XVII Congresso Gaúcho de Psiquiatria: Desafios Éticos e Midiáticos no Manejo do Transtorno Pedofílico

O manejo do transtorno pedofílico, uma condição psiquiátrica caracterizada por fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais intensos e recorrentes envolvendo crianças pré-púberes, apresenta desafios éticos e midiáticos complexos que demandam uma abordagem cuidadosa e informada. A pedofilia, classificada como uma parafilia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na Classificação Internacional de Doenças (CID-11), não é sinônimo de abuso sexual infantil, embora a confusão entre esses conceitos seja frequente, especialmente na mídia. Essa desinformação, aliada à falta de compreensão pública sobre a natureza médica do transtorno, intensifica o estigma, prejudica o tratamento adequado e levanta questões éticas delicadas para profissionais da saúde, do direito e do jornalismo. Esta mesa redonda explorará os principais desafios éticos no tratamento da pedofilia e os problemas associados à cobertura midiática, destacando a necessidade de uma abordagem baseada em evidências científicas e princípios éticos para promover o bem-estar dos pacientes e da sociedade.

Um dos principais desafios éticos no manejo clínico do transtorno pedofílico reside na tensão entre o dever de tratar o paciente e a responsabilidade de proteger a sociedade. Profissionais da saúde mental, como psiquiatras e psicólogos, enfrentam um duplo papel: oferecer tratamento especializado que vise à redução de comportamentos sexualmente inadequados e, ao mesmo tempo, garantir que potenciais vítimas sejam protegidos. Essa dualidade gera conflitos éticos, especialmente em relação à confidencialidade. No Brasil, conforme estipulado pela Lei de Contravenções Penais e pela Consulta n. 51.676/2003 do Conselho Regional de Medicina (São Paulo), crimes anteriores ao início do tratamento não precisam ser denunciados, preservando o sigilo médico-paciente. No entanto, se houver risco iminente de agressão sexual ou se um crime ocorrer durante o tratamento, o profissional pode ser obrigado a reportar às autoridades, o que levanta questionamentos sobre os limites da confidencialidade. Para mitigar esse conflito, estratégias como ajustes na medicação, mudanças na abordagem terapêutica, internação ou envolvimento de familiares podem ser adotadas antes de uma denúncia, respeitando tanto o dever de cuidado quanto a proteção social.

Outro aspecto ético crucial é a garantia do consentimento informado no tratamento. Pacientes com pedofilia devem ter a capacidade de compreender os riscos e benefícios das intervenções propostas, que podem incluir terapias cognitivo-comportamentais, tratamentos farmacológicos com inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) ou mesmo medicações antagonistas da ação da testosterona. A avaliação da capacidade de consentir exige entrevistas psiquiátricas e psicológicas detalhadas, muitas vezes complementadas por testes psicométricos, para assegurar que o paciente possa exercer sua autonomia de forma livre e sem coerção. Esse processo é essencial para respeitar a dignidade do paciente e evitar práticas que possam ser percebidas como violadoras dos direitos humanos, como o uso indevido de tratamentos hormonais, frequentemente rotulados de forma equivocada pela mídia como “castração química”. Esse termo, carregado de conotações pejorativas, sugere um procedimento punitivo e irreversível, quando, na verdade, o tratamento hormonal, quando indicado, é administrado em doses controladas, por períodos limitados, sob monitoramento rigoroso, com o objetivo de reduzir fantasias e impulsos sexuais desviados sem comprometer a saúde geral do paciente.

A complexidade do transtorno pedofílico também reside em sua heterogeneidade. Nem todos os agressores sexuais de crianças são pedófilos, e nem todos os indivíduos com pedofilia cometem atos criminosos. Estudos indicam que apenas cerca de 20% a 40% dos molestadores de crianças condenados preenchem critérios diagnósticos para pedofilia, o que reforça a necessidade de avaliações especializadas para distinguir entre comportamentos oportunistas e transtornos psiquiátricos.

A pedofilia está frequentemente associada a comorbidades, como transtornos depressivos, ansiosos, de personalidade ou abuso de substâncias, o que exige um manejo clínico multidisciplinar. A falta de programas de tratamento específicos no Brasil, somada à escassez de profissionais capacitados, agrava o problema, deixando muitos agressores sem suporte adequado, especialmente em contextos penitenciários. A ausência de individualização no manejo, tanto dentro quanto fora das prisões, contraria diretrizes éticas internacionais, como as da Associação Internacional para o Tratamento de Agressores Sexuais (IATSO), que defendem o acesso ao tratamento como um direito humano básico e a necessidade de abordagens baseadas em evidências para reduzir a reincidência.

Do ponto de vista midiático, a cobertura de casos de abuso sexual infantil frequentemente contribui para a desinformação e o estigma. A mídia brasileira, em muitos casos, utiliza o termo “pedofilia” de forma indiscriminada, rotulando todos os agressores sexuais de crianças como pedófilos, sem considerar a distinção entre o transtorno psiquiátrico e o ato criminoso. Essa generalização, observada em manchetes sensacionalistas de diferentes veículos de comunicação, reforça preconceitos e dificulta a busca por tratamento por parte daqueles que padecem do transtorno, que temem a exposição e a discriminação. Reportagens que priorizam o apelo emocional, com títulos como “Homem é preso por suspeita de pedofilia” ou “Pedófilos serão castigados com mais rigor”, frequentemente ignoram a complexidade médica do tema, tratando a pedofilia como sinônimo de crime, o que contraria o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, que enfatiza a veracidade e a defesa dos direitos humanos.

Essa abordagem sensacionalista não apenas perpetua estigmas, mas também desincentiva a reflexão pública sobre a pedofilia como uma condição médica tratável, dificultando a implementação de políticas públicas voltadas para a prevenção e o tratamento.

A estigmatização da pedofilia como uma “doença incurável” ou como mera “safadeza”, como sugerido em algumas matérias jornalísticas, reflete uma visão simplista que ignora evidências científicas. Estudos apontam que a pedofilia tem bases neurobiológicas, com alterações em neurotransmissores, hormônios e estruturas cerebrais, como menor volume de substância cinzenta em regiões fronto-estriatais e anormalidades na amígdala (cerebral). Embora sua etiologia não esteja completamente elucidada, fatores como traumas na infância, negligência e predisposições genéticas podem contribuir para o seu desenvolvimento. A cobertura midiática, ao negligenciar esses aspectos, reforça a ideia de que a punição é a única solução, desconsiderando que o tratamento, quando bem conduzido, pode reduzir significativamente o risco de reincidência e melhorar a qualidade de vida do paciente. A IATSO, por exemplo, destaca que a punição isolada é insuficiente e que o tratamento deve ser acessível, promovendo a redução de comportamentos desviados.

Os desafios éticos e midiáticos no manejo do transtorno pedofílico demandam uma mudança de paradigma. Profissionais da saúde devem atuar com base em evidências científicas, respeitando a autonomia do paciente e equilibrando a proteção da sociedade com o dever de cuidado. A mídia, por sua vez, precisa adotar uma abordagem responsável, evitando sensacionalismo e promovendo informações precisas que diferenciem o transtorno do crime, contribuindo para a desestigmatização e para a conscientização sobre a importância do tratamento. Somente com uma abordagem integrada, que combine ciência, ética e comunicação responsável, será possível enfrentar esse problema de forma eficaz, respeitando a dignidade humana e promovendo a segurança social.

 

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