Quando ouvimos o termo “vampirismo”, imediatamente vem à mente a famosa obra literária ‘Drácula’ de Bram Stoker publicada em 1897, imbuída de terror, mito, fascínio e talvez erotismo. Outrossim, é inevitável a lembrança dos textos históricos sobre Vlad III (1431-1476), príncipe da Valáquia (que faz parte hoje da Romênia). Vlad III ficou conhecido em todo o continente europeu pelos métodos de tortura que ele usava para a execução de prisioneiros, como a decapitação, a degolação, o empalamento, o cozimento, o sepultamento em vida, dentre outros. No entanto, a palavra vampiro, de origem turca, foi usada pela primeira vez em inglês em 1734. A partir de então, o termo vampiro apareceu na literatura alemã, francesa, inglesa e americana desde o final do século XVIII (McCully, 1964).
Vários homicidas sexuais seriais (serial sexual murderers), ao longo da história, têm sido de alguma forma, principalmente midiática, alcunhados de “vampiros”. Como exemplo, podemos citar o “Vampiro de Montparnasse” na França, o “Vampiro Zagłębie” na Polônia, o “Vampiro de Sacramento” na Califórnia, o “Vampiro de Niterói” no Brasil, dentre outros.
Nos gêneros literário e jornalístico, o termo “vampiro” não causa espanto. No entanto, o termo “vampirismo” faz parte dos gêneros textuais médicos?
Nos gêneros textuais médico-psiquiátricos, o termo vampirismo tem sido usado como um termo guarda-chuva para abarcar uma vasta gama de fenômenos, incluindo necrofilia, necrofagia, necrosadismo, homicídios sexuais (lust murders). No entanto, o termo vampirismo é mais adequado quando a ingestão do sangue da vítima ou do próprio agressor faz parte do ritual concupiscente (Noll, 1991).
O modelo do vampirismo clínico descrito aqui define o termo como uma espécie de fetiche sexual ou ícone erótico por sangue. Alguns autores utilizam o termo Síndrome de Renfield como sinônimo do vampirismo clínico. A seguir estão as características propostas da Síndrome de Renfield:
- Um evento crucial, vital e de grande impacto pessoal poderia levar ao desenvolvimento do vampirismo (beber sangue). Isso de ordinário ocorreria na infância, e a experiência de sangramento ou do gosto de sangue seria considerado “excitante”. Após a puberdade, essa excitação associada ao sangue seria experimentada como um verdadeiro deleite sexual.
- A progressão da síndrome de Renfield seguiria um curso típico:
- O autovampirismo seria geralmente desenvolvido primeiro, de regra na infância, inicialmente autoinduzido por arranhões ou cortes na pele para produzir sangue, que seria então ingerido/lambido. Tempos depois, o indivíduo aprenderia a abrir os principais vasos sanguíneos (veias, artérias) para beber um fluxo constante de sangue quente mais diretamente. O sangue poderia então ser ingerido no momento da abertura ou poderia ser guardado em frascos ou outros recipientes para posterior ingestão ou por outros motivos. A masturbação geralmente acompanharia tais práticas.
- A zoofagia vampírica (literalmente comer criaturas vivas, mas mais especificamente beber seu sangue) poderia desenvolver-se antes do autovampirismo em alguns casos, mas geralmente seria a próxima a se estender. Pessoas com Síndrome de Renfield poderiam comer os animais ou beber o sangue de criaturas vivas, como gatos, cães ou pássaros. O sangue de outras espécies poderia ser obtido em locais como matadouros e depois ingerido. Atividades masturbatórias usualmente acompanhariam tais ingestões.
- Em sua verdadeira forma, o próximo estágio seria a aquisição do sangue de seres humanos vivos. Isso poderia ser obtido em hospitais, laboratórios e assim por diante, ou por beber o sangue diretamente dos outros.
- O “beber o sangue diretamente dos outros” pode ser, impressionantemente, consensual. No entanto, o mais usual são aqueles casos do tipo assassinato por luxúria (lust murder). Em outros crimes sexuais, mas não letais, a atividade sexual e o vampirismo obviamente nunca são consensuais (Noll, 1991). O desejo irrefreado de beber sangue comumente tem um forte impacto sexual associado. Às vezes, assume um significado quase místico como um símbolo de poder, dominação e incorporação.
