Implicações da Família Disfuncional em Geral e entre Sentenciados
“Saí da prisão há seis meses, devido ao estupro da minha sobrinha. Eu gostaria de poder conviver com a minha família, mas todos não querem a minha presença. Quando apareço na casa dos meus irmãos, sou escrachado e chamado de pedófilo e tarado. Eles não me querem. E eu vou mostrar para eles o quão fantástico eu posso ser”
(Anônimo)
Excerto – Rejeição e Busca pelo Fantástico
O discurso é proferido por um indivíduo que recentemente saiu da prisão após cumprir pena por estupro de sua sobrinha. Ele expressa o desejo de reintegração familiar, mas enfrenta rejeição e hostilidade por parte de seus irmãos, que o chamam de “pedófilo” e “tarado”. O contexto é marcado, claramente, por:
Trauma familiar: O crime cometido pelo indivíduo gerou um rompimento profundo nos laços familiares.
Estigma social: O indivíduo é rotulado e marginalizado dentro de sua própria família, o que reflete a disfuncionalidade do sistema familiar.
Desejo de reconhecimento: A frase final, “E eu vou mostrar para eles o quão fantástico eu posso ser”, sugere uma tentativa de reafirmação pessoal e busca por aceitação.
A disfuncionalidade familiar é evidente no discurso, e podemos inferir os seguintes aspectos:
Falta de comunicação efetiva: A família não consegue estabelecer um diálogo construtivo com o indivíduo, optando por rejeitá-lo de forma agressiva.
Rompimento de vínculos: O crime cometido pelo indivíduo destruiu a confiança e os laços afetivos, criando uma barreira emocional intransponível.
Estigmatização e exclusão: A família, ao invés de buscar uma forma de lidar com a situação de maneira terapêutica ou mediada, opta por excluir e humilhar o indivíduo, reforçando a disfuncionalidade.
Falta de apoio emocional: O indivíduo parece estar sozinho em sua tentativa de reintegração, sem qualquer suporte emocional ou familiar.
Essa disfuncionalidade familiar pode ser analisada a partir dos seguintes elementos:
Conflitos não resolvidos: O crime cometido pelo indivíduo não foi trabalhado emocionalmente pela família, resultando em ressentimento e hostilidade.
Falta de limites saudáveis: A família não estabelece limites claros e saudáveis, optando por uma rejeição total em vez de buscar uma mediação ou terapia familiar.
Ciclo de violência: A hostilidade e a agressividade dos irmãos podem perpetuar um ciclo de violência emocional, onde o indivíduo se sente cada vez mais marginalizado e ressentido.
Falta de empatia: A família não demonstra empatia ou compreensão em relação ao indivíduo, o que pode agravar sua situação emocional e psicológica.
O discurso revela várias implicações emocionais e sociais para o indivíduo e sua família:
Isolamento social: O indivíduo está isolado não apenas dentro de sua família, mas também na sociedade, devido ao estigma associado ao crime que cometeu.
Busca por identidade: A frase final, “E eu vou mostrar para eles o quão fantástico eu posso ser”, sugere uma tentativa de reconstruir a sua identidade e autoestima, possivelmente como uma reação à rejeição familiar.
Risco de reincidência: A falta de apoio familiar e social pode aumentar o risco de reincidência, já que o indivíduo não tem uma rede de suporte para ajudá-lo a se reintegrar à sociedade.
Impacto psicológico: A rejeição e a hostilidade da família podem levar a sentimentos de raiva, frustração e desespero, o que pode agravar problemas psicológicos preexistentes.
Utilizando a metodologia de análise de conteúdo proposta por Krippendorff, podemos destacar:
Unidades de análise: As frases-chave do discurso, como “todos não querem a minha presença”, “sou escrachado e chamado de pedófilo e tarado”, e “vou mostrar para eles o quão fantástico eu posso ser”, são unidades significativas que revelam a dinâmica familiar disfuncional.
Inferências: A partir dessas unidades, inferimos que a família está presa em um ciclo de rejeição e estigmatização, enquanto o indivíduo busca uma forma de reafirmar sua identidade e valor.
