A necrofilia é uma parafilia incomum que afeta um pequeno número de pessoas, mas ainda é de prevalência desconhecida. É definida como a gratificação sexual através de atividades, fantasias, pensamentos e/ou práticas sexuais envolvendo corpos mortos.
Outros nomes para a necrofilia incluem tanatofilia, necrolagnia, necrocoito e assim por diante. A vítima não é sempre um corpo que morreu há poucas horas; muitas vezes são corpos que já estão em um estado avançado de putrefação e são sexualmente vilipendiados para satisfazer a lascívia desses indivíduos.
A necrofagia, ou a ingestão de partes do corpo de um falecido em um contexto de regozijo sexual, é uma variante que ocorre principalmente entre homicidas seriais. O canibalismo é diferente da necrofilia uma vez que, no canibalismo, as partes dos corpos mortos NÃO são consumidas com prazer e/ou excitação sexual.
As pessoas que se excitam sexualmente com cadáveres geralmente têm dois problemas comuns: fácil acesso a cadáveres e isolamento social excessivo. Krafft-Ebing comparou-os aos sádicos sexuais em sua obra seminal, Psychopathia Sexualis. Em 1941, Abraham Brill classificou os necrófilos como “deficientes mentais, psicóticos e incapazes de obter um parceiro consentido”.
A necrofilia tem sido frequentemente associada à necrofagia e ao vampirismo (beber sangue de humanos), pois todas parecem ser perversões similares. Em alguns casos, a necrofilia pode ser justificada pelo fato de que “os falecidos não têm a capacidade de recusar, rejeitar ou resistir; eles também não contam as histórias ou falam de volta”.
Correlatos Biológicos
Estudar comportamentos semelhantes em outras espécies pode ajudar a entender comportamentos aparentemente únicos dos humanos. Curiosamente, a necrofilia também é encontrada em animais. Os machos dos sapos-da-cana (Bufo marinus) têm sido observados copulando com sapos mortos e até mesmo objetos inanimados. É conhecida a necrofilia heterossexual em patos-reais (Anas platyrhynchos). No Museu de História Natural de Roterdã, na Holanda, existem casos curiosos de necrofilia documentados, incluindo relações homossexuais entre tais patos.
Aspectos Históricos
Nos tempos antigos, os marinheiros eram frequentemente acusados de necrofilia quando os cadáveres eram transportados por mar para os últimos ritos fúnebres (como nos casos de mortes em países estrangeiros). Os marinheiros poderiam ter cometido atos de necrofilia com cadáveres devido aos longos períodos de transporte, solidão e ausência de testemunhas.
A necrofilia tem uma história rica e longa, talvez tão antiga quanto a da própria civilização.
Existem muitas histórias mitológicas em que uma rainha ou deusa conseguiu se casar com um esposo falecido. Por exemplo, depois que Osiris foi morto e cortado em pedaços, a deusa egípcia Ísis teria concebido seu filho Hórus, recitando encantamentos enquanto usava seu membro decepado como um dildo. O historiador grego Heródoto (484-425 a.C.) observou que as esposas de homens notáveis e mulheres de grande beleza e reputação não eram imediatamente conduzidas aos embalsamadores, o que significava que o sexo com os mortos era, digamos, possível, embora abominado pelos egípcios. Para que tal possibilidade fosse anulada, os corpos das notáveis mulheres somente eram transferidos para as salas de embalsamamento três ou quatro dias após a morte. O mito da maldição do túmulo do faraó, na teoria e muito parcialmente, foi criado (em parte) para desencorajar as pessoas de praticar necrofilia.
Algumas culturas (principalmente a hindu) queimavam corpos após a morte ou enterravam-nos profundamente em túmulos de mármore e granito sólido para evitar a violação.
Na Índia, havia um estranho costume necrofílico. Se uma noiva morresse antes do casamento, seu noivo deveria a deflorar antes de cremar. Essa cerimônia deveria ser realizada na frente do sacerdote da aldeia.
Acredita-se que Periandro (625–585 a.C.), o segundo tirano de Corinto, na Grécia, era um necrofílico no período greco-romano. Periandro teria matado sua esposa Melissa e tido relações sexuais com o corpo dela depois.
