nesta ocasião, ele disse que cometeu um erro ao entregar para essa mulher o seu cartão de visita com o seu número de telemóvel, juntamente com um “convite” que se recusou a caracterizar mais detalhadamente. Ele afirmou que a maioria das mulheres gosta de sentir um homem viril

(Federoff, 2020)

A análise do caso de M. apresenta diversas camadas de complexidade emocional e comportamental, refletindo dinâmicas interpessoais, expectativas sociais e conflitos internos. A situação exposta envolve a sua mulher, que se encontra vulnerável e emocionalmente abalada, após a ligação de seu noivo, M., que se vê envolvido em um turbilhão jurídico e pessoal.

Alguns aspectos da dinâmica do casal são dignos de nota aqui, tais como:

1.Vulnerabilidade e Dependência Emocional:

A mulher que liga para o advogado demonstra sinal de vulnerabilidade ao chorar e buscar ajuda. Isso sugere que ela pode estar investindo emocionalmente nesse relacionamento, possivelmente em busca de segurança. A dinâmica da dependência emocional é uma característica comum em relacionamentos marcados por comportamentos problemáticos, como o que se observa nesse caso.

Além disso, é importante destacar que o relacionamento da mulher com M. foi iniciado por meio de um aplicativo de encontros eróticos o que, por si só, introduz uma possível querela nas expectativas de ambos. O contexto desses aplicativos sugere muito amiúde um mapa do amor que pode estar mais focado em aspectos sexuais e de prazer imediato, ao invés de uma conexão emocional mais profunda. No entanto, a expressão da mulher, referindo-se a M. como “encantador”, pode indicar uma idealização típica do relacionamento atual, que muitas vezes ignora comportamentos problemáticos até que eles se tornem evidentes.

2.Idealização versus Realidade:

M. é descrito como “encantador”, o que pode indicar que a mulher possui uma idealização do companheiro ou uma irresistível atração sexual. Essa idealização pode ser alimentada por traços superficiais, como uma boa aparência e uma determinada forma de se apresentar. Por outro lado, a realidade das ações de M. revela uma discrepância entre a imagem apresentada e o seu comportamento real.

Outrossim, aspectos do comportamento sexual e da personalidade de M. podem ser aventados após a leitura do caso:

1.Comportamento Sexual e Falta de Consentimento:

A situação em que M. se vê envolvido levanta questões sérias sobre o consentimento e a ofensa sexual. A alegação de M. de que “a maioria das mulheres gosta de sentir um homem viril” pode indicar uma racionalização de seu comportamento inadequado (ou mesmo uma desculpa). Essa perspectiva problemática e estereotipada do papel masculino na relação sugere uma falta de entendimento sobre limites e consentimento, o que pode ser um reflexo de normas do machismo que permeiam a cultura ocidental.

2. Negação e Justificativa:

M. demonstra uma dimensão de negação ao afirmar que ele nada fez nada de errado. Isso pode ser interpretado como um mecanismo de defesa para lidar com a vergonha e a culpa que poderiam surgir dos seus comportamentos. Essa negação também pode se conectar à sua “história” de comportamentos semelhantes, indicando um padrão de desresponsabilização.

A ilegalidade do ato sexual de M. traz mais um braço do problema:

1.Intervenção Legal e Esfera Pública:

A intervenção do advogado diante do flagrante representa a introdução de mais uma camada formal ao conflito pessoal e interpessoal. A intervenção da Justiça é essencial para a contenção do comportamento desviado, apesar de poder de forma incisiva acentuar ainda mais o estado emocional instável da “esposa” de M.

Considerações

A análise dramática do texto revela a complexidade dos relacionamentos humanos, particularmente em contextos de vulnerabilidade, conflito e a circulação de poder. A mulher de M. é apresentada como uma figura em busca de apoio e compreensão em um momento de crise, ao passo que M. exemplifica as dificuldades ligadas a comportamentos de risco e à necessidade de confrontar as consequências das suas ações. Esta dinâmica é rica para exploração em terapia, onde os participantes podem expressar, por meio de dramatizações e encenações, suas vivências, emoções e percepções sobre os papéis que desempenham em suas histórias pessoais e relacionamentos.

Z. e M.

Tanto Z. quanto M. apresentam impulsos sexuais que são inaceitáveis.

Z. se sente compelido a se esfregar e manipular mulheres de maneira secreta, enquanto M. age de maneira mais direta, embora igualmente invasiva, ao se esfregar em mulheres no transporte público. O impulso sexual e a sua representação levam ambos a situações traumáticas e comprometedoras para as vítimas e para eles mesmos.

A consciência da transgressão moral é um ponto central para ambos os personagens. Z. está ciente de que suas ações são erradas e se sente angustiado e envergonhado, a ponto de considerar o suicídio como uma saída. Por outro lado, M. parece ter uma abordagem mais defensiva, minimizando a gravidade das suas ações e, em certa medida, justificando o seu comportamento como uma expressão de virilidade, da “hipermasculinidade”.

Este contraste chama a atenção para a questão moral e ética em torno do comportamento sexual. A percepção do que é moralmente aceitável varia entre os dois homens, embora ambos enfrentem as consequências de suas ações.

As prisões de ambos os homens ilustram como o comportamento sexual não apenas impacta suas vidas pessoais, mas também o status social e legal de ambos. A sociedade tem as suas regras e punições para tais comportamentos sombrios. E a Lei deve sempre se fazer notar e moldar as ações dos indivíduos.

Z. vive em um contexto do século XIX, enquanto M. opera em um cenário contemporâneo, onde a sexualidade é discutida abertamente. A era de Z. carrega uma carga de vergonha e estigma em contrapartida com M., que parece justificar as suas atitudes com uma espécie de “aceitação social”, invocando experiências passadas como se fossem comuns.

A intertextualidade entre os dois casos de Z. e M. expõe a complexidade das interações humanas em torno do impulso sexual, da moralidade e das reações sociais e legais. Ambos refletem sobre a luta contra os impulsos inaceitáveis, mas também revelam diferentes nuances na relação entre o desejo, a culpa e a possibilidade de redenção seja através da busca espontânea ou mesmo compulsória por tratamento.

Referências

Fedoroff, J.P. (2020). The Paraphilias: Changing Suits in the Evolution of Sexual Interest Paradigms (p. 100). New York: Oxford University Press.

von Kraft-Ebing, R. (1886). Psychopathia Sexualis with special reference to the Antipathic Sexual Instinct: A Medico-Forensic Study. New York: Rebman Company.

 

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