A Avaliação do Risco de Reincidência entre Agressores Sexuais – Parte I

parte 1

Ora, se os (…) reincidentes repetidas vezes voltam às barras do tribunal, permitindo-se-lhes viver ‘em sociedade’ e conservar seus bens temporais -, eles poderão prejudicar a salvação de outras pessoas, não só por serem capazes de contaminá-las ao reincidirem em seus crimes, mas também por darem mau exemplo a outros.

Ao escaparem sem punição estariam a mitigar o medo das pessoas de se contaminar pelo crime (…)”

(Heinrich Kramer & James Sprenger – Malleus Maleficarum – 1.486)

Excerto

Esse excerto demonstra uma preocupação moral e social com a reincidência criminal. O narrador faz uma crítica ao sistema judicial que permite que os reincidentes voltem a viver em sociedade sem manejo adequado, sugerindo que isso não apenas prejudica apenas a vida dessas pessoas, mas também coloca em risco a sociedade como um todo.

Os reincidentes são construídos como agentes de risco, o que não só os marginaliza, mas também define a identidade social da comunidade como sendo de vítimas em potencial. O uso da expressão “contaminá-las” ao referir-se a outras pessoas sugere uma metáfora biológica que associa crime a uma infecção, reforçando a ideia de que o comportamento delituoso é uma doença social e moral.

De fato, o discurso representa a voz de uma fatia da sociedade, que teme a contaminação moral e a influência negativa dos reincidentes sobre outros ofensores. Aqui, o problema da reincidência criminal não é apenas individual, mas mais do que isso, o que pode ameaçar a “salvação” de outrem, reforçando a ideia de responsabilidade de todos. Isso implica que o Estado e a sociedade têm a incumbência de agir em relação aos reincidentes.

A menção ao medo da contaminação pelo crime também sugere uma construção discursiva que associa aqueles que escapam da punição com o enfraquecimento das normas morais. A repetição da ideia de medo é estratégica: ao criar uma atmosfera de pânico em relação à possível impunidade dos criminosos, o discurso torna-se uma ferramenta de manipulação que busca reforçar a ordem estabelecida.

Parece haver um conflito entre a ideia da liberdade individual e da responsabilidade social. O excerto sugere que a liberdade concedida aos reincidentes pode ser prejudicial, criando um dilema entre a punição e a reintegração social. O discurso também sugere que a verdadeira função da punição vai além da retribuição, envolvendo também um elemento de proteção social.

Em suma, a linguagem é utilizada para construir realidades sociais complexas que envolvem moralidade, responsabilidade e segurança. O discurso não é neutro, mas carregado de valores e ideologias que moldam a percepção da criminalidade e influenciam práticas sociais e políticas. Em tempo, é importante ressaltar que se trata de um excerto da obra “Malleus Maleficarum”, que foi um texto instrumental na caça às bruxas no final do século XV, um período em que a Inquisição e a (des)construção do “outro” como forma de controle social eram dominantes.

Introdução

Ofensas sexuais reconhecidamente consistem em um sério problema de saúde e de segurança pública. O terror público emanado da existência de ofensores sexuais à espreita dos desavisados e inocentes traz à tona uma série de propostas legais nem sempre cientificamente embasadas. Essa asserção foi já debatida em dois dos textos aqui publicados a respeito da Lei de Megan e de outras Leis e propostas supervenientes e consequentes. Diante dessa preocupação crescente com a violência sexual, os agressores sexuais são mais propensos do que qualquer outro tipo de criminoso a ser submetidos às avaliações psiquiátricas em muitos países civilizados, principalmente nos Estados Unidos da América.

A violência sexual pode ser definida como real, tentada, ou ameaça de contato sexual com uma pessoa que não consente ou é incapaz de dar o consentimento sexual.