Contexto: O contexto de disfuncionalidade familiar é marcado por trauma, estigma e falta de comunicação, o que impede a resolução dos conflitos.
Validação: A análise é validada pela consistência interna do discurso, que reflete claramente a rejeição familiar e a busca por reconhecimento.
O discurso analisado revela uma situação familiar profundamente disfuncional, marcada por rejeição, estigmatização e falta de comunicação. O indivíduo, por sua vez, busca uma forma de reafirmar sua identidade e valor, mas enfrenta barreiras emocionais e sociais significativas. A análise de conteúdo permite identificar os principais elementos dessa dinâmica, destacando a necessidade de intervenção terapêutica e mediação familiar para romper o ciclo de violência emocional e promover a reintegração social do indivíduo.
A disfuncionalidade familiar, nesse caso, não apenas perpetua o sofrimento do indivíduo, mas também impede a resolução dos conflitos e a reconstrução dos laços familiares. Uma abordagem mediada e terapêutica poderia ser essencial para transformar essa dinâmica e promover a cura emocional de todos os envolvidos.
Introdução
O funcionamento familiar é um aspecto crucial para o desenvolvimento saudável dos indivíduos e para a manutenção de relações interpessoais equilibradas. A família, como unidade básica da sociedade, desempenha um papel fundamental na formação emocional, social e psicológica de seus membros. Segundo Epstein, Baldwin e Bishop (1983), um dos modelos de funcionamento familiar inclui sete dimensões essenciais para avaliar a saúde familiar: resolução de problemas, comunicação, papéis, responsividade afetiva, envolvimento afetivo, controle comportamental e funcionamento geral. Essas dimensões ajudam a identificar como as famílias lidam com desafios cotidianos e como mantêm a coesão e o apoio mútuo.
Uma família disfuncional pode ser definida como aquela que apresenta dificuldades significativas em uma ou mais dessas dimensões, resultando em um ambiente que oferece suporte emocional inadequado, comunicação ineficaz e/ou papéis mal definidos. De acordo com Epstein et al. (1983), famílias disfuncionais tendem a ter problemas na resolução de conflitos, na expressão de afeto e na definição clara de responsabilidades, o que pode levar a um ciclo de comportamentos negativos e à perpetuação de padrões prejudiciais.
As implicações de uma família disfuncional são vastas e podem afetar profundamente o bem-estar dos seus membros. Crianças criadas em ambientes familiares disfuncionais, por exemplo, têm maior probabilidade de desenvolver problemas emocionais, comportamentais e sociais, como ansiedade, depressão e dificuldades de relacionamento (Bishop & Epstein, 1980). Além disso, a falta de comunicação eficaz e de suporte emocional pode levar a conflitos conjugais e ao aumento do estresse familiar, impactando negativamente a saúde mental de todos os envolvidos (Epstein & Bishop, 1981).
A terapia familiar tem sido uma abordagem eficaz para lidar com esses desafios. O modelo McMaster, por exemplo, oferece uma estrutura clara para avaliar e intervir em famílias disfuncionais, ajudando-as a desenvolver habilidades de comunicação, resolução de problemas e expressão emocional (Epstein et al., 1983). Estudos têm demonstrado que intervenções baseadas nesse modelo podem melhorar significativamente o funcionamento familiar e o bem-estar individual dos membros (Bishop, Epstein, & Baldwin, 1980).
Em resumo, o funcionamento familiar é um pilar essencial para o desenvolvimento saudável dos indivíduos e para a manutenção de relações equilibradas. Famílias disfuncionais, por outro lado, podem gerar uma série de problemas emocionais e sociais, destacando a importância de intervenções terapêuticas eficazes. A compreensão e a aplicação de modelos como o McMaster podem ser ferramentas valiosas para promover a saúde e a harmonia familiar.
A Disfuncionalidade Familiar entre Sentenciados
A disfuncionalidade familiar desempenha também um papel significativo no desenvolvimento de comportamentos criminosos e na reincidência entre indivíduos sentenciados. Aliás, quanto melhor a funcionalidade familiar, mais fatores de proteção contra a reincidência existirão. A funcionalidade familiar adequada é um importante fator dinâmico protetor contra a reincidência criminal.
