O Consentimento para o Ato Sexual: Repisando Velhos e Novos Paradigmas

E você consentirá em dispensar um grande número de

formas e frases, sem pensar que a omissão decorre da insolência?”

(Charlotte Brontë – Jayne Eyre – 1847)

Excerto – O consentimento não é automatizado

Nesse trecho do livro Jayne Eyre, podemos reconhecer uma interlocução entre o eu que fala e o outro que escuta. A indagação traz à tona um convite à reflexão sobre a natureza do consentimento e as suas implicações éticas e estéticas.

Os textos são sempre diálogos entre diversas vozes. Aqui, a voz do enunciador questiona a atitude do outro diante da omissão. O consentimento não pode ser um ato isolado, mas traz consigo um conjunto de vozes que interagem, como a consciência crítica sobre a falta de frases/formas e a possível insolência de um consentimento automático. Não se dispensa a responsabilidade; assegura-se dela. O uso do termo “insolência” não é trivial. Ele carrega uma conotação moral e ética, sugerindo que a omissão de formas e frases adequadas não é apenas uma falha comunicativa, mas uma falta de respeito e de autorrespeito. Essa polifonia enriquece o significado do consentimento, pois sugere que a decisão de “dispensar” não é neutra, mas carregada de contextos e interpretações diversas.

O excerto também sugere que o ato de consentir é uma ação que deve ser pensada e não automática. A pergunta se torna um convite para que o outro se posicione criticamente. A dialogicidade implica que o consentimento é uma dinâmica relacional onde tanto o enunciador quanto o destinatário estão envolvidos em um processo de construção de significado. O consentimento aqui é problematizado, sugerindo que não pode ser tomado como garantido, mas deve ser refletido. Outrossim, o sujeito é chamado a refletir sobre as suas próprias práticas discursivas. A pergunta sugere que a consciência sobre a omissão deve ser parte do autocuidado do falante, que deve considerar as suas escolhas e as suas consequências pessoais e sociais.

A relação entre a omissão e a insolência expõe uma tensão ética. A omissão, nesse contexto, pode ser vista como um ato de desrespeito não apenas a si mesmo, mas também à complexidade das formas de comunicação. Portanto, o consentimento não é apenas uma questão de concordância, mas uma postura moral que envolve reflexão e responsabilidade.

Na verdade, toda enunciação é influenciada por seu contexto social e histórico. O consentimento discutido no texto pode ser lido à luz dos valores culturais, sociais e históricos que moldam as interações humanas de determinado momento. Assim, a análise dialógica revelaria as implicações do consentimento em diferentes contextos, destacando que o ato de consentir ou omitir é sempre suscetível a variações dependendo do ambiente e do momento no qual se manifesta.

O consentimento é uma construção complexa que envolve múltiplas vozes, bem como a ética das relações interpessoais e a responsabilidade no uso da comunicação (verbal e/ou não verbal). A reflexão sobre a supressão do próprio agenciamento e a sua relação com a insolência convida-nos a um aprofundamento sobre as consequências das nossas escolhas comunicativas verbais e/ou não verbais.

A maneira como a linguagem é utilizada neste excerto pode ser vista como uma forma de resistência a comunicados simplistas que, de outra forma, poderiam dominar o espaço discursivo. Aqui, a insistência na clareza da expressão se torna uma afirmação contra a vulgarização da comunicação.

Introdução

O consentimento para atos sexuais é um elemento fundamental e essencial para a prática sexual segura e ética. A ausência de consentimento inequívoco torna qualquer ato sexual ilegal e imoral. Outrossim, a inexistência do consentimento para a prática sexual é um pilar essencial na definição de diversos crimes sexuais bem como importante na definição de alguns dos Transtornos Parafílicos, como, por exemplo, do Transtorno do Sadismo Sexual (Os impulsos sexuais para fazer outra pessoa sofrer física ou psicologicamente são direcionados contra uma pessoa sem o seu consentimento…), do Transtorno Exibicionista (O indivíduo agiu de acordo com esses impulsos sexuais com uma pessoa sem consentimento), do Transtorno do Voyeurismo (O indivíduo agiu de acordo com esses impulsos sexuais com uma pessoa sem consentimento), do Transtorno do Frotteurismo (O indivíduo agiu de acordo com esses impulsos sexuais com uma pessoa sem consentimento) (APA, 2022).

Para autores clássicos, o consentimento é a conformidade de vontades e desejos entre diferentes pessoas (Chand, 1897). Para autores mais modernos, o consentimento também não significa apenas uma permissão unilateral; significa uma conjunção de habilidades, desejos e responsabilidades (Ward, 2020).

