Introdução
O Principialismo Dialético trata-se, grosso modo, de uma estratégia para navegar nos dilemas éticos da prática médica diuturna, em especial da prática clínico-forense. Não aborda diretamente o tratamento daqueles com Transtorno Pedofílico, mas os seus princípios podem ser aplicados nesse contexto. A aplicação do Principialismo Dialético ao tratamento de pessoas com Transtorno Pedofílico requer uma consideração cuidadosa dos deveres e princípios éticos concorrentes.
Dentro dessa estratégia, o termo “principialismo” refere-se à ênfase em alguns princípios (no sentido mais amplo do termo). Os princípios incluem:
O cumprimento dos deveres priorizados para uma determinada atividade (seja ela clínica ou forense), levando-se em consideração o contexto específico
Princípios da ética profissional, que podem ser influenciados por diretrizes organizacionais
Princípios da ética e valores pessoais que podem ser moldados por várias teorias éticas
Expectativas da sociedade perante um papel profissional específico
Princípios culturalmente baseados e distintos para profissionais individuais e definidos por sua narrativa pessoal e profissional única.
Na verdade, o Principialismo Dialético atribui valores ponderados aos princípios éticos com base no papel profissional, no contexto específico da situação e no conjunto único de valores pessoais, culturais e sociais. O Principialismo Dialético demarca os deveres primários versus secundários dependentes do papel do praticante/profissional. No ambiente de tratamento (clínico), os princípios de dever primário diferem daqueles de outras funções, como os das áreas forenses e os da pesquisa clínica. Sob o modelo dialético, os médicos assistentes têm um dever primário centrado no bem-estar do paciente (seguindo os princípios de autonomia, beneficência, não maleficência e justiça) e deveres secundários com o bem-estar público, a sociedade, os hospitais, entre outros. Os profissionais forenses, por outro lado, têm os deveres primários de responder às questões legais de forma verdadeira e honesta, ao mesmo tempo em que mostram respeito pelas pessoas avaliadas para alcançar a justiça legal.
Os princípios mais relevantes para o dever primário, conforme definidos pelo papel específico do profissional, recebem peso especial no processo de equilíbrio, levando-os a superar todos os outros princípios na maioria das vezes. Assim, essa distinção entre princípios de dever primário e secundário auxilia os profissionais na tomada de decisões éticas, quando vários princípios entram em conflito. O Principialismo Dialético não é rígido no sentido de que o papel, embora muito significativo, não é o único fator que pesa os princípios uns contra os outros. O contexto da situação também é um componente relevante. Princípios de dever secundário extraordinariamente fortes ocasionalmente podem abalar os primários e se tornar perturbadores do que consideramos nossa ação mais ética. Isso não é exclusivo nos contextos forenses. Por exemplo, no ambiente de tratamento, os princípios de dever primário relacionados ao bem-estar do paciente podem ser abalados por deveres secundários de proteger terceiros. Exemplos são denúncias de abuso de crianças e idosos para proteger os mais vulneráveis em nossa sociedade ou quando a exigência de Tarasoff de proteger a segurança de outra pessoa é desencadeada pela ameaça crível de violência iminente. Um outro componente que afeta o peso atribuído a cada princípio é a narrativa única do profissional, que define seu conjunto de valores e crenças pessoais e culturais em relação às expectativas da sociedade quanto ao seu papel de médico.
Uma visão crítica, detalhada e aprofundada sobre a aplicação do Principialismo Dialético na prática ética médica, especialmente no contexto complexo e multifacetado das relações entre médicos e pacientes é vital. Discute-se de forma minuciosa a adoção desse modelo ético por várias instituições, destacando a natureza não absoluta, mas sim contextualizada, dos princípios bioéticos.
Identificando Deveres Primários e Secundários no Tratamento do Transtorno Pedofílico
Dever Primário: O dever primário no tratamento é tipicamente o bem-estar e a segurança do paciente, mantendo os princípios da beneficência (fazer o bem) e não maleficência (evitar danos). Isso significa fornecer a melhor intervenção terapêutica possível, que pode incluir medicação, terapia e outros serviços de apoio.
