Religiosos Agressores Sexuais – Parte II

Proposta para a Seleção de Candidatos à Vida Religiosa

“Logo depois de ser consagrado ao sacerdócio, eu percebi que o salário era baixo e que eu precisava conseguir mais dinheiro. Vocês sabem, as crianças são caras nas ruas… Então, abençoava uns frascos de água que eu mesmo benzia, tornando-os bentos, e vendia esses frascos…”

(Anônimo)

Excerto – O Salário do Pecado

O discurso utiliza uma linguagem coloquial, marcada por frases curtas e simples, criando um efeito de espontaneidade. A repetição de sons, como em “benzia” e “bentos”, gera um ritmo que reforça a informalidade da narrativa. A expressão “crianças são caras nas ruas” é particularmente hedionda, uma vez impactada pelo seu realismo cru e patologia escancarada.

A sonoridade contribui para a construção de uma imagem de proximidade, como se o narrador estivesse contando uma história pessoal e íntima para um ouvinte próximo. A ausência de termos rebuscados e a predominância de palavras curtas e de fácil pronúncia facilitam a compreensão e a memorização, criando uma forte impressão no ouvinte.

A construção do discurso se dá por meio da interação entre um “eu” (o narrador, o sacerdote) e um “vocês” (o interlocutor, o público). O “eu” compartilha sua experiência pessoal, construindo uma relação de intimidade e confiança com o “vocês”, que é implicitamente convidado a compartilhar o conhecimento prévio sobre a realidade das “crianças nas ruas”. Essa relação de “eu” e “vocês” cria um espaço de diálogo implícito, onde a experiência do narrador busca ressonância na experiência do ouvinte.

O discurso faz referência a um conhecimento compartilhado, presumindo que o “vocês” já tenha uma ideia do custo de “angariar” crianças em situação de vulnerabilidade, dentro de uma cognição completamente distorcida.

Introdução

A avaliação psicológica dos candidatos à vida religiosa é um tema de discussão relativamente recente. Apesar de parecer, a priori, algo subjetivo demais para uma avaliação de candidatos a um determinado cargo, na verdade não o é. Critérios e procedimentos usados para avaliar os candidatos à vida religiosa não devem apenas ser academicamente orientados, concretizados através de provas teóricas e contagem de certificados frios de participação em congressos e/ou atividades clericais bem como publicações em revistas científicas. Uma ênfase significativa na avaliação psicológica deve ser dada. Provavelmente, a existência de problemas mentais e do comportamento pode não ser um critério definitivo de exclusão para a atividade profissional; todavia, havendo problemas mentais e do comportamento dignos de nota, o candidato deve ser encaminhado para acompanhamento e tratamento médico e psicológico consistente com a situação, antes de assumir o cargo ministerial.

Dessa forma, um processo rigoroso de avaliação visa a identificar indivíduos com as qualidades e características necessárias para uma vida de ministério bem-sucedida e gratificante.

Nos últimos anos, então, a Igreja Católica tem confiado cada vez mais em profissionais da saúde mental, geralmente psicólogos e psiquiatras qualificados e licenciados, para avaliar os candidatos ao sacerdócio. O Concílio Vaticano II pediu à Igreja para envolver-se diretamente com o mundo moderno no campo da educação e afirmou especificamente que “aqueles envolvidos em estudos teológicos em seminários e universidades devem cooperar com especialistas versados em outros campos do aprendizado, reunindo seus recursos e seus pontos de vista” (Flannery, 1984). As áreas das ciências sociais, especialmente a psicologia, foram observadas explicitamente neste contexto.

A consulta com psicólogos e psiquiatras tornou-se especialmente importante dada a atual e vexatória crise de abuso sexual. Assim, a avaliação psicológica deve tornar-se parte intrínseca do processo de triagem e admissão dos novos clérigos. As informações obtidas através das avaliações são geralmente incorporadas no processo de tomada de decisão. Orientações específicas para os procedimentos de avaliação e admissão têm sido descritos em documentos oficiais da Igreja (USCCB, 2005). No Código de Direito Canônico, que é o corpo de Leis Eclesiásticas internas que regem a Igreja Católica Romana, considera-se que apenas a formação nos seminários e faculdades não é suficiente para adequar os candidatos à vida clerical (Cânone1041).

