Falta de motivação para largar a cocaína: entenda por que a cocaína é uma das drogas com maior potencial para induzir quadro de dependência. E qual é a tênue fronteira entre o uso recreativo e a síndrome de dependência?
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“Cheiro cocaína há muitos anos, só finais de semana, mas vivo um conflito eterno dentro de mim: ao mesmo tempo que eu penso que deveria parar… não tenho a menor motivação e nem vontade nenhuma de fazer isso. O que acontece comigo? O que preciso fazer? Se puderem me ajudar, agradeço.”
Resposta
O uso de drogas ilegais entre pacientes que procuram Unidades de Atenção Básica à Saúde gira em torno de 5% a 8%, mas muitas vezes esse problema não é revelado pelo paciente ou pouco investigado pelos profissionais da saúde.
Os riscos físicos, emocionais e sociais do uso recreativo de substâncias psicoativas não são bem compreendidos, mas qualquer uso de drogas, mesmo que ocasional ou recreativo, pode ter um impacto nos processos de outras doenças e na eficácia dos tratamentos prescritos por motivos diversos. Por essa razão nada vil, e dado o potencial de aumento do uso esporádico ou ocasional de drogas, os médicos da atenção primária têm a “necessidade de conhecer” o histórico completo dos seus pacientes.
De uma forma mais geral, em pesquisa epidemiológica realizada em 2018 pelo National Survey on Drug Use and Health, cerca de 2,5% daqueles com 12 anos de idade ou mais fizeram uso de cocaína/crack no ano anterior. Cerca de 0,4% deste contingente demonstrou problemas relacionados ao uso da cocaína no mesmo período.
Dependência de cocaína é progressiva
A dependência é muitas vezes reportada como uma “condição progressiva”; portanto, uma vez que uma quantidade maior da substância é necessária para obter o mesmo efeito, estamos diante de um importante indicador de problemas com o seu consumo, a famigerada Tolerância. Não é possível afirmar que se você usar X gramas de cocaína semanalmente durante um período de três meses, você se tornará dependente. É possível ser um ‘dependente de cocaína funcional’ por um certo período de tempo antes dos problemas associados se tornarem escancarados.
Não há certeza de que, se você usar cocaína algumas vezes, desenvolverá uma Síndrome de Dependência; contudo, a probabilidade é alta devido à forte ação desta substância nas vias de recompensa no cérebro e na neurogênese específica. Uma infusão de cocaína aumenta a atividade neuronal do hipocampo (principal região cerebral relacionada com a memória) e aumenta a plasticidade sináptica, o que pode resultar em um fortalecimento agudo da ação do hipocampo dependente da cocaína, incluindo maior consolidação da memória associada com o prazer do consumo.
Além disso, o hipocampo é claramente necessário para a aquisição, consolidação, recordação e atualização (reconsolidação ou extinção) das associações dos estímulos que evocam o uso da cocaína. Este requisito é ilustrado por numerosos experimentos em roedores nos quais foram usados estes estímulos relacionados com o consumo da droga para estudar a memória associativa induzida pela cocaína; estudos clínicos de dependentes de cocaína mostrando aumento da atividade do hipocampo (associada a sentimentos de desejo), quando eles recebem uma sugestão (estímulo) associada à cocaína também têm sido realizados.
Logo, você tem no seu cérebro uma estrutura forte que fará você se lembrar dos eventos prazerosos associados com o consumo da cocaína, principalmente quando estiver diante de estímulos associados. A saliência da memória para os eventos prazerosos da cocaína suplanta as memórias para os eventos negativos. Daí, talvez, o seu desânimo, quando na falta da droga.
É importante repisar que o desenvolvimento do quadro de Síndrome de Dependência está associado a uma série de fatores intrínsecos e extrínsecos ao indivíduo, tais como: história familiar de dependência química, influência dos pares e ambiente, presença de outros transtornos mentais (como depressão, ansiedade, transtornos da personalidade), potencial da própria substância psicoativa etc. Tudo isso influenciará a motivação para consumir cocaína e a propensão para se tornar dependente.
Por que a cocaína é tem enorme potencial para desenvolver síndrome de dependência?
A cocaína é uma das drogas com maior potencial para induzir quadros de Síndrome de Dependência por causa da sua ação estimulante no Sistema Nervoso Central e pelo aumento excessivo na liberação de dopamina e de outros neurotransmissores.
Como a cocaína afeta as vias de recompensa no cérebro, o aumento do uso da droga ao longo do tempo resulta na incapacidade de obter prazer e recompensa com outras atividades não relacionadas ou não associadas com o consumo da droga.