A maioria das lendas do século IX diz que Carlos Magno foi perdoado diretamente por Deus por um “pecado indescritível”. O que foi esse pecado indizível permaneceu principalmente uma ideia. A maioria agora pensa que foi alguma forma de perversão sexual, provavelmente incesto. No entanto, vários suspeitam que possa ser necrofilia.
Em 1533, o rei Henrique VIII promulgou o Buggery Act (Ato de Sodomia de 1533) durante a Idade Média. Trata-se essencialmente de uma lei antissodomia, mas também punia o sexo com animais. Acreditava-se que a união sexual híbrida, que inclui animais e humanos, pudesse produzir seres surpreendentes e terríveis. Por certo, o medo prevalente desses híbridos após a união do homem e do animal levou a incluir a bestialidade no Ato de Sodomia. Esses híbridos incluem, por exemplo, o centauro (o corpo de um cavalo com o tronco de um homem), o sátiro (um animal com o tronco de um homem, as pernas e os pés de uma cabra), as sereias (metade peixe, metade mulher) etc.
A França tem alguns casos conhecidos de necrofilia. Em 1827, um francês chamado Leger mutilou os genitais e bebeu o sangue de uma jovem após ter copulado com a morta. O caso do Sargento Bertrand, o “Vampiro de Montparnasse”, já foi reportado em um podcast anterior, é bem conhecido.
Dados Etiológicos e Classificatórios
A etiologia da necrofilia é desconhecida. Uma dificuldade para sanar essa questão é agrupar um adequado número de necrófilos para a confecção de pesquisas clínicas. Infelizmente, muito poucos chegam à atenção clínica.
De qualquer forma, baseado nos vários casos descritos por eminentes médicos através da História, garantidos pela credibilidade dos mesmos, parece existir uma variedade de necrófilos. Aggrawal (2009) desenvolveu uma classificação com 10 tipos de necrófilos, baseando-se nos relatos de casos descritos ao longo da história:
Classe I. Os Role-Players
Estes indivíduos não desejam ter sexo com uma pessoa morta propriamente dita. No entanto, excitam-se com o parceiro fingindo-se de morto ou vice-versa.
Classe II. Os Necrófilos Românticos
Parceiros que perderam entes amados acabam por arrancar alguma parte do corpo do falecido e guardando-a com eles para futura estimulação sexual.
Classe III. Os Necrófilos Fantasiosos
Esses indivíduos fantasiam ter sexo com mortos; no entanto, mantém-se apenas na imaginação erótica. Podem, inclusive, ser visitantes contumazes de cemitérios e participantes discretos de velórios. Outrossim, podem masturbar-se na presença do morto.
Classe IV. Os Necrófilos Táteis
Essas pessoas manifestam alto interesse sexual por corpos mortos, especialmente por tocá-los eroticamente, sentindo o contato e a temperatura da pele do cadáver. Gostam de acariciar partes eróticas de um cadáver, como as mamas e a vulva. Podem manipular órgãos sexuais dos mortos para obter orgasmo.
Classe V. Os Necrófilos Fetichistas
Essas pessoas tendem a cortar partes de um cadáver, como, por exemplo, o pênis. A partir daí, em posse do seu “ícone erótico”, mumificam e mantêm o pênis morto em sua posse para usá-lo como fetiche em suas atividades necrófilas. Diferentemente dos necrófilos da classe II (Necrófilos Românticos), os necrófilos dessa classe V (Necrófilos Fetichistas) fazem isso com partes de corpos de pessoas estranhas com quem nunca tiveram qualquer relacionamento amoroso em vida.
Classe VI. Os Necromutilomaníacos
Aqui o interesse pelos cadáveres é mais do que apenas tocá-los. O prazer necrofílico vem da mutilação de um cadáver.
Classe VII. Os Necrófilos Oportunistas
As atividades sexuais penetrantes com os mortos começam nesta classe. Normalmente estes necrófilos contentar-se-iam em ter relações sexuais apenas com os vivos, mas se surgisse uma oportunidade, não deixariam de ter relações sexuais com os mortos.