Cânone 1041: As seguintes pessoas estão inaptas para receber as ordens clericais:

1° aquelas que, após avaliação especializada, mostrarem sofrer de qualquer forma de insanidade, ou de qualquer outra enfermidade mental que as tornam incapazes para o exercício do ministério (tradução livre do Latim)

Mais especificamente, os bispos católicos dos EUA determinam que os candidatos devem demonstrar capacidade de funcionar com competência em situações humanas comuns, com maturidade psicossexual proporcional à sua idade cronológica, e com empatia genuína e crítica (USCCB, 2005).

Problemas nas Avaliações Psicológicas

Os diretores de formação e vocação de todas as congregações religiosas e dioceses usam uma variedade de formas para avaliar aqueles que procuram servir a Igreja como sacerdotes, irmãos, diáconos, irmãs e assim por diante. Mesmo dentro de uma mesma Congregação ou entre dioceses próximas, pode haver grandes variações nos termos das políticas e dos procedimentos desenvolvidos para avaliar esses candidatos.

Além disso novos diretores vocacionais, novos bispos e outras mudanças no pessoal muitas vezes significam mudanças políticas e de procedimentos para a realização dessas avaliações. Parece realmente não haver um único tipo de protocolo universalmente aceito para avaliar esses candidatos à vida religiosa ou ao sacerdócio na Igreja.

É verdade que a ausência de um protocolo de avaliação universal não é necessariamente algo ruim. Congregações religiosas e dioceses individuais podem querer avaliar os candidatos de forma diferente por razões legítimas. Além disso, testes psicológicos específicos podem ser mais adequados para alguns grupos de indivíduos do que para outros. E, a depender do país, um teste pode ou não ter sido adequadamente validado para as propostas de avaliação.

No entanto, a maioria das vocações e diretores de formação geralmente recorrem à comunidade psicológica profissional para ajudar em seu processo de avaliação. Geralmente, eles solicitam que psicólogos e psiquiatras licenciados, que são bem versados na cultura e na tradição católicas, conduzam uma avaliação para determinar se o candidato é psicologicamente saudável o suficiente para entrar no seminário ou programa de formação.

Não existem políticas transnacionais consistentes para determinar exatamente como essas avaliações devem ser conduzidas ou qual, se houver, tipo de avaliação psicológica deve ser empregada. Essas decisões são frequentemente deixadas a critério do profissional de saúde mental que realiza a avaliação para a comunidade religiosa local ou diocese.

De qualquer forma, a recente crise dos abusos sexuais do clero na Igreja Católica oferece uma oportunidade para refletir sobre os processos de avaliação usados para selecionar os candidatos para a vida religiosa e para o sacerdócio.

A entrada na vida religiosa realmente exige um profundo comprometimento e responsabilidade, tanto pessoal quanto comunitária. Para garantir a saúde e o bem-estar de todos os envolvidos, um processo de avaliação cuidadoso e abrangente é fundamental. Este processo deve incluir a avaliação psicológica extremamente criteriosa, que procure responder às questões cruciais sobre a aptidão do candidato. A simples ausência de transtornos mentais e do comportamento explícitos não é suficiente; é preciso uma análise profunda da saúde mental e emocional do candidato, considerando o contexto específico da vida religiosa.

Quatro perguntas fundamentais devem guiar este processo de avaliação:

    1. O candidato apresenta algum transtorno psiquiátrico ou problemas psicológicos significativos?
      A identificação precisa do transtorno ou problema é crucial para os próximos passos.

    1. Se houver problemas psicológicos, eles representam um risco para a comunidade religiosa?
      É preciso avaliar o potencial de prejuízo que a condição do candidato pode causar a si mesmo, aos outros membros da comunidade, ou à imagem da instituição religiosa. Alguns transtornos, especialmente aqueles envolvendo comportamentos agressivos ou impulsivos, podem representar riscos consideráveis.

