Envenenadores – Parte II

“JM, 72 anos, foi interditado civilmente devido a um suposto quadro de Transtorno Neurocognitivo por Demência Vascular. JM inicia então tratamento com um médico da sua própria confiança e por iniciativa própria. O médico modifica as suas medicações, realiza os exames de neuroimagem e séricos necessários e descarta os diagnósticos de Demência por Doença de Alzheimer, Demência Fronto-Temporal e outros mais comuns. JM apresenta melhora significativa do quadro inicial de perda do equilíbrio, náuseas constantes e prejuízo da memória após 04 meses de seguimento. De forma inesperada, JM surge no consultório do seu médico com retrocesso do quadro de memória, perturbações do movimento e referindo náuseas. O médico interna-o imediatamente e solicita um screening para detecção de envenenamento. Foi identificado Tiocianato elevado na urina de JM…”

(Anônimo)

Excerto – O Embate Médico-Jurídico

Uma análise dialógica bakhtiniana do discurso apresentado revela uma complexa rede de vozes sociais, conflitos de autoridade e tensões ideológicas que permeiam a narrativa sobre JM. O texto, como é de praxe, não é um relato neutro, mas um campo de disputas discursivas em que diferentes perspectivas se confrontam.

A primeira voz que se destaca é a do sistema jurídico-médico que interditou JM, declarando-o incapaz com base num “suposto” quadro de Demência Vascular. O uso do termo “suposto” já introduz uma polifonia, sugerindo que essa avaliação não é incontestável. Essa voz autoritária, que rotula e limita direitos, dialoga tensamente com a voz do médico particular, que assume JM como paciente “por iniciativa própria” e “de sua confiança”. Há aqui um embate entre o discurso institucional oficial e um discurso médico alternativo, baseado na relação pessoal de confiança.

A voz do médico particular ganha força ao desconstruir o diagnóstico inicial, descartando não apenas a Demência Vascular, mas também outras formas de demência. Seu discurso científico, baseado em exames de neuroimagem e testes séricos, opõe-se ao discurso que fundamentou a interdição. A “melhora significativa” relatada após quatro meses funciona como argumento de autoridade dessa voz médica alternativa.

O momento crucial do diálogo ocorre com a reaparição dos sintomas, quando a voz do próprio JM irrompe no consultório, relatando seus sintomas (“náuseas”, “perturbações do movimento”). Essa fala do paciente, antes silenciado pelos discursos médicos e jurídicos, torna-se central. A resposta imediata do médico – internação e investigação de envenenamento – revela uma suspeita que introduz uma nova voz no diálogo: a possibilidade de um agressor não nomeado.

A descoberta de tiocianato elevado na urina funciona como a última palavra (provisória) nesse diálogo polifônico, validando a suspeita do médico e lançando novas perguntas sobre o contexto social de JM. O texto, assim, constrói-se como um espaço onde se confrontam:

    • o discurso jurídico da interdição

    • o discurso médico institucional original

    • o discurso do médico particular

    • a voz do paciente

    • a possível voz de um agressor (implícita)

    • o discurso científico dos exames laboratoriais

Cada uma dessas vozes carrega valores e visões de mundo em conflito, tornando o caso de JM não apenas uma narrativa médica, mas um microcosmo de lutas por autoridade discursiva e poder de definição sobre a realidade. A análise bakhtiniana revela como a “verdade” sobre JM é construída nesse embate dialógico de perspectivas em tensão.

Introdução

O envenenamento criminoso é um método de homicídio que, historicamente, tem sido associado tanto a homens quanto a mulheres, embora as motivações e os perfis psicológicos possam variar significativamente entre os gêneros. Embora exista a crença comum de que a maioria dos envenenadores são mulheres, a realidade é que a maioria dos envenenadores detectados são homens. No entanto, especula-se que as mulheres podem ser mais bem-sucedidas em escapar da detecção, dada a sua maior oportunidade de acesso à “zona de segurança” da vítima, como o cuidado com doentes, a preparação de refeições e a limpeza da casa. Além disso, a análise de casos documentados revela que os homens tendem a utilizar venenos como parte de crimes mais amplos, como fraudes financeiras e combates políticos ou mesmo assassinatos em série, enquanto as mulheres mais frequentemente os empregam em contextos domésticos, visando parceiros ou familiares (Farrell, 1992). Embora homens e mulheres compartilhem a capacidade de cometer envenenamentos criminosos, suas motivações e métodos frequentemente divergem. A compreensão dessas tipologias é essencial para investigações forenses eficazes e para a prevenção de crimes semelhantes no futuro.