As discussões sobre o consentimento sexual ocorrem com frequência e parecem ser de alguma forma dominadas por abordagens jurídicas, as quais estão presentes em muitas sociedades ocidentais e respaldadas no direito de propriedade, ao invés de se basearem nas experiências sexuais humanas em um mundo real. O consentimento sexual tem-se fundamentado na “autonomia corporal” cuja concepção subjacente se fundamenta na prerrogativa da decisão pessoal e intransferível sobre o que deve ser feito com o seu próprio corpo.

Abordar o consentimento sexual a partir da perspectiva da “autonomia corporal” significa ter respeito por si mesmo e pelas parcerias, tratando-as com cuidado e consideração e sempre sobrepesando a cautela, especialmente quando existem dúvidas sobre as vulnerabilidades do(s) outro(s). Alguns acreditam que, mesmo de um ponto de vista puramente egoísta, uma abordagem baseada na “autonomia corporal” faz sentido: se quisermos exercer a nossa própria “autonomia corporal”, devemos respeitar a dos outros. Os cuidados e sobrepesos não impedem a diversão implícita e explícita dos atos sexuais, nem tampouco a negociação do consentimento tem que ser um óbice para a satisfação erótica. Muito ao contrário, os cuidados com o consentimento sexual significam que o sexo não é um exercício egoísta de poder de uma pessoa sobre outra; trata-se de troca mútua, seja em situações casuais ou de longo prazo, de prazer para todos os lados (Popova, 2019).

Devemos levar em consideração, de forma didática, alguns dos elementos essenciais do consentimento, tais como:

  • Volição: O consentimento deve ser livre e voluntário, sem qualquer coação, chantagem ou manipulação. A pressão ou intimidação, mesmo que sutil, invalida o consentimento. Ameaças ou violência anulam completamente o consentimento.

  • Competência: A pessoa deve ter capacidade mental para entender a natureza e as consequências do ato sexual. Pessoas menores de idade, com deficiências intelectuais ou sob influência de álcool e/ou outras drogas, por exemplo, podem não ter a capacidade de dar um consentimento válido.

  • Clareza: O consentimento deve ser expresso de forma clara e inequívoca. A mera ausência de objeção não implica consentimento. O consentimento pode ser verbal ou não-verbal, mas deve ser inequívoco em sua demonstração de vontade e intencionalidade.

  • Ininterrupção: O consentimento pode ser revogado a qualquer momento. Se uma pessoa consentiu inicialmente, mas posteriormente mudou de ideia e demonstrou sua recusa, o ato sexual deve ser imediatamente interrompido. A continuação após a retirada do consentimento constitui ato sexual não consensual.

Situações que Abalam o Ato de Consentir

Contudo, embora o consentimento deva ser explícito, existem situações de vulnerabilidade em que o consentimento pode ser mais facilmente invalidado ou mesmo considerado inexistente, tais como:

  • Relações de influência: Relações de poder, como entre empregador e empregado, professor e aluno, podem criar uma dinâmica desequilibrada que compromete o consentimento. A pessoa com maior poder pode utilizar a sua posição para pressionar a outra a consentir em algo que não desejaria.

  • Abuso de confiança: Situações em que uma pessoa abusa da confiança da outra para obter anuência.

  • Engano: Consentimento obtido através da enganação sobre a identidade da pessoa, a natureza do ato ou as suas consequências.

 

Mais Uma Perspectiva Jurídica

O consentimento para atos sexuais é um elemento crucial e fundamental em qualquer sistema jurídico que visa a proteger a liberdade sexual individual. Ao longo dos anos, a compreensão e a aplicação jurídica do conceito de consentimento evoluíram significativamente, e, atualmente, as jurisprudências de diversos países estão se alinhando em torno de um conceito mais centrado na pessoa.

Destacam-se, aqui, três modelos principais da abordagem legal ao consentimento para atos sexuais:

  • Modelo Consensual Puro: Neste modelo, o consentimento é o elemento principal. A ilicitude do ato penalmente relevante está na ausência do consentimento válido da pessoa ofendida.

  • Modelo Consensual Limitado: Este modelo busca equilibrar a importância do consentimento com a necessidade de uma distinção clara entre atos sexuais consensuais e atos sexuais não consensuais, incluindo casos de possíveis ofensas sexuais. A ilicitude pode depender tanto da ausência do consentimento quanto de outras circunstâncias, como abuso de poder ou da vulnerabilidade da vítima.

