“Um residente estrangeiro de meia-idade estava de licença médica há algum tempo e temia que seu seguro parasse de pagar. O estado mental se deteriorou e ele foi enviado para um hospital psiquiátrico por seu médico de família. Ele falou abertamente sobre suicídio, incluindo o da sua família; mesmo assim, ele foi autorizado a sair da clínica. Uma semana depois, ele atirou em sua esposa e dois filhos com sua arma.”
(Frei & Llic, 2020)
Excerto – A Liberação Precoce
Uma análise dialógica bakhtiniana do discurso apresentado revela a complexidade das vozes sociais e dos conflitos ideológicos presentes no caso do familicídio. Bakhtin enfatiza que todo enunciado é carregado de valores e intenções, situado em um contexto social específico, onde diferentes vozes interagem e se confrontam. No texto, observamos a coexistência de múltiplas vozes: a do residente estrangeiro, a do médico de família, a da instituição psiquiátrica e a da sociedade que regulariza questões como saúde mental, sigilo médico e posse de armas.
O discurso do residente estrangeiro é marcado por um tom de desespero e deterioração mental, expresso abertamente em suas falas sobre suicídio e familicídio. Essa voz carrega uma avaliação social implícita sobre a fragilidade do sistema de saúde e a sensação de abandono, evidenciada pelo medo de perder o suporte do seguro médico. A licença médica prolongada e o temor de interrupção dos pagamentos revelam uma crítica à burocracia e à desumanização do cuidado com a saúde mental.
A voz do médico de família, por sua vez, age dentro de um sistema institucional que, apesar de reconhecer o risco (ao encaminhar o paciente para um hospital psiquiátrico), falha em garantir a continuidade do cuidado. A autorização para que o paciente deixasse a clínica, mesmo após manifestações explícitas de intenções violentas, reflete uma dissonância entre o discurso médico oficial (que deveria priorizar a segurança do paciente e da sociedade) e a prática institucional, que parece minimizar ou ignorar os sinais de perigo iminente.
A instituição psiquiátrica, como voz autorizada, demonstra uma falha grave em seu diálogo interno e externo. O ato de liberar o paciente, apesar dos riscos claros, sugere uma hierarquização de valores em que protocolos ou limitações institucionais se sobrepõem à proteção da vida. Essa decisão ecoa um discurso social mais amplo que frequentemente negligencia a saúde mental, tratando-a como secundária ou como um problema individual, não sistêmico.
A voz do Direito, nesse contexto, insere-se como uma instância de poder que frequentemente entra em conflito ou desalinhamento com o discurso médico, especialmente em casos de saúde mental e risco de violência. Enquanto os médicos atuam com base em critérios clínicos e de prevenção, o Direito opera sob parâmetros legais que, muitas vezes, priorizam a autonomia individual e os direitos formais em detrimento de intervenções mais assertivas.
No caso apresentado, o Direito pode ter falhado em estabelecer um diálogo efetivo com a Medicina, seja por lacunas na legislação que permitem a liberação de pacientes em alto risco, seja pela dificuldade em traduzir laudos psiquiátricos em medidas jurídicas concretas. A decisão de liberar o paciente, mesmo após as suas declarações sobre suicídio e familicídio, pode refletir uma estrutura legal que não confere suficiente poder aos médicos para garantir a internação compulsória quando necessária ou que exige padrões de prova excessivamente rígidos para intervenções preventivas.
Além disso, o Direito muitas vezes não escuta os médicos como especialistas, tratando suas avaliações como meras opiniões em vez de fundamentos para ações judiciais imediatas. Essa desvalorização do saber médico pelo sistema jurídico cria uma ruptura no diálogo entre as instituições, deixando brechas para que casos como esse evoluam para tragédias. Enquanto a Medicina alerta para riscos, o Direito pode hesitar em agir por temor a violações de direitos individuais, resultando em uma paralisia institucional com consequências fatais.
Assim, a voz do Direito, ao não se harmonizar com a dos profissionais de saúde, acaba por reforçar um sistema em que a prevenção é negligenciada até que a violência se concretize. Esse desencontro discursivo revela uma falha na construção de um diálogo interdisciplinar que poderia salvar vidas, evidenciando a necessidade de uma abordagem mais integrada entre Medicina, Direito e Políticas Públicas.