O autor também descreve que os envenenadores são, em geral, astutos, gananciosos e covardes (fisicamente ou mentalmente não confrontacionais), com uma fantasia imatura e um lado artístico, o que significa que podem projetar o plano para o assassinato com tantos detalhes como se estivessem escrevendo o roteiro para uma peça de teatro.

Trestrail (2007) correlaciona a personalidade do envenenador com o transtorno de personalidade narcisista, cujas características incluem um senso grandioso de autoimportância, uma crença de que é “especial” e “único”, um senso de direito, uma necessidade de tirar vantagem dos outros sem consideração pelos sentimentos alheios, uma falta de empatia afetiva, um sentimento de inveja em relação aos outros, um comportamento ou atitude arrogante/altiva, uma preocupação com fantasias de autoimportância (fama, riqueza, realização), uma exigência de admiração excessiva e uma exploração interpessoal (usa os outros para atingir seus próprios fins).

Nas palavras de Trestrail (2007), o envenenador é um covarde inteligente ou, poder-se-ia dizer, tem a mentalidade de um imaturo incorrigível no corpo de um adulto aparentemente inofensivo. Esta é uma combinação muito perigosa. Se também olharmos para muitos, se não a maioria, dos envenenadores masculinos que foram julgados e condenados, veremos que eles tendem a lidar com o conflito de uma forma que não é fisicamente confrontacional.

Disparidades nas Taxas de Prevalência de Homicídios por Envenenamento: Comparação entre Países Desenvolvidos e em Desenvolvimento

A prevalência de homicídios por envenenamento varia significativamente entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, refletindo diferenças socioeconômicas, acesso às substâncias tóxicas e eficácia dos sistemas de investigação forense. Enquanto nações desenvolvidas registram taxas baixas — muitas vezes abaixo de 1% do total de homicídios —, países em desenvolvimento enfrentam números mais altos, com casos que chegam a ultrapassar 40% em certas regiões, como evidenciado em Bangladesh (Bari et al., 2014). Essas disparidades revelam padrões distintos em termos de agentes tóxicos utilizados, perfis das vítimas e contextos culturais.

Prevalência em Países Desenvolvidos

Estudos nos Estados Unidos, Reino Unido e Suécia apontam taxas mínimas de homicídios por envenenamento. Nos EUA, dados do FBI (1990–1999) indicam apenas 1,9 caso para cada 100 mil homicídios, com venenos tradicionais como arsênico e cianeto sendo atualmente substituídos por opioides e sedativos (Westveer et al., 2004). Na Suécia, a taxa é de 1,2 caso por milhão de habitantes (Finnberg et al., 2013), enquanto no Reino Unido, embora raros, os casos concentram-se em crianças (3,6% do total de envenenamentos infantis) (Flanagan et al., 2005).

Essa baixa incidência é frequentemente atribuída aos seguintes fatos:

    • Regulação rigorosa de substâncias tóxicas, como pesticidas e metais pesados.

    • Sistemas de saúde eficientes, que identificam rapidamente sintomas atípicos.

    • Investigação forense avançada, capaz de detectar traços mínimos de venenos mesmo em exumações tardias (Trestrail, 2007).

 

Prevalência em Países em Desenvolvimento

Em contraste, na Índia e Bangladesh, os homicídios por envenenamento são mais frequentes. Na Índia, a taxa varia de 0,3% a 3,7%, com pesticidas (como organofosforados e alumínio fosfeto) sendo os principais agentes (Sikary, 2019). Já em Bangladesh, a taxa chega a 43,3%, impulsionada pelo uso de “coquetéis” de sedativos e benzodiazepínicos em crimes contra viajantes (Bari et al., 2014).

Fatores que contribuem para essa alta prevalência incluem:

    • Acesso fácil aos agroquímicos, amplamente usados na agricultura e sem controle rigoroso.

    • Falta de suspeição clínica, com sintomas sendo confundidos com doenças comuns, como gastroenterites (Sikary, 2019).

    • Contextos familiares, onde parentes próximos (como cônjuges ou pais) são os principais perpetradores, muitas vezes motivados por conflitos financeiros ou de gênero (Kumar et al., 2012).