Deveres secundários conflitantes: No entanto, a própria natureza da Pedofilia apresenta conflitos significativos. As funções secundárias do tratamento incluem:
Proteger vítimas em potencial: Esta é uma preocupação primordial, sacudindo o foco apenas no bem-estar do paciente neste contexto específico. O terapeuta, embora não seja responsável pela segurança pública, deve levá-la em consideração bem como a prevenção de danos futuros.
Defender os valores sociais: Uma grande parte da sociedade não vê o Transtorno Pedofílico como um problema médico. Isso dificulta em grande soma o trabalho dos especialistas, dada a falta de apoio. O terapeuta deve então operar dentro das normas sociais e requisitos ético-legais, o que pode limitar certas opções do tratamento.
Manter a integridade profissional: O terapeuta deve aderir às diretrizes éticas, garantindo a transparência e evitando ações que possam ser vistas como cúmplices de comportamentos prejudiciais.
Equilibrando Deveres Concorrentes
O Principialismo Dialético sugere um processo argumentativo para equilibrar esses deveres. O terapeuta deve pesar a importância relativa de cada dever no caso específico, considerando fatores como o nível de risco do paciente, a gravidade de ofensas passadas e a disponibilidade de tratamentos eficazes.
Avaliação de risco: Uma avaliação de risco de reincidência completa (comentada em artigos anteriores nesse site) é crucial. Pacientes de alto risco podem exigir intervenções mais incisivas.
Foco do tratamento: O plano de tratamento deve equilibrar as necessidades do paciente com a necessidade de gerenciar o risco de reincidência. A terapêutica deve se concentrar na prevenção de recaídas, na reestruturação cognitiva e no tratamento de problemas médicos e psicológicos concomitantes. No entanto, terapias que possam minimizar involuntariamente o risco de reincidência criminal ou inadvertidamente encorajar a negação devem ser evitadas!
Colaboração e transparência: A comunicação aberta com as autoridades relevantes (por exemplo, agentes da Lei realmente interessados e participativos) pode ser necessária, dependendo do nível de risco e dos requisitos legais vigentes. Manter a transparência em relação aos riscos potenciais e aos limites do tratamento também é vital. No entanto, uma queda de braço entre os especialistas médicos nessa área e os operadores do Direito somente trará danos.
Aplicando Princípios Ponderados
Depois de pesar os deveres e considerar as circunstâncias específicas, o terapeuta aplica os princípios ponderados para chegar ao curso de ação mais ético. Esse não é um processo estereotipado, e o equilíbrio mudará dependendo do caso individual. Requer julgamento cuidadoso e consideração das possíveis consequências de qualquer decisão.
Desafios e limitações éticos
É vital reconhecer que o tratamento do Transtorno Pedofílico apresenta desafios éticos únicos. Não há garantias de que o tratamento será bem-sucedido na prevenção de ofensas futuras. O médico especialista deve gerenciar cuidadosamente a tensão entre respeitar os direitos do paciente e proteger as vítimas em potencial.
O Principialismo Dialético incentiva uma abordagem ponderada e diferenciada, pesando deveres e princípios concorrentes para encontrar o curso de ação mais eticamente sólido, reconhecendo as limitações do processo terapêutico e a necessidade da segurança da comunidade. Repiso: Essa abordagem prioriza uma avaliação de risco cuidadosa e individualizada, um plano de tratamento que equilibra os objetivos terapêuticos com a prevenção de danos a outras pessoas e a total transparência em relação ao plano de tratamento e as suas limitações (Weinstock, 2015).