Objetivo de uma Avaliação Psiquiátrica

O objetivo de uma avaliação psiquiátrica é fornecer uma compreensão da razão pela qual um indivíduo cometeu um crime sexual, a fim de auxiliar no processo de avaliação do risco de reincidência. A identificação de certos fatores, condições e acontecimentos na história pessoal do indivíduo também permite que os profissionais desenvolvam programas de tratamento adequados, a fim de reduzir a possibilidade de infrações futuras. O uso da tríade sequencial “Antecedente-Comportamento-Consequência” serve para organizar todos os dados do caso em uma ordem cronológica de eventos que ilustram o desenvolvimento do comportamento ofensivo. Esta abordagem da compreensão do comportamento é, obviamente, muito mais ampla do que apenas olhar para as origens da ofensa sexual e abrange todos os aspectos do desenvolvimento do comportamento, seja ele pró-social ou antissocial.

Análise Comportamental

A análise comportamental tem uma série de pressupostos:

1. O processo de formação do comportamento é multifatorial e governado por um conjunto de regras biológicas e ambientais

2. Os processos psicológicos são sempre dinâmicos

3. A importância dos princípios da aprendizagem é considerável

4. Os comportamentos podem ser alterados e gerenciados por meio de tratamento.

Deve-se argumentar fortemente que as habilidades inatas (genéticas, biológicas) e os eventos ambientais (experiências de vida) se combinam para produzir um repertório de preceitos comportamentais que melhor se adaptam às situações diferentes e variadas. A combinação dos fatores biológicos e ambientais produz “percursos de carreira” desde a primeira infância, passando pela adolescência, até à idade adulta. A existência de “períodos críticos” no desenvolvimento humano ou mesmo animal pode favorecer a aquisição de um determinado padrão de conduta, e diversos fatores intervenientes nestes “períodos críticos” podem reformatar as rotas desse percurso.

A questão central para a previsão dos padrões do curso vital nas pesquisas do desenvolvimento diz respeito à ligação entre experiências e circunstâncias comportamentais precoces e comportamentos adultos posteriores. Ao investigar as vias de desenvolvimento desde a infância até a idade adulta, são propostas várias abordagens metodológicas diferentes. A maioria das pesquisas de desenvolvimento se concentra em regularidades na estabilidade das características de personalidade do indivíduo ao longo do tempo. No entanto, o problema com esta abordagem é a plausibilidade de correlacionar regularidades de traços específicos com teorias da personalidade. Uma segunda abordagem envolve a previsão dos comportamentos adultos de um indivíduo com base em atributos anteriores (isto é, experiências no início da vida). Esta abordagem investiga uma vasta gama de variáveis da infância com o objetivo de estabelecer um pequeno grupo de variáveis que sejam indicadores altamente preditivos de resultados específicos na vida adulta (por exemplo, abandono escolar, delinquência na juventude e criminalidade e psicopatologia na vida adulta). Outrossim, é importante focar na coerência dos estilos internos entre as transformações sociais no curso de vida por idade, ou seja, como o indivíduo enfrenta os desafios do desenvolvimento, adapta-se aos novos ambientes e reage às consequências de longo prazo dessas estratégias adaptativas. Esta abordagem combina a avaliação longitudinal dos indivíduos com o julgamento das situações, a fim de mostrar como a personalidade precoce molda as realizações e as relações em diversas circunstâncias e em diferentes idades.

As Avaliações de Risco

As avaliações de risco de reincidência entre agressores sexuais são um tema complexo que envolve uma análise detalhada de fatores diversos. Múltiplas são as abordagens teóricas e metodológicas para compreender os comportamentos sexualmente ofensivos, considerando tanto as experiências precoces do indivíduo quanto os seus desenvolvimentos ao longo da vida.

Aqui estão alguns pontos chave para uma análise abrangente:

Relação entre experiências precoces e comportamento adulto

A análise do desenvolvimento humano sugere que as experiências iniciais influenciam significantemente o comportamento na idade adulta. Isso pode incluir traumas, relacionamentos familiares e situações de risco na infância, que podem contribuir para o aparecimento de comportamentos delinquentes ou ofensivos. Estudos indicam que uma infância marcada pelo abandono, abusos ou falta de apego saudável pode resultar em dificuldades emocionais e comportamentais na vida adulta, aumentando o risco de reincidência entre aqueles que delinquiram.