    1. Os problemas psicológicos do candidato são tratáveis e passíveis de remissão?
      Se identificada uma condição tratável, é importante avaliar a possibilidade de recuperação e a disposição do candidato para buscar tratamento adequado. A colaboração do candidato nesse processo é fundamental para um resultado positivo e salutar.

    1. As razões do candidato para ingressar na vida religiosa são sólidas e autênticas?
      A motivação para seguir a vida religiosa deve ser profundamente analisada. É preciso distinguir entre uma vocação genuína e motivações secundárias, como a busca de segurança, estabilidade emocional, ou fuga de problemas pessoais.

Responder a essas quatro perguntas de forma clara e honesta é crucial. A avaliação não visa a excluir indivíduos, mas sim garantir que aqueles que ingressam na vida religiosa possuam a saúde mental e emocional necessária para um bom desempenho e para o bem-estar de toda a comunidade. Um processo de avaliação criterioso, realizado por profissionais qualificados e sensíveis às particularidades da vida religiosa, protege a instituição, a comunidade e, acima de tudo, o próprio candidato.

A avaliação deve ser conduzida por profissionais experientes e éticos, que considerem o contexto cultural e religioso do candidato. Um processo transparente e bem documentado, que permita o diálogo e a reflexão, contribui para uma avaliação mais justa e completa.

Principais critérios psicológicos

O documento da USCCB destaca várias áreas-chave da avaliação psicológica:

    • Saúde Psicológica: Os candidatos são avaliados quanto à saúde mental, procurando a ausência de doenças mentais diagnosticáveis que possam interferir no ministério. Condições específicas como transtornos de personalidade são consideradas preocupações significativas. As chamadas “dependências” (jogos de azar, substâncias, sexo, internet) também devem ser examinados.

    • Características de personalidade, dinâmica pessoal e habilidades para a vida: A avaliação vai além da ausência do transtorno propriamente para examinar traços de personalidade e padrões de comportamento. Os principais aspectos incluem:

      1. Conscienciosidade: Um forte senso de identidade, autopercepção realista e autoestima positiva são valorizados. Baixa autoestima, narcisismo e falta de autoconsciência são vistos negativamente.

      2. Abertura e capacidade de feedback: A capacidade de ser aberto sobre si mesmo, receber feedback de forma construtiva e aprender com os erros é crucial. A resistência ao feedback é vista como um indicador negativo.

      3. Relações interpessoais: A capacidade de formar e manter relacionamentos saudáveis, empatia, intimidade e capacidade de estabelecer limites são avaliadas. Os sinais problemáticos incluem isolamento social, manipulação de outras pessoas e questões significativas de autoridade.

      4. Gerenciamento de estresse: A capacidade de lidar com estresse, pressão e múltiplas responsabilidades é essencial. Mecanismos de enfrentamento deficientes são motivo de preocupação.

      5. Maturidade psicossexual: A integração da sexualidade do candidato, o conforto com sua sexualidade e a capacidade para o celibato são fatores importantes. Os sinais problemáticos incluem ambivalência sexual, dependência de sexo, histórico de abuso e promiscuidade.

      6. Motivação: A avaliação explora as motivações do candidato para buscar o sacerdócio. As motivações positivas incluem o desejo de servir aos outros, o zelo por Deus e pela Igreja e um compromisso com o ministério. Os indicadores negativos incluem buscar status, escapar de problemas ou ter uma visão irreal do sacerdócio.

      7. Habilidades de tomada de decisão: A capacidade de tomada de decisão ponderada e equilibrada, considerando múltiplos fatores e possíveis consequências, também é avaliada. A tomada de decisão impulsiva é vista como problemática.

Métodos de avaliação

O processo de avaliação usa uma variedade de métodos.

    • Autorrelato: Autobiografias, entrevistas e formulários de inscrição.

    • Testes: Testes psicológicos (testes específicos e validados para o país em que o candidato deverá ser avaliado).