Por fim, a sociedade como um todo participa desse diálogo por meio de suas estruturas, como a permissividade em relação ao acesso a armas de fogo. A posse da arma pelo residente estrangeiro torna-se o instrumento material do crime, mas também simboliza um discurso social que facilita a violência em contextos de crise. A ausência de medidas preventivas mais rígidas reflete uma voz coletiva que, em muitos casos, prioriza direitos individuais sobre a segurança coletiva.
O familicídio, portanto, emerge como um ato carregado de significados sociais e dialogismos. Ele não é apenas o resultado de uma patologia individual, mas de um conjunto de falhas discursivas e institucionais que não souberam responder adequadamente às vozes de desespero do agressor. A análise bakhtiniana nos permite ver como os diferentes discursos (médico, jurídico, institucional, social) se entrelaçam e como suas contradições contribuíram para a tragédia. A polifonia dessas vozes revela um sistema fragmentado e alarmante, onde o diálogo eficaz e a escuta ativa foram substituídos por respostas burocráticas e desconexas, com consequências devastadoras.
Introdução
O familicídio, definido como o assassinato de um cônjuge (atual ou antigo) e um ou mais filhos, é um fenômeno incomum, mas devastador, com uma incidência anual estimada de 1 a 2 casos por 10 milhões de pessoas (Karlsson et al., 2021). Homens entre 30 e 45 anos são os autores mais comuns, sendo os problemas de relacionamento e as dificuldades financeiras frequentemente identificados como os mais ordinários fatores precedentes (Karlsson et al., 2021).
Problemas de saúde mental, como depressão, psicose, transtornos de personalidade, comportamento obsessivo e abuso de substâncias, são prevalentes entre os agressores. Pesquisas indicam que o familicídio pode ser distinto de outros homicídios intrafamiliares, com dois subtipos principais de agressores: o “desesperado” e o “hostil” (Karlsson et al., 2021), como versado em artigo prévio.
As medidas de prevenção incluem aumentar o conhecimento sobre os sinais de alerta do familicídio, melhorar as estratégias de apoio para pessoas com problemas de saúde mental ou dificuldades financeiras, aumentar a conscientização sobre os riscos associados à violência doméstica e facilitar o acesso a serviços de apoio (Karlsson et al., 2021). Uma abordagem multidisciplinar de saúde pública, envolvendo a polícia, assistência médica, assistência social e serviços de proteção à criança, é necessária para desenvolver um plano de gerenciamento de risco compartilhado para indivíduos em risco (Karlsson et al., 2021).
A Psicopatologia dos Familicidas
A psicopatologia dos agressores de familicídio é extremamente variada, com uma gama de transtornos mentais e características psicológicas frequentemente observadas. Embora nenhum perfil único defina todos os agressores, certos padrões emergem da literatura, os quais podem ser assim sumarizados:
Transtornos do Humor
Depressão: A depressão é um dos transtornos do humor mais frequentemente relatados em agressores de familicídio. A depressão pode ser grave e persistente, levando a sentimentos de desesperança, desesperança e ideação suicida. Em alguns casos, a depressão pode ser acompanhada de sintomas psicóticos.
Outros Transtornos do Humor: Embora menos comuns do que a depressão, outros transtornos do humor também podem estar presentes em agressores de familicídio. As fases exaltadas de um transtorno afetivo bipolar, por exemplo, podem levar a comportamentos impulsivos e arriscados, enquanto as fases depressivas podem exacerbar sentimentos de desesperança e ideação suicida.
Transtornos Psicóticos
Esquizofrenia e Transtornos Delirantes: Transtornos psicóticos, como esquizofrenia e transtornos delirantes, podem estar presentes em agressores de familicídio. Delírios de perseguição, ciúme ou grandiosidade podem levar a comportamentos violentos. Alucinações auditivas ou visuais também podem contribuir para a violência.
Transtornos de Personalidade
Transtorno de Personalidade Narcisista: O transtorno de personalidade narcisista é caracterizado por um senso inflado de autoimportância, necessidade de admiração e falta de empatia. Agressores com transtorno de personalidade narcisista podem ver as suas próprias famílias como extensões de si mesmos e podem se sentir no direito de controlar suas vidas.
