“Ao chegar à casa do meu filho, todos os meus netos estavam acordados e me esperando… Tudo isso para ver as roupinhas de verão que eu havia levado para eles. Imediatamente, eles começaram a despir-se para provar as roupas. Eu e a minha nora estávamos adorando…; porém, quando foi a vez do meu neto provar as sunguinhas, eu não resisti… e, fingindo brincar mas cheia de excitação, peguei no pintinho dele…”
(Anônima)
Excerto – A Ofensa Sexual Travestida de “Brincadeira”
A sonoridade do discurso apresentado revela uma série de elementos que podem ser avaliados em termos de ritmo, tonalidade e emoção. O discurso tem um fluxo narrativo que alterna entre momentos de expectativa e de ação. As frases curtas e diretas, como “Eu e a minha nora estávamos adorando…”, criam um ritmo leve e descontraído, refletindo a alegria da cena. A tonalidade é predominantemente positiva e afetuosa no início, com a menção da chegada à casa do filho e a animação das crianças. A narradora posiciona-se inicialmente como uma figura familiar carregada de afeto, apresentando-se como uma avó que deseja agradar os netos e compartilhar momentos alegres. A descrição do encontro é inicialmente leve e otimista, refletindo um apreço pelas tradições familiares e pela conexão emocional com os netos. As crianças, ao se despirem para experimentar as roupas de verão, incorporam um tom de inocência e alegria. Essa ação é um ritual comum em interações familiares que reforça a intimidade e a diversão, onde a bricolagem e a leveza da infância são valorizadas.
No entanto, há uma mudança de tom quando o foco se volta para a ação envolvendo o neto, que pode ser interpretada como complexa e potencialmente perigosa. Essa transição para o momento em que o neto prova as sunguinhas introduz uma nova dinâmica. A afirmação “eu não resisti…” sugere uma intenção maliciosa, mas também provoca uma reflexão sobre as normas sociais e os limites do que é considerado apropriado. Esse momento de transição desafia a leitura simples de um ambiente familiar alegre, levantando questões sobre os limites entre a brincadeira e a invasão do espaço pessoal. A voz da narradora entra em tensão com o que pode ser percebido como uma resposta social negativa ao ato descrito. Enquanto a intenção inicial pode ser vista como afetuosa, a ação final pode ser interpretada de formas muito distintas. Essa ambivalência pode gerar reações negativas e incômodas, refletindo diferentes valores e normas sobre a interação entre adultos e crianças.
O discurso provoca uma discussão sobre as relações familiares e o que é de fato “afeto” e “limite”. Tais interações podem levantar questões sobre o consentimento e o direito da criança ao próprio corpo. A leitura dialógica convida-nos, inclusive de forma inquietante e incômoda, a considerar várias vozes, como a das próprias crianças e da sociedade em geral, as quais podem perceber tais interações de maneiras bem diferentes.
O discurso evoca sentimentos de alegria e familiaridade no início, mas também levanta questões sobre a adequação da interação descrita. A descrição carinhosa do momento contrasta com a ação final, que gera desconforto e uma reflexão mais profunda sobre os limites e a natureza dessa interação familiar.
A menção das roupinhas de verão e a cena de crianças se despindo traz uma forte carga visual, ajudando a criar uma atmosfera alegre e infantil, que é rapidamente interrompida por um momento de tensão assaz arriscada e potencialmente predatória.
Introdução
O espectro dos crimes sexuais cometidos por mulheres varia desde a exposição dos genitais em público, diferentes formas sutis de abuso infantil e incesto até atos mais agressivos, incluindo estupro e assassinato. Em uma gama considerável de agressões sexuais, as mulheres agressoras agem em conjunto com um cúmplice do sexo masculino. Somente em poucos casos um diagnóstico de Transtorno Parafílico tem sido reportado. De longe, quando existe algum diagnóstico médico naquelas ofensoras apreendidas pela Justiça, os mais frequentes são Transtornos do Humor, Problemas com o Uso de Substâncias e Transtornos de Personalidade (especialmente, Borderline, Antissocial e/ou Dependente). A maioria dos autores concorda que mais do que 60% das agressoras sexuais foram vítimas elas mesmas de ofensas sexuais e/ou físicas. Conflitos com a mãe e/ou problemas relacionais com mulheres que detiveram o papel de mãe têm sido relatados por autores psicodinamicamente orientados (Berner, Briken, & Hill, 2009).