Estudos têm demonstrado que a estrutura e o funcionamento familiar são fatores cruciais que influenciam a propensão ao crime e a capacidade de reintegração social após a liberação. De acordo com Mohammadbeigi Salahshour, Motevalli e Ebrahimi (2024), a falta de coesão familiar, a ausência de suporte emocional e a presença de conflitos intrafamiliares estão associadas às maiores taxas de reincidência entre apenados egressos.
A pesquisa realizada por Mohammadbeigi Salahshour et al. (2024) identificou que famílias disfuncionais, caracterizadas por problemas como violência doméstica, negligência e abuso, contribuem para o desenvolvimento de traços de personalidade antissociais e comportamentos delinquentes. Além disso, a ausência de figuras paternas ou maternas, bem como a falta de envolvimento parental na vida dos filhos, são fatores que exacerbam a vulnerabilidade dos indivíduos ao envolvimento em atividades criminosas e/ou de risco. Esses achados corroboram a teoria da desorganização social, que sugere que ambientes familiares instáveis e conflituosos criam condições propícias para o surgimento de comportamentos desviantes (Kang & Hureau, 2023).
Outro aspecto relevante é o impacto da disfuncionalidade familiar na saúde mental dos sentenciados. Indivíduos que crescem em ambientes familiares disfuncionais frequentemente apresentam transtornos psicológicos, como depressão e ansiedade, que podem persistir e se agravar no ambiente prisional (Alemayehu et al., 2019). A falta de habilidades de resolução de problemas e a incapacidade de estabelecer relacionamentos saudáveis são consequências diretas da disfuncionalidade familiar, dificultando a adaptação dos indivíduos à vida em sociedade após a liberação (Mohammadbeigi Salahshour et al., 2024).
Portanto, intervenções que visem a fortalecer os laços familiares e promover um ambiente familiar mais estável e saudável são essenciais para reduzir a reincidência criminal. Programas de reintegração que incluam o apoio familiar e a terapia familiar podem ser eficazes na melhoria do funcionamento familiar e, consequentemente, na redução do comportamento criminoso (Thorne, de Viggiani, & Plugge, 2023). Em suma, a disfuncionalidade familiar é um fator crítico que deve ser abordado tanto no contexto preventivo quanto no tratamento de indivíduos sentenciados.
Uma Escala de Avaliação Familiar McMaster (FAD)
A FAD (Family Assessment Device) é uma ferramenta que permite avaliar as seis dimensões mencionadas acima de forma detalhada. A escala é composta por sete dimensões, cada uma com itens específicos que avaliam aspectos do funcionamento familiar:
Resolução de Problemas: Avalia a capacidade da família de lidar com problemas de forma eficaz. Itens incluem: “Nós geralmente agimos sobre nossas decisões em relação a problemas” e “Depois que nossa família tenta resolver um problema, geralmente discutimos se funcionou ou não”.
Comunicação: Mede a clareza e a diretividade da comunicação entre os membros da família. Exemplos de itens são: “Quando alguém está chateado, os outros sabem por quê” e “As pessoas falam diretamente em vez de dar indiretas”.
Papéis: Avalia a distribuição e a execução de responsabilidades familiares. Itens como “Nós discutimos quem deve fazer as tarefas domésticas” e “Tarefas familiares não são distribuídas de forma equilibrada” fazem parte dessa subescala.
Responsividade Afetiva: Mede a capacidade dos membros da família de expressar emoções adequadas em diferentes situações. Itens incluem: “Nós expressamos carinho” e “Somos relutantes em mostrar afeto um pelo outro”.
Envolvimento Afetivo: Avalia o interesse e o valor que os membros da família dão às atividades e preocupações uns dos outros. Exemplos de itens são: “Nós nos envolvemos uns com os outros apenas quando algo nos interessa” e “Nossa família mostra interesse uns pelos outros apenas quando podem obter algo em troca”.