 

Aspectos Diferenciais

  1. Agentes Tóxicos:

    • Países desenvolvidos: Opioides, monóxido de carbono e medicamentos controlados dominam os casos (Finnberg et al., 2013).

    • Países em desenvolvimento: Pesticidas (organofosforados, alumínio fosfeto) e venenos tradicionais (arsênico, cianeto) são predominantes (Sikary, 2019).

  1. Perfil das Vítimas:

    • Em nações ricas, vítimas são frequentemente idosos em contextos de eutanásia ou adultos em relacionamentos abusivos (Finnberg et al., 2013).

    • Em países pobres, crianças e mulheres são alvos comuns, muitas vezes envenenadas por familiares em disputas por dote ou herança (Bari et al., 2014).

  1. Detecção e Investigação:

    • Países desenvolvidos contam com toxicologia forense avançada e protocolos padronizados para exumar corpos mesmo anos após a morte (McFee & Leikin, 2009).

    • Países em desenvolvimento enfrentam limitações laboratoriais e subnotificação, especialmente em áreas rurais (Sikary, 2019).

As disparidades nas taxas de homicídio por envenenamento refletem desigualdades estruturais e culturais. Enquanto países desenvolvidos lidam com casos raros e altamente investigados, nações em desenvolvimento enfrentam desafios como acesso desregulado aos vários venenos e fragilidades nos sistemas de saúde. Combater essa modalidade de crime exige não apenas avanços tecnológicos, mas também políticas públicas que coíbam a venda de substâncias tóxicas e promovam educação médica para reconhecer sinais de envenenamento.

Tipologia Criminal

Quanto às tipologias dos envenenadores criminais, Trestrail (2007) propõe uma classificação baseada na seleção da vítima e no grau de planejamento do crime. Os envenenadores podem ser categorizados em dois grupos principais: aqueles que visam uma vítima específica (Tipo S – Specific victms) e aqueles que escolhem vítimas aleatórias (Tipo R – Random victims). Dentro desses grupos, existem subcategorias que refletem a velocidade e a meticulosidade do planejamento. Por exemplo, envenenadores do Tipo S podem agir de forma lenta e calculada (Subgrupo S) ou rápida e oportunista (Subgrupo Q), motivados por vingança, dinheiro, política. Já os do Tipo R podem ser motivados por ego ou sadismo, agindo de forma premeditada ou impulsiva (Trestrail, 2007).

Além disso, alguns envenenadores buscam camuflar seus crimes, simulando incidentes aleatórios para desviar a atenção das autoridades. Esse comportamento é observado em casos como o de Stella Nickell, que envenenou cápsulas de medicamento para encobrir o assassinato do marido (Olsen, 1993). Outra tipologia relevante é a do “toxicomaníaco”, ou seja, indivíduos obcecados por venenos, como Graham Young, que via suas vítimas como cobaias em experimentos (Holden, 1974).

Aqui está a tabela detalhada em português sobre os tipos de envenenadores criminais propostos por Trestrail, conforme apresentado no texto:

Tipos de Envenenadores Criminais (Classificação de Trestrail, 2007)

Tipo

Subgrupo

Descrição

Motivações

Exemplo

Tipo S

(Vítima Específica)

Subgrupo S

(Lento/Planejado)

Envenenamento planejado cuidadosamente, com seleção detalhada do veneno.

Dinheiro, ciúme, vingança, ambição política.

Mulher que pesquisa venenos na Internet e os administra ao marido.

Subgrupo Q

(Rápido/Oportunista)

Ação espontânea, usando veneno disponível como “arma de oportunidade”.

Mesmas do Tipo S, mas com impulso imediato.

Mulher que adiciona herbicida à comida do marido durante uma briga.

Tipo R

(Vítima Aleatória)

Subgrupo S

(Lento/Planejado)

Envenenamento planejado com veneno cuidadosamente selecionado para vítimas aleatórias.

Ego, desejo de adulteração, tédio, sadismo.

Terrorista que contamina alimentos com cianeto para chantagem industrial.

Subgrupo Q

(Rápido/Oportunista)

Ação espontânea com veneno acessível, direcionada a vítimas aleatórias.

Mesmas do Tipo R, mas com impulso imediato.

Funcionário que contamina um lote de produtos por raiva contra o empregador.

Tipo Camuflado

Simula ser Tipo R (vítima aleatória) para esconder um crime Tipo S (vítima específica).

Ocultar homicídio específico, dificultando a investigação.