Transtorno de Personalidade Borderline: O transtorno de personalidade borderline é caracterizado por instabilidade emocional, impulsividade e medo de abandono. Agressores com transtorno de personalidade borderline podem ter dificuldade em regular suas emoções e podem reagir com raiva e violência quando se sentem ameaçados ou abandonados.
Transtorno de Personalidade Dependente: O transtorno de personalidade dependente é caracterizado por uma necessidade excessiva de ser cuidado e medo de separação. Agressores com transtorno de personalidade dependente podem ver suas famílias como sua única fonte de apoio e podem se sentir desesperados quando essa fonte é ameaçada.
Transtorno de Personalidade Obsessivo Compulsiva: O transtorno de personalidade obsessivo compulsiva é caracterizado por preocupação com ordem, perfeccionismo e controle. Agressores com transtorno de personalidade obsessivo compulsiva podem ter dificuldade em lidar com mudanças ou incertezas e podem reagir com raiva e violência quando sentem que estão perdendo o controle.
Outras Características Psicológicas
Comportamento Obsessivo: Alguns agressores de familicídio exibem comportamentos obsessivos, como preocupação excessiva com a limpeza, ordem ou rotinas. Esses comportamentos podem ser um sinal de transtorno obsessivo compulsivo ou podem ser uma forma de lidar com a ansiedade e o estresse.
Ciúme: O ciúme é um fator comum em casos de familicídio, especialmente aqueles em que o agressor suspeita que sua parceira está tendo um caso. O ciúme pode ser acompanhado de delírios de ciúme, que são crenças falsas e fixas sobre a infidelidade de sua parceira.
Raiva: A raiva é uma emoção comum em agressores de familicídio. A raiva pode ser desencadeada por uma variedade de fatores, como problemas de relacionamento, dificuldades financeiras ou sentimentos de injustiça.
Desesperança: A desesperança é um sentimento de que as coisas nunca vão melhorar e que não há esperança para o futuro. A desesperança é um fator de risco para suicídio e pode contribuir para a violência em casos de familicídio.
Ideação Suicida: A ideação suicida é comum em agressores de familicídio. Em alguns casos, o familicídio é um “ato de suicídio” ampliado, em que o agressor mata sua família para evitar que eles sofram sem ele.
É importante notar que nem todos os agressores de familicídio exibem todos esses sintomas psicopatológicos. Além disso, a presença de um ou mais desses sintomas não significa necessariamente que uma pessoa irá cometer familicídio. No entanto, a identificação e o tratamento desses sintomas podem ser importantes para prevenir a violência.
Medidas de Prevenção ao Familicídio
A prevenção do familicídio é um desafio abstruso, dada a raridade do evento e a variedade dos fatores de risco envolvidos. No entanto, uma abordagem envolvendo diferentes perspectivas e coordenada pode aumentar a probabilidade de identificar indivíduos em risco e implementar intervenções eficazes.
Fortalecimento das Estratégias de Apoio à Saúde Mental
A priorização da saúde mental é fundamental. Isso envolve aumentar o acesso a serviços de saúde mental acessíveis e de qualidade, reduzindo o estigma associado à busca por ajuda e promovendo a conscientização sobre os sinais de alerta de transtornos mentais como depressão, psicose e transtornos de personalidade. Programas de intervenção precoce para indivíduos com risco de desenvolver transtornos mentais também são cruciais.
Atenção às Dificuldades Financeiras e Socioeconômicas
Dificuldades financeiras e socioeconômicas podem aumentar o estresse e a desesperança, contribuindo para o risco de familicídio. Programas de apoio financeiro, aconselhamento de carreira e assistência habitacional podem ajudar a aliviar o estresse financeiro e fornecer um senso de esperança para o futuro.
Combate à Violência Doméstica
A violência doméstica é um fator de risco significativo para o familicídio. É essencial fortalecer as leis contra a violência doméstica, aumentar a conscientização sobre os sinais de alerta de abuso e fornecer apoio funcional e recursos para as vítimas de violência doméstica. Programas de intervenção para agressores também são importantes para interromper o ciclo de violência.