Controle Comportamental: Mede como a família estabelece e mantém padrões de comportamento. Itens como “Nós sabemos o que fazer em uma emergência” e “Qualquer coisa vale em nossa família” fazem parte dessa subescala.
Funcionamento Geral: Avalia a saúde geral da família, incluindo itens como “Em tempos de crise, podemos contar uns com os outros para apoio” e “Há muitos sentimentos ruins na família”.
Uma proposta de Avaliação do Funcionamento Familiar na Prática Clínica e Clínico-Forense
Apresenta-se um instrumento que foi desenvolvido com base no Modelo McMaster de Funcionamento Familiar (MMFF) e na Escala de Avaliação Familiar McMaster (FAD). Ele é composto por sete dimensões, cada uma com perguntas que avaliam aspectos específicos do funcionamento familiar. As respostas devem ser dadas em uma escala Likert de 4 pontos, onde:
1 = Discordo totalmente
2 = Discordo
3 = Concordo
4 = Concordo totalmente
1. Resolução de Problemas
Nossa família geralmente age rapidamente para resolver problemas.
Depois de tentar resolver um problema, discutimos se a solução funcionou.
Conseguimos resolver a maioria dos problemas emocionais que surgem.
Enfrentamos problemas que envolvem sentimentos de forma direta.
Procuramos pensar em diferentes maneiras de resolver problemas.
2. Comunicação
Quando alguém está chateado, os outros sabem o motivo.
É difícil saber como uma pessoa está se sentindo pelo que ela diz.
As pessoas falam diretamente em vez de dar indiretas.
Somos francos uns com os outros.
Quando estamos com raiva, evitamos falar uns com os outros.
Quando não gostamos de algo que alguém fez, dizemos abertamente.
3. Papéis
Quando peço para alguém fazer algo, preciso verificar se foi feito.
Garantimos que os membros da família cumpram suas responsabilidades.
As tarefas familiares não são distribuídas de forma equilibrada.
Temos dificuldades para pagar nossas contas.
Há pouco tempo para explorar interesses pessoais.
Discutimos quem deve fazer as tarefas domésticas.
Quando alguém é solicitado a fazer algo, precisa ser lembrado.
Geralmente estamos insatisfeitos com as tarefas atribuídas a cada um.
4. Responsividade Afetiva
Somos relutantes em demonstrar afeto um pelo outro.
Alguns de nós não respondem emocionalmente às situações.
Não demonstramos nosso amor uns pelos outros.
A ternura é menos importante do que outras coisas em nossa família.
Expressamos carinho uns pelos outros.
Choramos abertamente quando estamos tristes.
5. Envolvimento Afetivo
Quando alguém está com problemas, os outros se envolvem demais.
Só recebemos atenção dos outros quando algo é importante para eles.
Somos muito centrados em nós mesmos.
Só nos envolvemos uns com os outros quando algo nos interessa.
Mostramos interesse uns pelos outros apenas quando podemos obter algo em troca.
Nossa família só se interessa pelos outros quando há algo a ganhar.
Mesmo com boas intenções, nos intrometemos demais na vida uns dos outros.
6. Controle Comportamental
Não sabemos o que fazer em emergências.
É fácil quebrar as regras em nossa família.
Sabemos como agir em emergências.
Não temos expectativas claras sobre hábitos de higiene.
Temos regras sobre agressões físicas.
Não seguimos regras ou padrões em nossa família.
Quando as regras são quebradas, não sabemos o que esperar.
Em nossa família, vale tudo.
Temos regras claras sobre situações perigosas.
7. Funcionamento Geral
É difícil planejar atividades familiares porque nos entendemos mal.
Em momentos de crise, podemos contar uns com os outros para apoio.
Não conseguimos conversar sobre a tristeza que sentimos.
Os indivíduos são aceitos pelo que são.
Evitamos discutir nossos medos e preocupações.
Conseguimos expressar nossos sentimentos uns aos outros.
Há muitos sentimentos negativos em nossa família.
Nós nos sentimos aceitos pelo que somos.
Tomar decisões é um problema para nossa família.
Conseguimos tomar decisões sobre como resolver problemas.