Envenenar o cônjuge e adulterar produtos em lojas para parecer um caso aleatório.

Os Venenos Mais Usados por Envenenadores Criminais e a Estratégia da Camuflagem

No universo dos crimes por envenenamento, alguns venenos se destacam por sua letalidade, disponibilidade ou dificuldade de detecção. Historicamente, o arsênico lidera como o mais utilizado, presente em 26% dos casos documentados. Sua popularidade deve-se ao fato de ser inodoro, insípido e capaz de simular sintomas de doenças comuns, como gastroenterites, o que dificultava o diagnóstico antes dos avanços toxicológicos. Em segundo lugar, aparece o cianeto, responsável por 8% dos casos, um veneno de ação rápida e extremamente letal, frequentemente associado a homicídios planejados ou suicídios. Já a estricnina, embora menos comum (6% dos casos), era preferida por seu efeito violento, causando convulsões e morte por asfixia, sendo muitas vezes usada em crimes passionais ou vinganças.

Além desses “três grandes”, outros venenos surgem em contextos específicos. Substâncias como a ricina (derivada da mamona) e a atropina (encontrada em plantas como a beladona) aparecem em casos de terrorismo ou assassinatos disfarçados. Já venenos modernos, como medicamentos adulterados (por exemplo, overdoses de opioides), são mais difíceis de rastrear, pois podem ser confundidos com acidentes ou overdoses acidentais.

A Camuflagem: O Envenenador que Engana Duplamente

Um dos aspectos mais intrigantes estudados por Trestrail é o envenenador camuflado, aquele que comete um crime direcionado (Tipo S) mas tenta disfarçá-lo como um ataque aleatório (Tipo R). Essa estratégia visa a confundir as investigações forenses, criando a ilusão de que a vítima foi escolhida por acaso, quando, na verdade, o assassino tinha um alvo específico.

Como já referido, um caso clássico é o de Stella Nickell, que em 1986 envenenou cápsulas de Excedrin com cianeto para matar o marido e, assim, receber o dinheiro do seguro. Para tornar o crime menos óbvio, ela adulterou outras cápsulas em lojas de produtos farmacêuticos, fazendo parecer um ataque aleatório. Outro exemplo é o de Ronald Clark O’Bryan, que em 1974 envenenou doces de Halloween para assassinar o próprio filho e lucrar com o seguro de vida, ao mesmo tempo em que tentou culpar um “maníaco envenenador de doces”.

Esses criminosos geralmente possuem um perfil calculista, combinando frieza emocional e criatividade tétrica para ocultar seus verdadeiros motivos. Muitas vezes, eles estudam toxicologia, manipulam substâncias de forma meticulosa e planejam cenários que desviem a atenção das autoridades. A camuflagem só é desmascarada quando investigações minuciosas revelam conexões ocultas, como benefícios financeiros, relacionamentos conflituosos ou padrões de comportamento suspeito.

Seja pelo uso de venenos tradicionais como arsênico e cianeto, seja pela astúcia da camuflagem, os envenenadores criminais representam um desafio único para a peritagem. Enquanto alguns agem por impulso, outros planejam seus crimes com precisão quase artística, explorando a invisibilidade relativa do veneno como arma. No entanto, com o avanço da toxicologia forense e da análise comportamental, mesmo os esquemas mais elaborados podem ser desvendados — provando que, no fim, nenhum veneno é verdadeiramente “perfeito”.

As Dificuldades na Detecção de Crimes por Envenenamento e os Perfis Contemporâneos de Envenenadores Não Médicos

A detecção de homicídios por envenenamento é um dos maiores desafios da medicina forense e da investigação criminal. Diversos fatores contribuem para que esses crimes passem despercebidos ou sejam erroneamente diagnosticados como mortes naturais. Um dos principais obstáculos é a semelhança entre os sintomas de envenenamento e doenças comuns. Por exemplo, arsênico, como repisado, pode simular gastroenterite, enquanto toxinas como o tálio ou o polônio-210 causam sintomas neurológicos e hematológicos que podem ser confundidos com condições como síndrome de Guillain-Barré ou leucemia (Finnberg et al., 2013). Muitas vezes, só se suspeita de envenenamento quando o paciente não responde ao tratamento ou quando há um agravamento inexplicável do quadro clínico, como no caso do espião russo Alexander Litvinenko, envenenado com polônio-210, cujo diagnóstico só foi confirmado após análises especializadas (McFee & Leikin, 2009).