A prevalência “oficial” extremamente baixa de ofensas sexuais praticadas por mulheres pode ser o resultado de subnotificação, à medida que as mulheres podem ter mais possibilidades de mascarar um contato sexualmente inadequado com crianças do que os homens.
Epidemiologia
A agressão sexual por mulheres é pouco documentada nos relatórios oficiais. No entanto, estima-se que mulheres representem cerca de 5% dos ofensores sexuais (Cortoni, Hanson, & Coache, 2009). Estimativas também sugerem que em 24% dos casos envolvendo vítimas masculinas e em 13% envolvendo vítimas femininas, há participação de agressoras femininas, muitas vezes encoberta. De qualquer forma, deve-se notar que a subnotificação é significativa, devido à percepção social de menor gravidade e à frequência de crimes ocorrer mais amiúde dentro do contexto familiar.
A relação entre ofensores sexuais masculinos e femininos é estimada em 100:3. Na maioria das vezes, repiso, as agressoras atuam em parceria com um homem. Quando sozinhas, frequentemente têm um histórico de abuso sexual ou físico.
Uma Tipologia Criminal Clássica
As agressoras sexuais femininas demonstram comportamentos diversos, que podem incluir desde atos menores de indecência até crimes graves, como estupro e homicídio sexual. Uma tipologia comumente utilizada divide essas agressoras em cinco categorias:
Tipo “Professora/Amante”: Mulheres que se apaixonam por adolescentes e não compreendem o impacto negativo de suas ações.
Exploradoras de Crianças: Adolescentes ou jovens que molestam crianças sob seus cuidados.
Predispostas: Mulheres com histórico severo de abuso físico e sexual que ofendem crianças conhecidas ou próximas.
Psicologicamente Perturbadas: Agressoras com transtornos psiquiátricos graves ou abuso de substâncias que estupram crianças não familiares (principalmente). As ofensas sexuais extrafamiliares cometidas por mulheres contra crianças são mais amiúde executadas sem a ajuda de outras pessoas.
Coagidas por Homens (Cumplicidade): Mulheres dependentes emocionalmente que participam de ofensas iniciadas por parceiros (Mathews, Mathews, & Spelz, 1991).
Além dessas categorias, repiso aqui que os crimes cometidos exclusivamente por mulheres, incluindo a exposição indecente, incesto e até homicídios sexuais, são usualmente associados a transtornos psicológicos graves e dinâmicas de poder complexas.
Psicopatologia
A maioria das agressoras sexuais femininas não apresenta diagnóstico de Parafilia, mas é comum encontrar:
Depressão
Problemas com o uso de substâncias (álcool e/ou outras drogas)
Transtornos de Personalidade, especialmente Borderline, Antissocial e Dependente.
Estudos apontam que mais de 50% dessas mulheres foram vítimas de abuso sexual ou físico na infância, muitas vezes dentro de contextos familiares disfuncionais. Isso pode levar a um ciclo de “vítima que se torna agressora”. Além disso, problemas com figuras maternas, como conflitos ou rejeição, são frequentemente relatados.
Transtornos Parafílicos
Transtorno Exibicionista
Apesar dos autores apontarem baixa prevalência de Transtornos Parafílicos entre mulheres agressoras sexuais, o Transtorno Exibicionista feminino não parece ser tão incomum assim. No caso de mulheres, o Exibicionismo tende a ser menos estereotipado do que entre homens. Todavia, casos de Exibicionismo feminino muito semelhantes ao Exibicionismo masculino têm sido reportados nos gêneros textuais especializados.