Não nos damos bem uns com os outros.
Confiamos uns nos outros.
Instruções para Pontuação
Os itens em negrito têm as pontuações invertidas, ou seja:
1 (Discordo totalmente) → 4
2 (Discordo) → 3
3 (Concordo) → 2
4 (Concordo totalmente) → 1
Para cada dimensão, some as pontuações dos itens correspondentes.
Divida o total pelo número de itens na dimensão para obter a média.
Pontuações mais baixas (próximas de 1) indicam uma dimensão de funcionamento familiar mais saudável.
Pontuações mais altas (próximas de 4) sugerem áreas problemáticas que podem precisar de atenção.
Este instrumento pode ser utilizado por terapeutas, pesquisadores ou profissionais da saúde para avaliar o funcionamento familiar e identificar áreas que necessitam de intervenção.
Correlações entre as Dimensões da FAD com Sintomas Psiquiátricos e Comportamentais
As correlações entre as dimensões da escala McMaster Family Assessment Device (FAD) e traços de personalidade e sintomas psiquiátricos têm sido investigadas na literatura, destacando a importância do funcionamento familiar no desenvolvimento e manutenção de transtornos mentais.
Estudos têm demonstrado que maiores pontuações nas dimensões da FAD estão significativamente correlacionadas com traços problemáticos de personalidade e sintomas psiquiátricos. Por exemplo, baixa pontuação na dimensão de Responsividade Afetiva, que avalia a capacidade dos membros da família de expressar e experimentar emoções de forma apropriada, tem sido associada a menores níveis de sintomas depressivos e de ansiedade em adolescentes (Caño González & Rodriguez-Naranjo, 2024). Isso sugere que a capacidade da família de lidar com emoções de maneira saudável pode atuar como um fator protetor contra o desenvolvimento de transtornos ditos internalizantes.
Menor pontuação na dimensão de Envolvimento Afetivo, que mede o grau de interesse e cuidado entre os membros da família, também tem sido relacionada a menores níveis de sintomas psiquiátricos. Pesquisas indicam que famílias com alto envolvimento afetivo tendem a promover um ambiente emocional mais estável, o que pode reduzir o risco de transtornos de humor e ansiedade (Fosco & Lydon-Staley, 2019). Por outro lado, menor pontuação no Controle Comportamental, que avalia a capacidade da família de estabelecer e manter regras claras, tem sido associado a menores níveis de comportamentos externalizantes, como agressividade e impulsividade (Gorostiaga et al., 2019).
Além disso, a dimensão de Comunicação tem sido correlacionada com traços de personalidade, como abertura à experiência e conscienciosidade. Famílias que promovem uma comunicação clara e direta tendem a favorecer o desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais nos adolescentes, o que pode contribuir para uma maior resiliência psicológica (Miller et al., 2000). Por outro lado, a falta de comunicação eficaz dentro da família tem sido associada a maiores níveis de sintomas psiquiátricos, como depressão e ansiedade (Tamplin et al., 1998).
A dimensão de Papéis, que avalia a distribuição de tarefas e responsabilidades dentro da família, também tem sido relacionada a traços de personalidade, como neuroticismo. Famílias com papéis mal definidos ou desequilibrados tendem a criar um ambiente caótico, o que pode aumentar o risco de transtornos emocionais e comportamentais (Evans et al., 2005). Por fim, a Resolução de Problemas, que mede a capacidade da família de lidar com desafios de forma eficaz, tem sido associada a menores níveis de sintomas psiquiátricos, sugerindo que a habilidade de resolver conflitos de maneira construtiva pode atuar como um fator protetor contra o desenvolvimento de transtornos mentais (Keitner et al., 1995).
Em resumo, as dimensões da FAD estão significativamente correlacionadas com traços de personalidade e sintomas psiquiátricos, destacando a importância do funcionamento familiar no desenvolvimento psicológico dos indivíduos. Intervenções familiares que visam a melhorar a comunicação, a responsividade afetiva e o controle comportamental podem ser estratégias eficazes para prevenir e tratar transtornos mentais, especialmente em populações vulneráveis, como adolescentes e adultos jovens (Caño González & Rodriguez-Naranjo, 2024).