Classe VIII. Os Necrófilos Regulares
São os chamados necrófilos “clássicos” ou “constitucionais”. Eles não gostam de ter relações sexuais com os vivos e preferem cadáveres para as relações sexuais. No entanto, eles podem fazer sexo com pessoas vivas e mortas.
Classe IX. Os Necrófilos Homicidas
São, usualmente, pessoas perigosas no sentido de que matariam alguém para ter relações sexuais com ela. No entanto, essas pessoas são capazes de ter relações sexuais com os vivos, mas a necessidade de ter relações sexuais com os mortos é tão grande que elas sentem o impulso de matar seres humanos para ter relações sexuais com os seus cadáveres.
Classe X. Os Necrófilos Exclusivos
Aqui, a relação sexual só é possível com os mortos, com a exclusão total dos parceiros vivos.
Nós também construímos uma tipologia para os chamados necrófilos. Essa tipologia foi baseada em nove relatos de caso descritos por Benjamin Karpman (1954) e Kraft-Ebing (1898). Todos os casos relatados por esses eminentes psiquiatras foram de necrófilos que tiveram relações sexuais com mortos.
O software NVivo 12 Pro foi utilizado para organizar dados codificados hierarquicamente por meio de nós e por meio de ferramentas de classificação e mapeamento. A ferramenta de classificação permitiu criar categorias de dados provenientes de vários casos que possuíam dados de atributos e permitiram mapear dados temáticos. As ferramentas de codificação, classificação e mapeamento promoveram uma organização dos dados descritos nos relatos de caso, possibilitando uma categorização ou tipologia. Cada nó foi criado in situ.
Foram gerados cinco tipos de Necrófilos
- Os Necrófilos Constitucionais
Eles não gostam de ter relações sexuais com os vivos e preferem cadáveres para as relações sexuais. São tímidos, isolados, pouca habilidade para estabelecer vínculos de amizade ou mesmo eróticos. Desde muito cedo, essas pessoas têm contato com mortos e muito amiúde visitam cemitérios. Lembram os necrófilos das Classes dos Necrófilos Regulares e dos Necrófilos Exclusivos descritos por Aggrawal - Os Polimorfo-Perversos
A necrofilia é mais uma das várias parafilias que essas pessoas vivenciam. Pedofilia, voyeurismo, exibicionismo costumam estar presentes nestas pessoas - Os Necrófilos Erogeneizados
Esses necrófilos têm a necessidade do contato sexual com pele do cadáver. Sentir a temperatura e o turgor da pele morta é-lhes um prazer sem igual. Lembra bastante a Classe dos Necrófilos Fetichistas descrita por Aggrawal (com o excedente da necessidade aqui da relação sexual) - Os Necrófilos Substitutivos
Aqui, a verdadeira intenção e desejo seria assassinar alguém e aproveitar-se sexualmente do cadáver. No entanto, o homicídio permanece apenas na fantasia sexual - Os Necrófilos Sádicos
Essas pessoas são muito periculosas. Frias, enganadoras, embusteiras, desejosas por sangue e pelo corpo ainda em processo de esfriamento. Esse grupo lembra bastante os Necrófilos Homicidas e Necromutilomaníacos descritos por Agrawall
- Os Necrófilos Constitucionais
Temos, desta forma, um quadro bastante amplo sobre esse verdadeiro pesadelo clínico-forense chamado Necrofilia. Durante os meus mais de 25 anos tratando parafílicos, tive apenas dois ou três pares de casos de necrofílicos. A adesão ao tratamento nunca foi minimamente satisfatória. No entanto, e de qualquer forma, são parafilias clinicamente evidentes e merecedoras de atenção. E, por várias razões, que não apenas a dita e repisada “vergonha de procurar ajuda”, esses indivíduos não buscam tratamento, preferindo a autorreclusão em um universo catastrófico, macabro e temido.
Referências:
Aggrawal, A. (2009). Forensic and Medico-legal Aspects of Sexual Crimes and Unusual Sexual Practices. Boca Raton: CRC Press.
Hirschfeld, M. (1947). Sexual Pathology. A Study of Derangements of the Sexual Instinct. New York: Emerson Books.
Karpman, B. (1954). The Sexual Offender and his Offenses. Washington: Julian Press.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.