Duas ou mais formas de tratamentos concomitantes podem ajudar a evitar recaídas no consumo de cocaína; entenda
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Resposta
Para evitar recaídas, é preciso um tratamento cognitivo constante
Por que as pessoas recaem?
Comumente, tanto a vontade de sentir o “high” da cocaína quanto os eventos negativos experimentados na vida são, a grosso modo, poderosos gatilhos para os lapsos e recaídas. Daí a necessidade da constante automonitorização e tratamento continuado.Os tratamentos disponíveis para a Síndrome de Dependênciade cocaína resumidamente consistem em psicoterapias específicas, grupos de mútua ajuda (tipo NA), tratamentos médicos especializados para controlar a impulsividade e manejar outros sintomas coexistentes entre os portadores da Síndrome de Dependência. Como eu tenho escrito inúmeras vezes no site Vya Estelar, não existem medicações comprovadamente eficazes e seguras para o tratamento específico desta Síndrome de Dependência até o momento. Apesar disso, existem medicações que tratam transtornos coexistentes, como depressão, ansiedade e impulsividade.
Fatores internos que levam à perda de controle sobre a droga
A perda do controle diante da substância pode estar relacionada com fatores internos (ansiedade, depressão, impulsividade) e externos (tais como eventos estressantes ou estímulos que eram previamente relacionados com os efeitos da cocaína). Desta forma, exposição aos estímulos relacionados com o uso da cocaína (por exemplo, visitar um local onde a droga era usada) pode provocar uma intensa fissura e precipitar a recaída. As memórias associadas com tais estímulos são persistentes e refratárias ao esquecimento e à extinção.
Dito isso, alguns autores têm promovido a ideia de que a Síndrome de Dependência de Cocaína também seja uma doença da memória e do aprendizado. Isso parece ser um paradoxo à medida que o uso continuado da cocaína causa notável declínio cognitivo (prejuízos na memória, atenção, julgamento, autorregulação).
Estudos recentes têm investigado o papel do hipocampo, a principal região cerebral envolvida com as memórias associativas e declarativas, nas propriedades de reforço para o uso continuado da droga. É importante ressaltar que esta estrutura cerebral – hipocampo – é anatomicamente e funcionalmente integrada ao famigerado sistema de recompensa cerebral. Notavelmente, em estudos experimentais (com roedores), a infusão de cocaína aumenta a atividade das células hipocampais e modifica a plasticidade neuronal.
Estudos investigam o papel do hipocampo, principal região cerebral envolvida com as memórias associativas, em relação ao uso contínuo de cocaína
O hipocampo é claramente requisitado para a aquisição, consolidação e recuperação da memória e, também, está envolvido nas experiências associadas com o uso de cocaína. Isso pode ser ilustrado através de estudos clínicos de imagem cerebral que têm mostrado um aumento da atividade hipocampal, quando indivíduos já dependentes são expostos a estímulos associados com o uso da cocaína.
Nós devemos considerar, brevemente aqui, que os neurônios hipocampais são continuamente gerados na chamada zona sub-granular do giro denteado. Este processo de neurogênese ocorre em um complexo e sensível ambiente, com influência de diferentes neurosubstâncias, fatores inflamatórios e fatores de crescimento. Estas células, em cada etapa do seu crescimento e maturação, exibem propriedades fisiológicas distintas, padrões diversos de expressão e graus variados de integração com outras células neurais. Portanto, os eventos de proliferação, diferenciação, maturação e sobrevivência das células podem ser afetados por fatores múltiplos, inclusive substâncias exógenas. Em estudos pré-clínicos, a cocaína inibe a proliferação das novas células no dito giro denteado; em animais, esta reduzida neurogênese hipocampal produz um aumento nos comportamentos de busca pela droga, já que ocorre uma certa manutenção daquelas células “ensinadas”.
Como a cocaína ‘estabelece sua dependência’
Assim, a comunidade científica tem proposto que a reduzida neurogênese hipocampal saudável é um potencial mecanismo pelo qual a cocaína estabelece a sua dependência. Contudo, estudos também têm mostrado que neurônios gerados antes da exposição à droga exibem melhor maturação e integração funcional em animais que começam a fazer uso da cocaína e estão “abertos” à associação mental entre o uso da droga e determinados estímulos ou situações. Assim, por prejudicar a neurogênese hipocampal, a cocaína poderia provocar importante declínio cognitivo; por outro lado, ao usar cocaína, neurônios já existentes e aqueles que conseguem sobreviver “aprendem” sobre o uso da cocaína e registram a atividade do uso como prazerosa. Para recuperar a memória mais saliente, que é a do prazer do consumo, basta um estopim.Em resumo, tem sido proposto que o uso de cocaína toma vantagem sobre os mecanismos hipocampais no processamento da aprendizagem e da codificação das memórias associadas com o uso da substância. Por outro lado, esta desregulação dos sistemas hipocampais por tempo prolongado resulta em problemas com a regulação do aprendizado normal e subsequente declínio cognitivo.
Tanto a proliferação, a sobrevivência e a maturação das células geradas no núcleo denteado dependem de estímulos neuroquímicos. Infelizmente, a cocaína atinge em cheio esta localização cerebral, desregulando as substâncias mediadoras da neurogênese. Tais substâncias mediadoras podem ser aqui sumariamente citadas: dopamina, serotonina, norepinefrina, endocanabinoides, fatores inflamatórios, dentre outros. Outrossim, a cocaína exerce diretamente ação sobre os novos neurônios, à medida que penetra na circulação sanguínea.
Portanto, o seu padrinho do NA está correto. A saliência da memória para o uso da cocaína é por demais intensa e pode durar décadas. Continue o seu tratamento. Caso esteja apresentando sintomas “perigosos” (cansaço, depressão, “vazio”, necessidade de sentir prazer etc), compartilhe tais sintomas com o grupo de mútua ajuda e procure tratamento médico especializado.
Na comunidade científica, também existe uma forte opinião de que duas ou mais formas de tratamento concomitantes para o manejo das Dependências Químicas tendem a ser mais eficaz do que uma única forma de tratamento isolada.
Boa sorte!
Atenção! Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.
Danilo Antonio Baltieri
Médico psiquiatra. Mestre e Doutor em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade. Currículo Lattes.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.