Uma Proposta de Abordagem de Famílias Disfuncionais
O manejo clínico de famílias disfuncionais é um tema central na terapia familiar, e o modelo de abordagem desenvolvido por McMaster tem sido amplamente reconhecido por sua eficácia na avaliação e tratamento dessas famílias. De acordo com Miller, Ryan, Keitner, Bishop e Epstein (2000), a Abordagem McMaster para Famílias é um modelo abrangente que se concentra nas sete dimensões principais do funcionamento familiar citadas acima.
A avaliação inicial é um passo crucial no manejo de famílias disfuncionais. Miller et al. (2000) destacam que a utilização de instrumentos validados permite ao terapeuta identificar padrões disfuncionais e áreas que necessitam de intervenção. A comunicação ineficaz, por exemplo, é frequentemente um fator que contribui para conflitos familiares, e intervenções que promovem habilidades de comunicação assertiva podem melhorar significativamente as interações familiares (Miller et al., 2000).
No que diz respeito ao tratamento, a Abordagem McMaster enfatiza a importância de estabelecer metas claras e realistas com a família. O terapeuta atua como um facilitador, ajudando os membros da família a desenvolver estratégias para resolver problemas e a melhorar a coesão e a flexibilidade dos papéis familiares (Miller et al., 2000). A terapia é focada no presente, com o objetivo de promover mudanças comportamentais e emocionais que possam ser sustentadas a longo prazo.
Além disso, pesquisas têm demonstrado que a abordagem McMaster é eficaz em uma variedade de contextos clínicos, incluindo famílias com membros que sofrem de transtornos mentais graves, como depressão e esquizofrenia (Miller et al., 2000). A intervenção precoce e a inclusão de todos os membros da família no processo terapêutico são fatores que contribuem para o sucesso do tratamento.
Enfim, o manejo clínico de famílias disfuncionais requer uma abordagem sistêmica e estruturada. A avaliação cuidadosa, o estabelecimento de metas claras e a promoção de habilidades de comunicação e resolução de problemas são elementos-chave para o sucesso terapêutico.
Cada uma das dimensões recorrentemente ditadas neste texto requer intervenções específicas para promover mudanças significativas e duradouras. A seguir, detalhamos como cada dimensão pode ser abordada no contexto clínico.
1. Resolução de Problemas
A resolução de problemas refere-se à capacidade da família de identificar, discutir e resolver questões que surgem no dia a dia. Famílias disfuncionais frequentemente apresentam dificuldades nessa área, levando a conflitos prolongados e à sensação de impotência.
Abordagem Clínica: O terapeuta deve ajudar a família a desenvolver habilidades para identificar problemas de forma clara e objetiva. Técnicas como a definição de metas específicas e o reconhecimento das rotas que conduzem aos problemas podem ser úteis. Além disso, é importante ensinar a família a avaliar as soluções propostas e a implementá-las de maneira eficaz. A prática de role-playing (simulação de situações) pode ser uma ferramenta valiosa para treinar essas habilidades (Miller et al., 2000).
2. Comunicação
A comunicação é uma dimensão crítica, pois afeta diretamente a qualidade das interações familiares. Famílias disfuncionais frequentemente apresentam padrões de comunicação negativos, como críticas constantes, interrupções e falta de escuta ativa.
Abordagem Clínica: O terapeuta deve trabalhar para promover uma comunicação assertiva e empática. Técnicas como a escuta ativa, onde cada membro da família é incentivado a ouvir e validar os sentimentos do outro, são essenciais. Além disso, o terapeuta pode ensinar a família a usar mensagens em primeira pessoa (por exemplo, “Eu me sinto frustrado quando…”) para expressar sentimentos sem culpar os outros. A prática de feedback construtivo também é uma ferramenta poderosa para melhorar a comunicação (Miller et al., 2000).
3. Papéis
Os papéis dentro da família referem-se às responsabilidades e expectativas atribuídas a cada membro. Em famílias disfuncionais, os papéis podem ser rígidos, desequilibrados ou mal definidos, levando a conflitos e sobrecarga emocional.