Restrição ao Acesso às Armas de Fogo
Em muitos casos de familicídio, armas de fogo são usadas para cometer os assassinatos. A implementação de leis mais rigorosas sobre armas de fogo, como verificações de antecedentes mais abrangentes e restrições ao acesso às armas para indivíduos com histórico de violência doméstica ou transtornos mentais, pode ajudar a reduzir o risco de familicídio.
Melhoria da Coordenação Inter Agências ou Agências Formais e Informais de Controle Social
A prevenção do familicídio requer uma abordagem coordenada entre diferentes agências, incluindo polícia, serviços de saúde mental, serviços sociais e serviços de proteção à criança. A comunicação, a parceria saudável e o compartilhamento de informações entre essas agências podem ajudar a identificar indivíduos em risco e implementar intervenções eficazes.
Aumento da Conscientização Pública
A conscientização pública sobre os sinais de alerta de familicídio e sobre os recursos disponíveis para indivíduos em risco pode ajudar a prevenir a tragédia. Campanhas de conscientização pública podem ser realizadas por meio de mídia social, televisão, rádio e outros canais. As mídias devem transmitir informações éticas e de qualidade para a população.
Implementação de Programas de Avaliação de Risco
Programas de avaliação de risco podem ajudar a identificar indivíduos com maior probabilidade de cometer familicídio. Esses programas podem envolver entrevistas com indivíduos em risco, revisão de registros criminais e de saúde mental e consulta com especialistas em violência doméstica e saúde mental.
Itens adicionais
Pesquisas devem ser feitas para entender melhor os fatores de risco para o familicídio e desenvolver intervenções mais eficazes. Deve-se concentrar na identificação dos sinais de alerta para um familicídio, desenvolver programas de avaliação de risco mais precisos e avaliar a eficácia de diferentes intervenções.
Ao implementar essas medidas de prevenção, podemos aumentar a probabilidade de identificar indivíduos em risco e implementar intervenções eficazes para prevenir a tragédia/massacre do familicídio. É importante lembrar que a prevenção do familicídio é uma responsabilidade de todos e que todos podemos desempenhar um papel na proteção das nossas comunidades.
Proposta de Instrumento de Avaliação de Risco para Familicídio
De fato, um instrumento de avaliação de risco para familicídio deve ser bastante abrangente e considerar múltiplos domínios. É importante ressaltar que o instrumento abaixo é apenas um guia e deve ser utilizado por profissionais qualificados, complementado por seu julgamento clínico e conhecimento dos casos.
Instrumento de Avaliação de Risco para Familicídio (FRA)
Identificação
Nome do avaliado:
Data de nascimento:
Sexo:
Estado civil:
Profissão:
Data da avaliação:
Avaliador:
Domínio 1: Histórico e Fatores Demográficos
Idade: (Agressores tendem a ter entre 30 e 45 anos)
Histórico de violência doméstica: (Detalhar incidentes, frequência, gravidade)
Histórico criminal: (Crimes violentos, porte de armas)
Estado civil: (Casado, divorciado, separado. Avaliar instabilidade conjugal)
Situação de emprego: (Empregado, desempregado. Avaliar dificuldades financeiras)
Acesso a armas de fogo: (Possui armas legalmente? Acesso ilegal?)
Domínio 2: Saúde Mental e Uso de Substâncias
Histórico de transtornos mentais: (Depressão, psicose, transtornos de personalidade etc. Detalhar diagnósticos, tratamentos, internações)
Uso de substâncias: (Álcool e outras substâncias psicoativas. Frequência, quantidade, impacto no comportamento)
Comportamento obsessivo: (Preocupações excessivas, rituais)
Ideação suicida/homicida: (Presença, frequência, intensidade, planos)
Desesperança: (Sentimentos de falta de esperança, pessimismo)
Domínio 3: Relacionamentos e Contexto Familiar
Qualidade do relacionamento com a parceira(o): (Conflitos, ciúme, controle, violência)
Histórico de separação ou divórcio: (Recente, conturbado, disputas de custódia)
Relacionamento com os filhos: (Apego, envolvimento, disciplina)
Problemas financeiros: (Dívidas, desemprego, dificuldades para sustentar a família)
Isolamento social: (Falta de amigos, apoio familiar)
Estresse familiar: (Doenças, problemas com filhos etc.)