  • Modelo Vinculado: Este modelo, menos centrado no consentimento, define o ato sexual como ilícito quando este é realizado por meio de métodos coercitivos específicos (violência, ameaça etc.). O consentimento per si, neste contexto, é menos valorizado.

 

Elementos Constitutivos do Consentimento

No geral, os elementos cruciais que determinam um consentimento válido são:

  • Livre e espontâneo: O consentimento deve ser uma escolha livre e autônoma, sem qualquer coerção ou influência indevida.

  • Consciente e informado: A pessoa que dá o consentimento deve ter conhecimento pleno da natureza e das implicações do ato. Isso significa que deve haver total compreensão do que está envolvido, incluindo os riscos.

  • Capacidade: A pessoa deve ter a competência mental e legal para dar o consentimento. Menores de idade ou aqueles com deficiência mental e/ou física incapacitante são considerados incapazes.

 

Desafios e Complexidades

O consentimento para atos sexuais apresenta diversas complexidades que atormentam o entorno jurídico. Devemos levar em consideração, durante a análise do consentimento sexual real, vários fatores intervenientes, tais como:

  • Implicações do contexto: A interpretação do consentimento pode variar de acordo com o contexto e a dinâmica do relacionamento entre as partes.

  • Variabilidade cultural e subjetiva: A compreensão e aplicação do conceito de consentimento variam entre diferentes culturas e até mesmo entre indivíduos dentro da mesma cultura.

  • Abuso de poder e vulnerabilidade: As situações de abuso de poder, vulnerabilidade física e/ou psicológica, deficiência intelectual podem comprometer a capacidade da vítima para dar um consentimento válido.

 

As legislações de diversos países estão migrando para modelos mais centrados na pessoa, valorizando a liberdade sexual individual e o respeito à autodeterminação. O consentimento, portanto, está assumindo um papel cada vez mais importante na definição jurídica de atos sexuais ilícitos.

O consentimento para atos sexuais é um elemento jurídico crucial para a proteção da liberdade sexual individual. Apesar dos modelos legais variarem, existe um consenso global de que o consentimento deve ser livre, consciente e informado, e dado por alguém com capacidade para tanto. Ao mesmo tempo, é preciso considerar as complexidades inerentes à definição e à aplicação jurídica do consentimento, particularmente em contextos que envolvam abuso de poder ou vulnerabilidade.

Os textos acadêmicos sobre o Consentimento Sexual desafiam a visão predominante de que o consentimento, entendido simplesmente como permissão, é suficiente para fundamentar a responsabilidade nos encontros sexuais. Ward (2020) argumenta que uma orientação mais fundamental em direção ao valor da agência sexual – as práticas de agência socialmente situadas e incorporadas de cada pessoa – é necessária para uma ética sexual robusta. A responsabilidade, portanto, estender-se-ia além da obtenção de um consentimento válido para abranger a capacidade de resposta contínua às expressões da agência da outra pessoa ao longo de um encontro.

Em tempo, Ward (2020) define a agência sexual como uma prática de perseguir projetos de vida, profundamente moldada por características subjetivas (desejos individuais, projetos) e características objetivas (condições sociais e estruturais, história). Não é apenas uma capacidade de ação, mas um processo dinâmico e temporalmente estendido de autoconstrução, de empoderamento. A agência de uma pessoa, portanto, não é plenamente manifestada em um único momento de consentimento ou comunicação.

Considerando a perspectiva da agência dos amantes, é necessário:

  • Compreender que a agência e a experiência da outra pessoa se estendem além do próprio aceite instantâneo.

  • Receber as expressões da outra pessoa como um desafio à própria certeza sobre a sua agência.

  • Manter a capacidade de resposta contínua à agência do outro durante todo o encontro.

 

Esse texto conclui que a responsabilidade para com o outro em um encontro sexual requer uma mudança do modelo legalista e contratual predominante para uma ética relacional enraizada na agência sexual. Essa abordagem oferece novos insights sobre a compreensão da violência sexual e a promoção da intimidade eticamente embasada. Desafiador, mas assim mesmo prazeroso…

Referências

American Psychiatric Association (APA). (2022). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – Fifth Edition Text Revised. Washington: American Psychiatric Association Publishing. p.: 792.

Chand, H. (1897). Principles of the Law of Consent. Bombay: Bombay Education Society`s Press.

Popova, M. (2019). Sexual Consent. Massachusetts: The MIT Press.

Ward, C. (2020). Agency, Responsibility, and the Limits of Sexual Consent [Dissertation]. Stony Brook University.

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