Abordagem Clínica: O terapeuta deve ajudar a família a redefinir os papéis de maneira mais equilibrada e flexível. Isso pode incluir a redistribuição de tarefas domésticas, a negociação de expectativas e o estabelecimento de limites claros. É importante que cada membro da família compreenda suas responsabilidades e sinta que contribui de forma justa para o funcionamento do grupo. A clarificação de papéis e a negociação de acordos são técnicas-chave nesse processo (Miller et al., 2000).
4. Responsividade Afetiva
A responsividade afetiva diz respeito à capacidade dos membros da família de reconhecer e responder adequadamente às necessidades emocionais uns dos outros. Famílias disfuncionais podem apresentar respostas emocionais inadequadas, como indiferença ou reações exageradas.
Abordagem Clínica: O terapeuta deve trabalhar para aumentar a empatia e a sensibilidade emocional dentro da família. Técnicas como a validação emocional, onde os sentimentos de cada membro são reconhecidos e respeitados, são fundamentais. Além disso, o terapeuta pode incentivar a família a praticar a expressão de afeto de maneira consistente e apropriada, promovendo um ambiente emocional mais seguro e acolhedor (Miller et al., 2000).
5. Envolvimento Afetivo
O envolvimento afetivo refere-se ao grau de interesse e cuidado que os membros da família demonstram uns pelos outros. Em famílias disfuncionais, pode haver tanto um excesso de envolvimento (envolvimento intrusivo) quanto uma falta de envolvimento (distância emocional).
Abordagem Clínica: O terapeuta deve ajudar a família a encontrar um equilíbrio saudável no envolvimento afetivo. Isso pode incluir o estabelecimento de limites claros para evitar a intrusão excessiva e a promoção de momentos de conexão emocional para fortalecer os laços familiares. Atividades como sessões de compartilhamento de sentimentos e atividades conjuntas podem ser úteis para aumentar o envolvimento afetivo de maneira positiva (Miller et al., 2000).
6. Controle Comportamental
O controle comportamental refere-se à maneira como a família estabelece regras e limites para o comportamento de seus membros. Em famílias disfuncionais, pode haver tanto um controle excessivo (autoritarismo) quanto uma falta de controle (permissividade excessiva).
Abordagem Clínica: O terapeuta deve ajudar a família a desenvolver um sistema de regras e consequências que seja justo e consistente. Isso inclui a definição de expectativas claras e a aplicação de consequências apropriadas para o comportamento. É importante que as regras sejam negociadas e acordadas por todos os membros da família, promovendo um senso de justiça e cooperação. A revisão periódica das regras e a flexibilidade para ajustá-las conforme necessário também são aspectos importantes (Miller et al., 2000).
7. Funcionamento Geral
Aqui, todas as dimensões primariamente disfuncionais são revisitadas. Isso envolve a análise de como os membros da família estão interagindo entre si e como o sistema familiar está respondendo a situações de estresse. Essa avaliação permite ao terapeuta identificar os pontos fortes e as áreas que necessitam de intervenção mais incisiva.
Abordagem Clínica: Um dos objetivos centrais da abordagem clínica do funcionamento geral é promover um equilíbrio entre coesão (a proximidade emocional entre os membros da família) e flexibilidade (a capacidade de adaptação a mudanças). Famílias disfuncionais podem ser muito rígidas, com papéis e regras inflexíveis, ou muito caóticas, com falta de estrutura e limites claros. O terapeuta deve trabalhar para ajudar a família a encontrar um equilíbrio saudável, onde haja proximidade emocional sem invasão de privacidade e adaptabilidade sem perda de estabilidade.
Palavras Finais
A Abordagem McMaster FAD para Famílias oferece um modelo estruturado e eficaz para o manejo clínico de famílias disfuncionais. Ao focar nas dimensões do funcionamento familiar, o terapeuta pode identificar áreas problemáticas e implementar intervenções específicas para promover mudanças positivas. A combinação de técnicas como a resolução de problemas, a comunicação assertiva, a redefinição de papéis, a validação emocional, o equilíbrio no envolvimento afetivo e o estabelecimento de regras claras contribui para a criação de um ambiente familiar mais saudável e funcional. A eficácia dessa abordagem tem sido respaldada por pesquisas, destacando sua relevância no campo da terapia familiar e sistêmica.