Histórico de abuso na infância: (Físico, sexual, emocional)
Domínio 4: Sinais de Alerta e Comportamentos Preocupantes
Ameaças de violência: (Contra a parceira(o), filhos, ou outros)
Comportamento controlador: (Ciúme excessivo, isolamento da parceira(o), monitoramento)
Obsessão pela parceira(o): (Perseguição, stalking)
Mudanças de comportamento: (Agressividade, irritabilidade, isolamento)
Planejamento: (Compra de armas, pesquisa sobre familicídio, elaboração de planos)
Comunicação com outras pessoas sobre intenções: (Expressões de raiva, vingança, desespero)
Histórico de violência contra animais: (Crueldade, negligência)
Domínio 5: Avaliação do Risco
Risco baixo: (Poucos fatores de risco presentes, sem sinais de alerta iminentes)
Risco moderado: (Alguns fatores de risco presentes, alguns sinais de alerta)
Risco alto: (Muitos fatores de risco presentes, sinais de alerta iminentes, histórico de violência grave)
Recomendações
Com base na avaliação do risco, quais medidas devem ser tomadas? (Notificação às autoridades, encaminhamento para tratamento de saúde mental, proteção da vítima, restrição de acesso a armas etc.)
Plano de acompanhamento: (Frequência das avaliações, monitoramento, contato com outras agências)
Observações
Quaisquer outras informações relevantes sobre o caso.
Importante
Este instrumento é apenas um guia. A avaliação do risco de familicídio é um processo complexo que requer julgamento clínico e conhecimento do caso. É fundamental que os profissionais qualificados utilizem este instrumento em conjunto com outras informações disponíveis e consultem especialistas quando necessário.
Semelhanças e Diferenças entre o Mass/Spree murder e o Familicídio
O homicídio em massa (mass/spree murder) compartilham algumas características, mas também apresentam diferenças significativas em relação aos familicídios. De acordo com o Crime Classification Manual do FBI (Douglas et al., 2006), o homicídio em massa é definido como um evento único em que três ou mais vítimas são mortas em um mesmo local, sem intervalo de tempo entre os crimes. Um exemplo clássico é o caso de Charles Whitman, que em 1966 assassinou múltiplas pessoas a partir de uma torre na Universidade do Texas (Douglas et al., 2006). O spree murder envolve dois ou mais locais distintos, sem um período de “resfriamento emocional” entre os crimes, como no caso de Howard Unruh, que matou 13 pessoas em diferentes locais em um curto espaço de tempo (Ressler et al., 1988).
Em contraste, os familicídios são homicídios múltiplos nos quais o autor mata membros da sua própria família, muitas vezes seguido de suicídio. Um exemplo notório é o caso de John List, que assassinou toda a sua família em 1972 e desapareceu por anos antes de ser capturado (Douglas et al., 2006). Enquanto os homicídios em massa frequentemente envolvem vítimas aleatórias ou pouco conectadas ao assassino, os familicídios são geralmente motivados por questões pessoais/familiares, como conflitos domésticos, crises financeiras ou mesmo transtornos mentais (Ressler et al., 1988).
Outra diferença crucial está na motivação e no perfil psicológico do agressor. Homicidas em massa frequentemente apresentam traços antissociais e isolamento, agindo por raiva, desejo de notoriedade ouideologias extremistas (Douglas et al., 2006). Já os familicidas podem não ter histórico de violência prévia, mas agem em resposta a pressões emocionais ou financeiras insustentáveis, muitas vezes vendo o ato como uma “solução” para problemas familiares (Ressler et al., 1988).
Em resumo, enquanto homicídios em massa são caracterizados por múltiplas vítimas em um ou mais locais, frequentemente sem conexão pessoal com o agressor, os familicídios são crimes íntimos, dirigidos contra a própria família e geralmente motivados por conflitos pessoais/familiares. Essas distinções são essenciais para a investigação criminal e a análise comportamental de tais casos.