Abordagens metodológicas

Duas abordagens principais emergem das pesquisas sobre reincidência:

    • Predição Comportamental: Esta abordagem enfatiza a utilização de dados históricos e comportamentais para prever a probabilidade de reincidência. Fatores como idade de início da delinquência, frequência e gravidade dos atos criminosos anteriores são considerados indicadores preditivos.

    • Análise Funcional: Focando nas motivações subjacentes ao comportamento, essa abordagem examina como fatores situacionais e pessoais (como estados emocionais, cognição e interação social) influenciam a prática de ofensas sexuais.

Fatores de risco

A literatura identifica quatro categorias principais de fatores de risco relevantes.

    • Fatores Disposicionais: Incluem traços de personalidade, como psicopatia, e tendências comportamentais que predispõem os indivíduos a cometer ofensas sexuais.

    • Fatores Históricos: História de comportamentos violentos ou sexuais, experiências de trauma e contextos socioeconômicos adversos que podem influenciar o comportamento futuro.

    • Fatores Contextuais: A ausência de redes de apoio social e a presença de ambientes que fomentam o crime são aspectos relevantes.

    • Fatores Clínicos: Diagnósticos psiquiátricos (Transtornos Parafílicos, Transtornos de Personalidade), abuso de substâncias e outros problemas de saúde mental que podem limitar a capacidade de autocontrole e julgamento do indivíduo.

 

Processos psicológicos dinâmicos

Nós sugerimos que os comportamentos são afetados por sistemas dinâmicos de gratificação que tentam satisfazer necessidades internas e externas do indivíduo. Isso implica que, para entender por que a reincidência ocorre, é fundamental considerar não apenas as circunstâncias externas, mas também os processos internos que impulsionam a escolha de comportamentos. Alguns desses processos dinâmicos podem ser aqui sumarizados:

Importância da Aprendizagem e da Intervenção

A utilização de princípios de aprendizagem, como condicionamento operante e aprendizagem social, são centrais para desenvolver estratégias de reabilitação e prevenção da reincidência. Modificações no comportamento e princípios cognitivos podem ser empregados para melhorar o autocontrole e a regulação emocional, essenciais para reduzir a criminalidade.

Análise Funcional e Intervenções

A análise funcional é vista como uma ferramenta essencial para entender as circunstâncias do comportamento ofensivo. Através dela, identificam-se não apenas os antecedentes, mas também as consequências que mantêm o comportamento. Isso leva à formulação de programas de tratamento específicos que abordam tanto os fatores de risco quanto os fatores de proteção, visando a reduzir a probabilidade de reincidência.

É importante levar em conta a diversidade infratora e acomodar indivíduos cujas crenças firmemente arraigadas sobre a legitimidade do contato sexual com crianças ou do sexo forçado com adultos os levam a experimentar emoções positivas durante o processo de ofensa. As cadeias de decisão têm a vantagem de poder representar com igual facilidade crimes sexuais que surgem de estados emocionais negativos e de estratégias de enfrentamento inadequadas e crimes sexuais em que esses fatores negativos não estão envolvidos.

Palavras Finais

As avaliações de risco de reincidência entre agressores sexuais devem integrar uma compreensão multifatorial do comportamento, considerando a interação entre fatores pessoais, contextuais, históricos e clínicos. Essa avaliação deve ser contínua e adaptativa, permitindo intervenções mais eficazes e um acompanhamento mais preciso das necessidades de tratamento dos indivíduos. Isso não apenas melhora as perspectivas de reabilitação do agressor, mas também contribui para a segurança da sociedade ao mitigar os riscos de reincidência.

Referências

Craig, L.A., Browne, K.D. & Beech, A.R. (2008). Assessing Risk in Sex Offenders. A Practitioner’s Guide. West Sussex: John Wiley & Sons.

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