    • Observação in loco: Visitas domiciliares e interações com o candidato.

    • Registros: Transcrições acadêmicas, registros sacramentais, referências e verificações de antecedentes (criminais, financeiros e outros civis).

Considerações importantes

    • A avaliação é baseada no comportamento passado e presente, com a crença de que o comportamento passado é o melhor preditor do comportamento futuro.

    • O processo é adaptado às circunstâncias locais e pode variar entre as dioceses.

    • Toda avaliação precisa notar a importância de uma comunicação cuidadosa e respeitosa durante todo o processo.

Sugestões para a avaliação

Os profissionais que realizarão a avaliação devem utilizar mais de um teste validado no país para determinada categoria de problema. Os testes são complementares à uma rigorosa avaliação clínica e jamais devem ser únicos (utilizar-se de pelo menos dois testes para cada categoria de problema pode ser mais adequado). A validação cruzada entre os avaliadores (mais do que um avaliador para cada candidato) aumenta a confiabilidade das avaliações.

Testes sugeridos:

Escalas de Avaliação de Sintomas

    • Escalas curtas e específicas para avaliar sintomas de depressão (como a Escala de Depressão de Beck – BDI), ansiedade (como a Escala de Ansiedade de Beck – BAI), ou outros sintomas relevantes para o contexto.

Entrevistas Diagnósticas estruturadas

Como o DSM-5 ou CID-11, entrevistas que seguem os critérios diagnósticos para auxiliar na identificação de transtornos mentais. Um profissional treinado usaria esses critérios para conduzir a entrevista e chegar a um diagnóstico.

Para avaliar as Características de Personalidade, Dinâmica Pessoal e Habilidades para a Vida

    • NEO PI-R (Revisado): Este inventário de personalidade avalia os Cinco Grandes Fatores da personalidade (neuroticismo, extroversão, abertura à experiência, amabilidade e conscienciosidade), fornecendo informações sobre traços de personalidade importantes para o contexto

    • Testes Projetivos (TAT): Embora subjetivo e requerendo muita experiência para interpretação, testes projetivos podem fornecer informações sobre a dinâmica inconsciente e as defesas do indivíduo. Seu uso requer profissionais com larga experiência em testes projetivos.

Testes de Inteligência (WAIS, Teste de Inteligência não verbal)

Avaliam as habilidades cognitivas gerais. Embora não seja o foco principal, podem ser úteis para identificar deficiências ou pontos fortes cognitivos.

Para avaliar a Maturidade Psicossexual e Dependências

    • Entrevistas Clínicas: Conversas estruturadas e detalhadas sobre a história sexual, incluindo comportamentos sexuais, experiências passadas, e atitudes em relação à sexualidade e ao celibato. É necessário um profissional treinado e experiente.

    • Escalas de Avaliação de Dependências: Para avaliar dependência de substâncias, jogos de azar, ou internet. Existem várias escalas disponíveis, e a escolha dependerá da dependência específica em questão.

Para avaliar a Motivação e as Habilidades de Tomada de Decisão:

    • Entrevistas: Entrevistas estruturadas ou semiestruturadas sobre as motivações para o sacerdócio, valores, objetivos de vida e estilo de tomada de decisão.

    • Testes de Tomada de Decisão: Alguns testes avaliam o processo de tomada de decisão e a capacidade de solucionar problemas, mas não são amplamente utilizados no contexto da avaliação vocacional religiosa.

Palavras Finais

Novamente, enfatizo a necessidade de pelo menos dois profissionais qualificados para escolher e aplicar os testes adequados, levando em conta as necessidades e as especificidades de cada candidato. A interpretação dos resultados deve ser integrada com informações de outras fontes (autobiografias, entrevistas, referências etc.) para uma avaliação completa.

Referências

Flannery, A. P. (1984). Documents of Vatican II. Grand Rapids, MI: Erdmans.

U.S. Catholic Conference of Catholic Bishops. (2005). Program of priestly formation. Washington, DC: USCCB.

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