Abaixo, proponho uma tabela comparando aspectos do mass murder com os do familicídio:
Característica | Mass Murder | Familicídio |
Definição | Assassinato de três ou mais vítimas em um único local e evento, sem intervalo de resfriamento emocional. | Assassinato de múltiplos membros da família, frequentemente incluindo cônjuge e filhos. |
Número de Vítimas | Três ou mais. | Geralmente dois ou mais (mas pode variar). |
Relação com as Vítimas | Vítimas podem ser desconhecidas ou aleatórias (ex.: colegas de trabalho, estudantes). | Vítimas são membros da família ou parceiros íntimos. |
Local do Crime | Único local (ex.: escola, local de trabalho, espaço público). | Geralmente no ambiente doméstico (casa da família). |
Motivação | – Raiva ou frustração social. – Desejo de notoriedade. – Transtornos mentais. | – Conflitos familiares. – Controle ou vingança. – Problemas financeiros ou emocionais. |
Perfil do Agressor | – Pode ser um indivíduo isolado e com histórico de problemas psicológicos. – Planejamento prévio comum. | – Frequentemente um membro da família (pai, mãe ou cônjuge). – Pode estar associado a depressão ou desespero. |
Método de Ataque | Uso de armas de fogo, explosivos ou outras formas de violência em massa. | Envenenamento, arma de fogo, faca ou asfixia. |
Suicídio Pós-Crime | Comum (muitos atiradores em massa cometem suicídio). | Frequentemente o agressor tenta ou comete suicídio após o crime. |
Exemplos | – Tiroteio em escolas (ex.: Columbine). – Ataques em locais públicos. | – Pai que mata esposa e filhos antes de suicidar-se. – Mãe que comete infanticídio. |
Observações
Mass Murder: Geralmente envolve violência indiscriminada e busca por impacto social.
Familicídio: Está mais ligado às dinâmicas familiares e questões pessoais, como desespero ou controle.
Mais Características dos Familicidas em Comparação com Outros Mass Murderers – Elementos Insalubres
Um realizado na Suíça entre 1972 e 2015 analisou as características dos familicidas, comparando-as com as de outros perpetradores de assassinatos em massa (mass/spree murderers). Os resultados destacam diferenças significativas entre esses grupos, tanto em termos de perfil dos perpetradores quanto de motivações e contextos dos crimes (Frei & Ilic, 2020).
Os familicidas, definidos aqui como aqueles que matam três ou mais membros de uma mesma família em um único evento, apresentaram um perfil distinto. A maioria era composta por homens de meia-idade (média de 40 anos), bem-integrados socialmente, com empregos estáveis e sem histórico criminal ou psiquiátrico relevante (Frei & Ilic, 2020). Apenas quatro dos 20 familicidas estudados tinham um passado psiquiátrico conhecido, e metade não possuía qualquer registro de violência anterior. Um aspecto marcante foi a presença de estressores psicossociais, como crises conjugais ou financeiras, que pareceram desencadear os crimes (Frei & Ilic, 2020). Em nove casos, a motivação estava ligada a uma separação conjugal iminente, enquanto em sete, os perpetradores agiram por desespero econômico, vendo o assassinato da família como um ato de “lealdade” ou “proteção” em face de um mundo percebido como hostil (Liem & Reichelmann, 2014; Wilson et al., 1995).
A elevada taxa de suicídio entre os familicidas foi uma das diferenças mais notáveis em relação ao outro grupos. Dos 20 casos analisados, 14 perpetradores cometeram suicídio após o crime, e outros dois tentaram sem sucesso (Frei & Ilic, 2020). Essa tendência sugere que o familicídio muitas vezes está associado a um ato suicida ampliado, em que o autor não pretende continuar vivendo após a tragédia (Marzuk et al., 1992). Em contraste, apenas três dos nove autores de homicídios em locais públicos o fizeram (Frei & Ilic, 2020).
Quanto aos métodos utilizados, os familicidas empregaram principalmente armas de fogo (metade dos casos), mas também outros meios, como estrangulamento, facas e até incêndio criminoso (Frei & Ilic, 2020). Curiosamente, o uso de armas do exército suíço foi raro, ocorrendo em apenas três casos. Já os homicídios em locais públicos foram predominantemente cometidos com armas de fogo, refletindo uma escolha mais uniforme e letal (Fridel, 2017).