Tratamento Hormonal versus “Castração Química”
A análise das diferenças entre a chamada “Castração Química” e o tratamento hormonal à luz do Principialismo Dialético exige uma compreensão profunda dos princípios éticos que regem a prática médica e as decisões relacionadas à saúde. Lodéa (2016) destaca a importância do conceito de justiça, que é interpretado como “aquilo que lhe é devido”. Essa perspectiva fundamenta a justiça retributiva, onde se ponderam benefícios, riscos e ônus associados às diferentes alternativas do manejo jurídico e mesmo médico.
No contexto brasileiro, o uso do Principialismo nas diretrizes do Conselho Nacional de Saúde reflete uma abordagem ética nas pesquisas que envolvem seres humanos, sendo crucial para a discussão sobre as intervenções médicas.
A crítica à validade prima facie dos princípios éticos, é um ponto central na avaliação do tratamento em questão. A relação entre o médico e o paciente é um aspecto que merece enorme atenção, especialmente quando se considera que nem todos os indivíduos têm a capacidade e/ou oportunidade para tomar decisões informadas sobre os seus tratamentos. Essa dinâmica é particularmente relevante ao se discutir a chamada “Castração Química” e o tratamento hormonal, já que as implicações éticas de cada forma de intervenção podem afetar diretamente a autonomia do paciente bem como o princípio da beneficência.
Além disso, a análise das decisões de tratamento deve levar em conta o papel do Estado como garantidor do acesso à saúde, o que implica uma responsabilidade adicional na escolha entre as opções terapêuticas disponíveis. A discussão sobre a chamada “Castração Química”, que envolve considerações sobre consentimento e a possível coação, contrasta com as nuances do chamado tratamento hormonal, que deve ser visto sob uma luz diferente em relação à plena autonomia do paciente. Portanto, a compreensão das implicações éticas e sociais dessas práticas é fundamental para uma avaliação crítica e fundamentada, que respeite os direitos dos indivíduos e promova a justiça na saúde.
Considerações Gerais
Um enfoque contratualista, como uma maneira de estruturar a aplicação dos princípios da Bioética em circunstâncias específicas, é particularmente relevante ao se considerar a complexidade das decisões médicas, que frequentemente envolvem dilemas éticos significativos. A relação médico-paciente é central para essa discussão, pois a capacidade de decisão/consentimento dos pacientes pode variar, especialmente em casos de vulnerabilidade, como em crianças ou indivíduos com deficiências intelectuais e mesmo na população encarcerada.
Enfatizamos que a ética médica deve levar em conta não apenas os princípios gerais, mas também as particularidades de cada situação e momento, o que é essencial para garantir uma prática ética e responsável. Para cada caso, os princípios bioéticos merecem uma investigação mais nuançada de forma cientificamente embasada para cada situação. Isso é especialmente pertinente quando se discutem intervenções como a famigerada “Castração Química” e o tratamento hormonal, que exigem uma análise cuidadosa das implicações éticas e das necessidades dos pacientes. Um simples “sim, aceito” não necessariamente representa a vontade real do indivíduo a ser submetido a determinado tipo de tratamento ou manejo médico. Por isso, instrumentos de avaliação da capacidade de consentir devem ser utilizados, principalmente em situações de risco aos profissionais.
Mais uma vez repiso que a análise das diferenças entre a “Castração Química” e o tratamento hormonal, sob a perspectiva do Principialismo Dialético, revela a complexidade ética envolvida nas decisões médicas.
A dinâmica da relação médico-paciente é crucial, pois nem todos os indivíduos possuem a capacidade de tomar decisões informadas sobre os seus tratamentos. Isso se torna ainda mais relevante ao considerar a chamada “Castração Química”, que pode envolver questões de consentimento e coação, contrastando com o tratamento hormonal, que oferece uma ampla autonomia ao paciente. A responsabilidade do Estado em garantir o acesso à saúde também é um aspecto fundamental que deve ser considerado nas escolhas terapêuticas.
Assim, a análise crítica das intervenções médico-jurídicas, como a “Castração Química” (em alguns países) e o tratamento hormonal, deve integrar uma compreensão das implicações éticas e sociais, respeitando os direitos dos indivíduos e promovendo a justiça na saúde. É imperativo que as decisões sejam fundamentadas não apenas em princípios éticos gerais, mas também nas particularidades de cada situação, garantindo uma prática médica ética e responsável.