Um forte exemplo é o sexo. Se a cocaína for usada repetidamente para e durante a prática de atividades sexuais, a capacidade de desfrutar e experimentar o prazer sexual sem a cocaína fica por demais diminuída. De fato, a cocaína evoca sentimentos de autoconfiança e faz as pessoas se sentirem “sexy”.
No geral, homens e mulheres estão sob crescente pressão para serem charmosos, sexy, bonitos, de alto desempenho… A cocaína provoca a sensação de autoconfiança e, inicialmente durante o uso, aumento da libido. Outrossim, a cocaína desinibe pessoas para que se sintam confiantes para se comportar de certas maneiras que não o fariam se não estivessem sob a influência da droga. Além de afetar as vias de recompensa, a cocaína também afeta as vias cerebrais que respondem ao estresse.
Na minha experiência, muitas vezes vejo uma apresentação de dependência de cocaína coocorrendo com um transtorno relacionado ao estresse. O uso de cocaína eleva os hormônios do estresse mas as pessoas procuram mais cocaína para aliviar o estresse, criando um ciclo devastador.
Perda de apetite, desnutrição, aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial, constrição dos vasos sanguíneos, aumento da frequência respiratória, pupilas dilatadas, dores de cabeça, padrões de sono perturbados, náusea e dor abdominal, hiperestimulação, comportamento bizarro, errático (às vezes violento) e comportamento sexual de risco ocorrem muito amiúde entre usuários ditos “recreativos” da droga.
Em casos mais graves e de maior vulnerabilidade individual, sintomas como alucinações, hiperexcitabilidade, irritabilidade, raiva podem surgir. Na maioria dos casos, as pessoas experimentam uma intensa euforia seguida de desnivelamento do humor e da ansiedade.
Problemas causados pelo consumo episódico e recreativo de cocaína
Mesmo nos casos desse “uso episódico e/ou recreativo regular”, problemas decorrentes à saúde física têm sido observados: danos permanentes aos vasos sanguíneos do coração e do cérebro, aumento da pressão arterial sistêmica, acidentes vasculares cerebrais, danos no fígado, rins e pulmões, destruição de tecidos nasais. Além disso, há que notar outros problemas, tais como:
a) Doenças infectocontagiosas e abscessos, se a droga for injetada
b) Insuficiência respiratória, quando a cocaína é fuma
c) Desnutrição e perda de peso como resultado da supressão do apetite
d) Cáries
e) Problemas de saúde sexual
f) Desorientação, apatia, confusão e exaustão
g) Irritabilidade e distúrbios de humor elevado
h) Alucinações auditivas, aumento da frequência de comportamentos perigosos e de alto risco.
Na prática clínica diuturna, esses autodenominados “usuários recreativos” costumam dizer que “só quero me divertir, sem machucar ninguém”; “só sou jovem uma vez”; “vou parar quando me estabelecer, quando me casar, quando tiver filhos, quando estiver 45…’. Isso é a negação dos problemas relacionados ao consumo de cocaína.
A frequente presença da cocaína nos filmes ou películas cinematográficas combinada com os preços baixos da droga tornam a substância psicoativa mais acessível para um público mais amplo. Não é mais exclusivo de celebridades e profissionais de alta renda.
Qual é a tênue fronteira entre o uso recreativo e a síndrome de dependência?
Um indicador-chave que revela se o uso de cocaína progrediu de um hábito social “sob controle e apenas durante os finais de semana” para um quadro problemático do tipo Síndrome de Dependência, é quando os ditos “usuários recreativos” são incapazes de manter sua decisão de não comprar cocaína, apesar de terem tomado a decisão de passar uma noite ou final de semana livres dela. Este é um indicador claro de que há uma mudança de poder, ou seja, a droga tem o controle sobre os ditos “usuários recreativos”. Aqui, o indivíduo não está mais no comando de seus próprios padrões de uso e a sua capacidade de escolha foi extraída. Isso é sinal precípuo de dependência.
Alguns pacientes que se autodenominam “usuários recreativos e de final de semana” usualmente declaram que, quando viajam nos finais de semana, não compram a droga. No entanto, frequentemente reportam que pensam diversas vezes no uso e nas experiências prazerosas associadas com o uso da cocaína durante tais finais de semana drug-free.
Você está percebendo os problemas claros desse uso pernicioso da cocaína e está pedindo ajuda. Essa é uma decisão chave para a sua atual recuperação e, se for feito um tratamento adequado, para a suspensão de prováveis consequências nocivas para o seu cérebro e demais órgãos vitais do seu corpo.
Não perca tempo!!!
Atenção! Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.