Outra diferença relevante diz respeito ao perfil psiquiátrico. Enquanto os familicidas geralmente não apresentavam transtornos mentais graves, os autores de homicídios em locais públicos mostraram uma incidência maior de diagnósticos psiquiátricos, como esquizofrenia e transtornos de personalidade (Frei & Ilic, 2020). Isso pode estar relacionado ao fato de que, nesses casos, havia mais informações disponíveis devido a avaliações forenses ou autópsias psicológicas (Shneidman, 1981).
Em resumo, os familicidas na Suíça destacam-se como um grupo distinto de assassinos em massa, caracterizados por um perfil aparentemente estável, mas marcado por crises pessoais profundas que os levam a cometer atos extremos, frequentemente seguidos pelo próprio suicídio (Frei & Ilic, 2020). Em contraste, outros tipos de assassinos em massa tendem a ter motivações mais diversificadas, como ganho material ou ódio, e um perfil psiquiátrico mais evidente (Fridel, 2017). Essas diferenças ressaltam a importância de abordagens específicas para prevenção e intervenção, especialmente no que diz respeito à identificação de sinais de crise em indivíduos aparentemente funcionais (Oliffe et al., 2015).
Palavras Finais
Dada a relativa raridade dos Familicídios e dos Mass Murders, estudos têm apontado diferentes características entre os agressores, principalmente no que diz respeito ao perfil psicológico e à psicopatologia presente entre eles. Mesmo em termos conceituais, existem variações entre os estudos e muitos dos estudos sobre homicídio-suicídio acabam por não considerar os familicídios ou mesmo os mass muders.
De qualquer forma, todos os crimes de homicídio representam uma dura realidade, em que a humanidade revela a sua crueza, vileza, doenças mentais, desespero, incapacidade para lidar civilizadamente com problemas, dentre várias e várias deficiências e interesses (des)humanos.
É dever de todos proteger os nossos e a nossa comunidade. É dever dos médicos avaliar com rigor aqueles com fatores de risco para agir cruamente e criminalmente. É dever do Direito ouvir as considerações de médicos altamente especialistas no tema e proteger tais ditames da Medicina, através de ações e não de omissões.
Novamente, repito mais uma vez, que a parceria SAUDÁVEL entre as ciências médicas (psiquiátrica) e as ciências jurídicas, sem queda de braço, deve acontecer no nosso meio de forma mais célere.
Referências Douglas, J. E., Burgess, A. W., Burgess, A. G., & Ressler, R. K. (2006). Crime classification manual(2nd ed.). Jossey-Bass. Frei, A., & Ilic, A. (2020). Is familicide a distinct subtype of mass murder? Evidence from a Swiss national cohort. Criminal Behaviour and Mental Health, 30(1), 28-37. Fridel, E. E. (2017). A multivariate comparison of family, felony, and public mass murders in the United States. Journal of Interpersonal Violence, 32(1), 1-27. Karlsson, L. C., Antfolk, J., Putkonen, H., Amon, S., da Silva Guerreiro, J., de Vogel, V., Flynn, S., & Weizmann-Henelius, G. (2021). Familicide: A systematic literature review. Trauma, Violence, & Abuse, 22(1), 83-98. Liem, M., & Reichelmann, A. (2014). Patterns of multiple family homicide. Homicide Studies, 18(1), 44-58. Marzuk, P. M., Tardiff, K., & Hirsch, C. S. (1992). The epidemiology of murder-suicide. JAMA, 267(23), 3179-3183. Oliffe, J. L., Han, C. S. E., Drummond, M., Maria, E. S., Bottorff, J. L., & Creighton, G. (2015). Men, masculinities, and murder-suicide. American Journal of Men's Health, 9(6), 473-485. Ressler, R. K., Burgess, A. W., & Douglas, J. E. (1988). Sexual homicide: Patterns and motives. Lexington Books. Shneidman, E. S. (1981). The psychological autopsy. Suicide and Life-Threatening Behavior, 11(4), 325-340. Wilson, M., Daly, M., & Daniele, A. (1995). Familicide: The killing of spouse and children. Aggressive Behavior, 21(4), 275-291.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC durante 26 anos. Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC por 20 anos, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) durante 18 anos e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex) durante 22 anos. Tem correntemente experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.