Outra dificuldade é a falta de suspeita inicial, especialmente em ambientes médicos. Profissionais de saúde tendem a presumir que os colegas agem de boa fé, o que permite que envenenadores em hospitais — como um enfermeiro sueco que matou pacientes com desinfetantes — atuem por longos períodos sem serem descobertos (Finnberg et al., 2013). Além disso, a destruição de evidências é facilitada pelo intervalo entre a administração do veneno e o surgimento dos sintomas, dando ao criminoso tempo para descartar provas e criar álibis.

Os Envenenadores Não Médicos na Atualidade

Embora casos históricos envolvam venenos como arsênico e cianeto, os envenenadores modernos frequentemente recorrem a substâncias menos óbvias. Drogas lícitas, como opioides e sedativos, são agora as preferidas, pois sua presença no organismo pode ser atribuída à overdose acidental ou ao uso terapêutico (Shepherd & Ferslew, 2009). Esse padrão foi observado em estudos como o de Finnberg et al. (2013), que analisou casos na Suécia e nos EUA e encontrou narcóticos e monóxido de carbono como agentes predominantes.

Entre os perfis contemporâneos de envenenadores não médicos, destacam-se:

    1. Parceiros ou familiares que buscam benefícios financeiros (como seguros de vida) ou vingança, usando venenos de ação lenta para evitar suspeitas. Um exemplo é o caso de Miami em que uma esposa adicionou herbicida à água do marido por semanas, simulando uma doença (Finnberg et al., 2013).

    2. Criminosos que adulteram produtos, como alimentos ou medicamentos, para encobrir assassinatos específicos — um tipo de “camuflagem” descrito por Trestrail.

    3. Indivíduos com acesso a substâncias tóxicas em ambientes industriais ou laboratoriais, como químicos que utilizam compostos como tálio ou ricina, cujos efeitos são difíceis de rastrear sem suspeita prévia.

A evolução dos métodos de envenenamento exige que investigações criminais e equipes médicas mantenham um alto índice de suspeição, especialmente em mortes súbitas ou com sintomas atípicos. A toxicologia forense avançada e a análise de padrões comportamentais são ferramentas essenciais para desvendar esses crimes, que continuam a ser subnotificados devido à sua natureza insidiosa.

O Caso do Bolo de Natal Envenenado com Arsênico: Um Crime Familiar Calculado

Em um caso intrigante de envenenamento criminoso, um membro de uma família preparou intencionalmente um bolo de Natal contaminado com arsênico, uma substância inodora e insípida, conhecida por sua letalidade e histórico de uso em homicídios (Trestrail, 2007). A autora do crime — que também consumiu o bolo — sobreviveu após ser hospitalizada, enquanto outras vítimas da mesma família faleceram, levantando questões sobre motivação, método e a estratégia de dissimulação.

O arsênico foi escolhido por sua capacidade de simular sintomas de doenças gastrointestinais, como vômitos, diarreia e desidratação, que podem ser confundidos com intoxicação alimentar comum (Sikary, 2019). A perpetradora, possivelmente familiarizada com as propriedades do veneno, misturou-o à massa do bolo, assegurando que a dose ingerida por ela fosse menor ou que tivesse acesso a tratamento imediato para evitar a morte. Esse padrão de autoadministração controlada é observado em casos de envenenadores que buscam evitar suspeitas, posicionando-se como “vítimas” do mesmo incidente (Farrell, 2017).

Perfil da Envenenadora e Motivações

A literatura sobre envenenadores criminais sugere que crimes familiares com arsênico frequentemente envolvem motivações financeiras ou interpessoais, como herança, seguros de vida ou conflitos domésticos (Trestrail, 2007). No caso em questão, a perpetradora pode ter agido para:

    1. Eliminar familiares que representavam obstáculos a seus interesses (como controle de patrimônio).

    2. Criar uma cortina de fumaça, já que sua própria hospitalização desviaria a atenção das autoridades (Finnberg et al., 2013).

A sobrevivência da autora é um elemento típico de envenenadores do tipo S/S (vítima específica/planejamento lento), conforme a tipologia de Trestrail (2007), que envolve seleção cuidadosa do veneno e cálculo meticuloso das doses.