Mulheres apresentando suas mamas e genitais em público para transeuntes desavisados têm sido relatados. Da mesma forma como no Exibicionismo Masculino, essas mulheres experimentam alta excitação durante o ato de exibição e, às vezes, atingem o orgasmo.
Semelhanças entre homens e mulheres exibicionistas podem ser vislumbradas no contexto familiar de ambos, tais como a dinâmica da privação precoce da atenção parental, uma profunda incapacidade para sustentar relacionamentos interpessoais íntimos e um progressivo impulso viciante (cíclico) pela atenção corporal.
Transtorno Sádico Sexual
O Transtorno Sádico sexual também tem sido matéria de grande repercussão pública entre algumas mulheres agressoras sexuais. Alguns casos das chamadas assassinas em série do sexo feminino tornaram-se muito populares na mídia dos anos 50. Myra Hindley (1942–2002) torturou e assassinou duas meninas e três meninos entre 10 e 17 anos junto com seu parceiro Ian Brady, entre 1963 e 1966. Ele a presenteou com o “Mein Kampf” de Hitler e com obras do Marquês de Sade, com a finalidade de aflorar a lascívia e o gosto pelo sádico. Ela contatava as vítimas, o casal gravava fitas de áudio das cenas de tortura, e tais áudios acabaram tornando-se públicos após a apreensão da polícia da época.
Rosemary West (1953) foi condenada por assassinato 10 adolescentes, incluindo sua própria enteada de 08 anos de idade, Charmaine. Além disso, Rosemary agrediu sexualmente uma mulher adulta. A polícia suspeitou que ela também esteve envolvida em outros assassinatos pelos quais ela foi condenada. West teve uma forte relação com um outro assassino em série, Frederick Walter Stephen.
Casos como os citados acima parecem ser extremamente raros; no entanto, não são apenas um fenômeno do século passado e atual. Elisabeth Bathory (1560-1614), matava adolescentes do sexo feminino para tomar banho em seu sangue.
Risco de Reincidência
Embora as agressoras sexuais constituam uma pequena fração do total de criminosos sexuais, sua reincidência criminal apresenta características únicas e desafiadoras. Apesar da escassez de ferramentas validadas para avaliar os riscos de reincidência nessa população, avanços recentes fornecem insights sobre os fatores estáticos e dinâmicos que influenciam as condutas.
Taxas de Reincidência
A reincidência sexual entre agressoras sexuais é significativamente menor do que entre homens. Segundo Cortoni, Hanson e Coache (2010), as taxas médias de reincidência em um período de acompanhamento de 6,5 anos foram de 1,5% para crimes sexuais, 6% para crimes violentos não sexuais e 20% para reincidência geral. Essas baixas taxas destacam que a reincidência não sexual é a mais comum.
Fatores de Risco Estáticos e Dinâmicos
Fatores estáticos, como histórico criminal prévio e idade, são indicadores consistentes de reincidência geral. Mulheres mais jovens (< 30 anos) apresentam maior probabilidade de reincidência geral (Vandiver, 2007). Entretanto, para a reincidência sexual, não foram identificados fatores estáticos específicos, com exceção de crimes anteriores de ofensas sexuais infantis (Sandler & Freeman, 2009).
Já os fatores dinâmicos incluem atitudes antissociais, problemas com a regulação emocional, déficits de intimidade e dependência “emocional” de ofensores masculinos (Eldridge & Saradjian, 2000). Essas características frequentemente coexistem com outros comportamentos criminais, indicando a necessidade de intervenções abrangentes que abordem múltiplos aspectos da vida das agressoras.
Reincidência de acordo com os Tipos de Crime
Pesquisas apontam dois padrões principais de ofensas:
Mulheres que praticam delitos sexuais diretos (como ofensa infantil e crimes relacionados à posse e divulgação de pornografia infantil)
Mulheres envolvidas em delitos relacionados à prostituição, ou seja, a promoção ou o aliciamento de menores para a prostituição infantil (Sandler & Freeman, 2009).
Esta última categoria apresenta maior taxa de reincidência em delitos similares, o que requer distinções específicas no tratamento e na avaliação.