Referências Alemayehu, F., Ambaw, F., & Gutema, H. (2019). Depression and associated factors among prisoners in Bahir Dar Prison, Ethiopia. BMC Psychiatry, 19(1), 1-7. Bishop, D. S., & Epstein, N. B. (1980). Family problems and disability. In D. S. Bishop (Ed.), Behavior problems and the disabled: Assessment and management. Baltimore: Williams and Wilkins. Caño González, A., & Rodriguez-Naranjo, C. (2024). The McMaster Family Assessment Device (FAD) dimensions involved in the prediction of adolescent depressive symptoms and their mediating role in regard to socioeconomic status. Family Process, 63, 414–427. Epstein, N. B., Baldwin, L. M., & Bishop, D. S. (1983). The McMaster Family Assessment Device. Journal of Marital and Family Therapy, 9(2), 171-180. Epstein, N. B., Bishop, D. S., & Baldwin, L. M. (1980). McMaster Model of Family Functioning: A view of the normal family. In F. Walsh (Ed.), Normal family processes. New York: Guilford Press. Epstein, N. B., & Bishop, D. S. (1981). Problem centered systems therapy of the family. In A. S. Gurman & D. P. Kniskern (Eds.), Handbook of family therapy. New York: Brunner/Mazel. Evans, G. W., Gonnella, C., Marcynyszyn, L. A., Gentile, L., & Salpekar, N. (2005). The role of chaos in poverty and children’s socioemotional adjustment. Psychological Science, 16(7), 560–565. Fosco, G. M., & Lydon-Staley, D. M. (2019). Implications of family cohesion and conflict for adolescent mood and well-being: Examining within- and between-family processes on a daily timescale. Family Process, 59(4), 1672–1689. Gorostiaga, A., Aliri, J., Balluerka, N., & Lametrinhas, J. (2019). Parenting styles and internalizing symptoms in adolescence: A systematic literature review. International Journal of Environmental Research and Public Health, 16(17), 3192. Kang, B., & Hureau, D. M. (2023). Social Context and the Static and Dynamic Age-Crime Relationship in the Republic of Korea. Asian Journal of Criminology, 18(1), 21-41. Keitner, G. I., Ryan, C. E., Miller, I. W., Kohn, R., Bishop, D. S., & Epstein, N. B. (1995). Role of the family in recovery and major depression. The American Journal of Psychiatry, 152(7), 1002–1008. Miller, I. W., Ryan, C. E., Keitner, G. I., Bishop, D. S., & Epstein, N. B. (2000). The McMaster Approach to Families: theory, assessment, treatment and research. Journal of Family Therapy, 22(2), 168-189. Mohammadbeigi Salahshour, H., Motevalli, S., & Ebrahimi, S. M. (2024). Behind Bars: Unveiling the Personal, Family, and Social Profiles of Prisoners. Iranian Journal of Neurodevelopmental Disorders, 3(2), 75-86. Tamplin, A., Goodyer, I. M., & Herbert, J. (1998). Family functioning and parent general health in families of adolescents with major depressive disorder. Journal of Affective Disorders, 48(1), 1–13. Thorne, M. C., de Viggiani, N., & Plugge, E. (2023). What are the factors of parental incarceration that may increase risk of poor emotional and mental health in children of prisoners? International Journal of Prisoner Health, 19(4), 724-742.
Atendimento – Consultório
Telefone: 0 XX 11 3120-6896
E-mail: [email protected]
Endereço: Avenida Angélica, 2100. Conjunto 13
Condomínio Edifício da Sabedoria
CEP: 01228-200, Consolação – São Paulo

Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC durante 26 anos. Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC por 20 anos, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) durante 18 anos e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex) durante 22 anos. Tem correntemente experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.