Falhas na Investigação Inicial

Inicialmente, as mortes podem ter sido atribuídas a causas naturais, dado que o arsênico requer exames toxicológicos específicos para detecção (Sikary, 2019). A demora na suspeita de envenenamento pode permitir que a autora destrua evidências, como embalagens de pesticidas ou restos do bolo. Casos semelhantes, como o de Stella Nickell — que envenenou o marido com cianeto e adulterou medicamentos para simular um ataque aleatório — destacam a dificuldade em vincular mortes aparentemente desconexas (Trestrail, 2007).

Lições Forenses

Este caso ilustra a complexidade dos homicídios por envenenamento em contextos familiares, onde a proximidade com as vítimas facilita o acesso e a dissimulação. A sobrevivência do perpetrador pode ser tanto uma falha no plano (dose inadequada) quanto uma estratégia para evitar suspeitas. Para investigações futuras, é crucial:

    • Priorizar análises toxicológicas em mortes súbitas com sintomas gastrointestinais.

    • Investigar históricos de conflitos familiares e benefícios financeiros ligados às vítimas (Farrell, 2017).

 

Palavras Finais

A análise da tipologia criminal e da prevalência de envenenadores revela um panorama complexo, onde fatores psicológicos, sociais e culturais se entrelaçam para moldar padrões de comportamento criminoso. Os estudos demonstram que, embora os envenenamentos criminais sejam relativamente raros em comparação com outros métodos de homicídio, sua natureza sorrateira e a dificuldade de detecção os tornam particularmente perigosos.

Os envenenadores, frequentemente classificados como tipo S (vítima específica) ou tipo R (vítima aleatória), agem motivados por razões que vão desde ganho financeiro e vingança até sadismo e desejo de controle (Trestrail, 2007). Em contextos familiares, prevalecem crimes calculados, nos quais a proximidade com a vítima facilita a administração do veneno e a dissimulação. Já em casos de envenenamento aleatório, como adulteração de produtos, os motivos muitas vezes envolvem terrorismo, chantagem ou pura crueldade.

A prevalência varia significativamente entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, refletindo diferenças no acesso às substâncias tóxicas, na eficácia dos sistemas de saúde e na capacidade de investigação forense. Enquanto nações com regulamentações rígidas e tecnologia avançada registram taxas baixas, regiões com controle insuficiente sobre agroquímicos e medicamentos enfrentam desafios maiores na prevenção e no combate a esses crimes (Sikary, 2019).

Por fim, compreender a tipologia e a psicologia por trás dos envenenadores é essencial não apenas para a investigação criminal, mas também para a elaboração de políticas públicas que visem à restrição de substâncias venenosas ou com alto potencial de letalidade e a educação médica para a identificação precoce de casos suspeitos. Ainda que o envenenamento seja um método historicamente associado à traição e ao sigilo, os avanços na toxicologia forense e na análise comportamental têm sido fundamentais para desvendar esses crimes e trazer justiça às vítimas.

Referências

Bari, M. S. et al. (2014). Four-year study on acute poisoning cases in Bangladesh. Asia Pacific Journal of Medical Toxicology, 3(4), 152–156.

Farrell, M. (1992). Poisons and Poisoners: An Encyclopedia of Homicidal Poisonings. Robert Hale.

Finnberg, A. et al. (2013). Homicide by Poisoning. American Journal of Forensic Medicine and Pathology, 34(1), 38–42.

Flanagan, R. J. et al. (2005). Fatal poisoning in childhood, England & Wales. Forensic Science International, 148(2–3), 121–129.

Holden, A. (1974). The St. Albans Poisoner: The Life and Crimes of Graham Young. Hodder & Stoughton.

McFee, R. B., & Leikin, J. B. (2009). Death by polonium-210: Lessons from the murder of Alexander Litvinenko. Seminars in Diagnostic Pathology, 26(1), 61–67.

Olsen, G. (1993). Bitter Almonds: The True Story of Mothers, Daughters, and the Seattle Cyanide Murders. Warner Books.

Shepherd, G., & Ferslew, B. C. (2009). Homicidal poisoning deaths in the United States (1999–2005). Clinical Toxicology, 47(4), 342–347.

Sikary, A. K. (2019). Homicidal poisoning in India. Journal of Forensic and Legal Medicine, 61, 13–16.

Trestrail, J. H. (2007). Criminal Poisoning: Investigational Guide for Law Enforcement, Toxicologists, Forensic Scientists, and Attorneys (2ª ed.). Humana Press.

Westveer, A. E. et al. (2004). Homicidal poisoning. FBI Law Enforcement Bulletin, 73(8), 1–8.

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