A reincidência em crimes relacionados à prostituição não inclui, tipicamente, a evolução para crimes de contato. As mulheres reincidem em ofensas semelhantes, o que sugere que os fatores motivacionais e contextuais que sustentam essas atividades podem ser abordados com intervenções específicas. Além disso, fatores como a idade mais avançada entre essas ofensoras tem sido associada a uma maior probabilidade de reincidência, um padrão contrário ao observado em outros tipos de crimes sexuais provocados por mulheres.
Abordagens de Tratamento e Prevenção
Os programas de reabilitação para essas mulheres devem considerar as dinâmicas específicas das suas ofensas sexuais específicas. Intervenções direcionadas devem abordar questões como:
Necessidades econômicas e sociais que perpetuam o aliciamento de menores para práticas lascivas
Déficits emocionais e interpessoais
Fatores contextuais que facilitam a reincidência
Convívio com parceiros agressores sexuais e desajustados
Consumo de álcool e de outras substâncias
Avaliação rigorosa dos fatores de risco dinâmicos
Busca por sensações e/ou novidades
Ciclo viciante de ofensa sexual
A diferenciação entre mulheres envolvidas em promoção da prostituição infantil e aquelas com delitos de contato ou pornografia é crucial para evitar a aplicação de modelos generalizados, muitas vezes baseados em estudos sobre ofensores masculinos, que podem ser ineficazes ou mesmo inadequados para essa população.
Palavras Finais
O texto repisa a existência de mulheres que cometem crimes sexuais, mesmo que em número menor do que homens. A complexidade desses casos e a necessidade de uma abordagem terapêutica multifacetada deve ser prioridade. A maioria das mulheres agressoras revela um histórico de profunda vitimização, sugerindo muitas vezes um ciclo vicioso de ofensas sexuais e não sexuais. Sequelas psicológicas resultantes de ofensas sexuais na infância, tais como baixa autoestima, depressão e dependência química, colaboram para comportamentos extremamente perturbadores na vida adulta. A aplicação de diagnósticos, como Transtornos Parafílicos, requer cautela.
De qualquer forma, é essencial que os profissionais da saúde mental estejam sensíveis às necessidades específicas dessas mulheres, reconhecendo sua dupla condição de vítimas e agressoras, e adaptando as estratégias de tratamento para atender as suas necessidades únicas. Sem essa compreensão, a capacidade de interromper o ciclo de abuso e promover a Justiça para as vítimas permanecerá sempre prejudicada.
Esquema para melhor compreensão do texto:
Referências Berner, W., Briken, Peer, & Hill, A. (2009) Female Sexual Offenders. In: Saleh, F.M., Grudzinskas, A.J., Bradford, J.M., & Brodsky, D.J. Sex Offenders: Identification, Risk Assessment, Treatment and Legal Issues. New York: Oxford University Press. p.: 276-285. Cortoni, F., & Gannon, T. A. (2013). What works with female sexual offenders. In L. Craig, L. Dixon, & T. A. Gannon (Eds.), What works in offender rehabilitation: An evidence-based approach to assessment and treatment (pp. 271–284). Chichester, UK: Wiley-Blackwell. Cortoni, F., Hanson, R. K., & Coache, M.-È. (2010). The recidivism rates of female sexual offenders: Are they low? A meta-analysis. Sexual Abuse: A Journal of Research and Treatment, 22(4), 387–401. Mathews, J. K., Mathews, R., & Spelz, K. (1991). Female sexual offenders: A typology. In: Patton, M. Q. Family sexual abuse: Frontline research and evaluation. Thousand Oaks: Saga Publications. p.: 199–219. Sandler, J. C., & Freeman, N. J. (2009). Female sex offender recidivism: A large-scale empirical analysis. Sexual Abuse: A Journal of Research and Treatment, 21(4), 455–473.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC durante 26 anos. Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC por 20 anos, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) durante 18 anos e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex) durante 22 anos. Tem correntemente experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.