Exemplo de Questionário para Avaliação da Validade do Consentimento no Tratamento Médico Específico
O questionário abaixo é baseado no MacArthur Competence Assessment Tool for Treatment (MacCAT-T). Trata-se de uma entrevista clínica estruturada que avalia a competência de um paciente relacionada às decisões do seu tratamento médico. Esse questionário contém questões abertas bem como perguntas fechadas, específicas e graduadas.
Seção 1: Entendendo a Doença/Transtorno:
Questões fechadas:
Primeiramente, as respostas do paciente devem ser pontuadas de 0 na 10, em uma escala analógica visual.
Diagnóstico (pontuar de 0 a 10)
Características da doença/distúrbio e curso da doença (pontuar de 0 a 10)
Qual é o seu entendimento sobre o seu diagnóstico? (Selecionar uma das respostas abaixo):
Eu entendo meu diagnóstico completamente
Eu entendo a maioria dos aspectos do meu diagnóstico
Eu entendo alguns aspectos do meu diagnóstico
Não entendo meu diagnóstico.
Como você descreveria os principais sintomas ou características da sua doença/transtorno? (Escolha todas as opções aplicáveis)
Sintoma A
Sintoma B
Sintoma C
Outro (por favor, especifique).
Questões Abertas:
- Por favor, explique a sua compreensão da sua doença com as suas próprias palavras.
- De que forma a sua doença afeta a sua vida diária?
Seção 2: Apreciação da Doença/Transtorno
Agora achamos que esse é o problema no seu caso. Se você tem algum motivo para duvidar disso, gostaríamos de que você nos dissesse.
Questões fechadas:
O que você acha?
Concordo
Discordo
Não sei bem
Você concorda com o diagnóstico proposto?
Sim
Não
Não tenho certeza
Questões Abertas:
Se você discordar do diagnóstico proposto, explique o porquê.
Quais são as suas preocupações ou dúvidas sobre a sua doença/transtorno?
Seção 3: Entendendo o Tratamento
Questões fechadas:
Primeiramente, as respostas do paciente devem ser pontuadas de 0 na 10, em uma escala analógica visual.
O Senhor entendeu a respeito:
Do tratamento proposto? (pontuar de 0 a 10)
Das características do tratamento proposto e das consequências do tratamento proposto? (pontuar de 0 a 10)
Qual é o seu entendimento sobre o tratamento proposto? (Selecionar uma das respostas abaixo):
Eu entendo a proposta de tratamento completamente
Eu entendo a maioria dos aspectos do tratamento proposto
Eu entendo alguns aspectos do tratamento proposto
Não entendi sobre o tratamento proposto.
Como você descreveria os principais efeitos colaterais sobre o tratamento proposto? (Escolha todas as opções aplicáveis)
Efeito A
Efeito B
Efeito C
Outros (por favor, especifique)
Questões Abertas:
1. Por favor, explique a sua compreensão a respeito do tratamento proposto com as suas próprias palavras.
2. De que forma o tratamento proposto afetaria a sua vida diária?
Referências Griffith, Ezra. (2018). Ethics Challenges in Forensic Psychiatry and Psychology Practice (pp. 13-14). New York: Columbia University Press. Grisso T, Appelbaum PS, Hill-Fotouhi C. (1997). O MacCAT-T: uma ferramenta clínica para avaliar a capacidade dos pacientes de tomar decisões de tratamento. Psiquiatr Serv. 48(11):1415-9. Lodéa, A.L. (2016). A teoria do contrato triplo e a justificação prima facie do principialismo. Guairacá Revista de Filosofia. 32(2): 3-21. Weinstock, R. (2015). Dialectical principlism: an approach to finding the most ethical action. J Am Acad Psychiatry Law, 43(1), 10-20.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.