Repisa-se, aqui, que a característica definidora da Síndrome de Renfield é o prazer sexual envolvendo o consumo de sangue. Outras atividades relacionadas, como necrofilia e necrofagia que não têm como objetivo beber sangue não são aspectos considerados desse problema.
O próprio psiquiatra Richard von Kraft-Ebing (1894) descreveu o vampirismo como uma forma de sadismo sexual (dentro do grupo das Parestesias Sexuais). Na sua obra seminal Psychopathia Sexualis, no caso 48, o autor conta:
“Um homem casado apresentou-se com numerosas cicatrizes de cortes em seus braços. Ele contou sua origem da seguinte forma: Quando ele quer se aproximar da sua esposa, que é jovem e um pouco nervosa, ele primeiro tem que fazer um corte no braço dele. Então, ela chupa a ferida e durante o ato fica violentamente excitada sexualmente(…).
Este caso lembra a lenda difundida do vampiro, cuja origem talvez possa ser referida a tais fatos sádicos”.
Na mesma linha, Vandenbergh and Kelly (1964) propõem uma definição que exclui atividades necrofílicas evidentes e enfatiza o componente libidinal no vampirismo. Eles veem o vampirismo clínico como o ato de tirar sangue de uma pessoa (geralmente vista como um objeto a ser usado) e obter excitação sexual resultante”. Nesta visão, a tomada do sangue de uma escarificação na pele é muitas vezes a parte importante do ato. Eles relatam o caso de um jovem cumprindo pena que chamou a atenção das autoridades penitenciárias locais depois que vários presos expressaram medo de desenvolver anemia. A investigação revelou que o jovem homem estava negociando favores sexuais com esses presos em troca da oportunidade de sugar-lhes o sangue.
O vampirismo clínico tem o nome do vampiro mítico e é uma entidade clínica reconhecível por alguns especialistas (mas muito controvertida). Embora rara, essa entidade é caracterizada por consumo compulsivo periódico de sangue e afinidade com os mortos. É hipoteticamente a expressão de um mito arcaico herdado, sendo o ato de tomar sangue um ritual que proporciona alívio temporário de tensões e produção de prazer sexual. Desde a infância, esses indivíduos costumam se cortar, beber o próprio sangue, beber o sangue de terceiros e/ou de animais, para satisfazer um desejo sexual. O vampirismo pode ser um fator associado com agressões e assassinatos repetidos e imprevisíveis, e deve ser analisado em criminosos violentos que são auto e/ou hetero mutiladores (Hemphill and Zabow, 1983).
O vampirismo parece variar em frequência e intensidade. Como o vampirismo envolve violência contra si mesmo ou contra outra pessoa, pode ser considerado como uma variante do sadomasoquismo. No vampirismo o motivo específico é obter e ingerir sangue para a obtenção de gratificação sexual.
Uma vez, fui chamado pela chefia de enfermagem de um determinado hospital devido aos seguintes fatos relatados: uma assistente de enfermagem havia sido flagrada na sala de medicamentos segurando vários tubos de sangue coletados de pacientes aleatórios. Ela estava bebendo o conteúdo de um desses tubos, enquanto permanecia com as calças arriadas. Infelizmente, não pude ajudá-la, uma vez que ela se afastou do dito hospital após o flagrante. Nunca procurou ajuda especializada…
Referências Hemphill, R.E., and Zabow, T. (1983). Clinical vampirism. A presentation of 3 cases and a re-evaluation of Haigh, the 'acid-bath murderer'. SA Medical Journal, 63: 278-281. McCully, R.S. (1964). Vampirism: Historical perspective and underlying process in relation to a case of auto-vampirism. J Nerv Ment Dis 139: 440-452. Noll, R. (1991). Vampires, Werewolves, and Demons. Twentieth Century Reports in the Psychiatric Literature. New York: Brunner/Mazel Publishers. Vandenbergh, R.L., and Kelly, J.F. (1964). Vampirism: A review with newobservations. Arch Gen Psychiatry 2:543-7. von Kraft-Eding, R. (1894). Psychopathia Sexualis. New York: G. P. Putnam's Sons.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.