Por Isadora Rupp – 26 de maio de 2024(atualizado 26/05/2024 às 19h33)
Projeto aprovado na Comissão de Constituição e Justiça autoriza tratamento para condenados por crimes sexuais e altera Lei de Execução Penal. Pesquisadores avaliam a proposta ao ‘Nexo’
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou na quarta-feira (22) um projeto de lei que autoriza o tratamento químico hormonal – conhecido como “castração química” – para condenados por mais de uma vez por crimes como estupro, violação sexual mediante fraude ou estupro de vulnerável.
75,8% dos casos de estupro notificados Brasil são de menores de 14 anos, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo o autor do projeto, o senador Styvenson Valentim (Podemos-RN), a medida é uma “opção para a diminuição de crimes sexuais, que é altíssima no nosso país”.
Caso não haja recurso para que passe pelo plenário do Senado, o texto segue para análise na Câmara dos Deputados, e passa, obrigatoriamente, pela CCJ da Câmara, onde pode ser aprovado em caráter terminativo (com 34 dos 66 deputados da comissão). Depois, o texto seguiria para sanção – ou veto – presidencial.
Neste texto, o Nexo explica como funciona o tratamento aprovado pela CCJ e analisa com pesquisadores quais são as medidas e os limites legais, éticos e políticos da proposta.
O que diz a proposta
O PL 3.127/2019 autoriza que o condenado mais de uma vez por crimes de estupro, violação sexual mediante fraude ou estupro de vulnerável (menor de 14 anos) se submeta a um tratamento que o projeto chama de “químico hormonal de contenção de libido”, desde que aceite de forma voluntária.
A proposta, que não foi debatida em audiências públicas, foi aprovada na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado na quarta-feira (22).
O procedimento seria realizado em hospital de custódia. A adesão pelo preso não reduz a pena, mas possibilita que ela seja cumprida em liberdade condicional durante o tratamento. A saída seria permitida após uma comissão médica confirmar o início dos efeitos do tratamento. O texto propõe que o tratamento tenha uma duração mínima igual ao dobro da pena prevista.
O projeto também altera a Lei de Execução Penal para regulamentar a atuação da Comissão Técnica de Classificação. Essa comissão é a responsável por individualizar a execução penal de acordo com os antecedentes e a personalidade dos condenados, e vai especificar os requisitos e o prazo da liberdade condicional para os detentos que optarem pelo tratamento.
As inspirações do projeto
Em sua justificativa, o senador Styvenson Valentim argumenta que vários países utilizam esse mecanismo, como Coreia do Sul, Canadá, Suécia, Rússia e Dinamarca, além de diversos estados dos Estados Unidos.
A base usada pelo senador é a lei californiana. A Califórnia foi o primeiro estado dos EUA a introduzir no Código Penal, em 1996, a castração química como forma de punição a agressores sexuais. No estado americano, porém, o tratamento é permitido com consentimento do preso já na primeira condenação, mas torna-se obrigatório em caso de reincidência.
Segundo o médico psiquiatra Danilo Baltieri, coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC, o projeto brasileiro lembra propostas presentes em cerca de vinte estados americanos, os SVPs (Sexually, Violent, Predator Laws).
A diferença, de acordo com Baltieri, é que o projeto que passou na CCJ deixa de fora um critério importante: a presença de um transtorno mental que demande essa forma de tratamento mais incisivo, como o transtorno mental parafílico, ou transtorno de personalidade grave.
“Parece que esse terceiro critério [do transtorno mental] fica implícito quando o senador diz que quem vai decidir o tipo de tratamento a ser feito é a comissão técnica de classificação. Eu deixaria esse critério claro. Se o apenado não tiver nenhum transtorno mental que justifique o uso de determinada medicação, não vai adiantar nada. Se focar na população de agressores que não têm nada, o erro será feio”, disse ao Nexo.
Como funciona o tratamento
Na área médica, o nome oficial da “castração química” chama-se terapia antagonista da ação da testosterona. De acordo com Baltieri, que é pesquisador e trata de pacientes com transtornos sexuais parafílicos há mais de vinte anos, esse tipo de terapia é reservada para uma parcela muito pequena de agressores sexuais, cerca de 10% do conjunto de agressores.
O tratamento hormonal existe desde nos anos 1970, a partir de uma pesquisa realizada dentro da Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Ao longo das décadas, as medicações hormonais mudaram: já foram usadas substâncias como medroxiprogesterona e agonistas de GnRH (hormônio liberador de gonadotrofina), administradas de forma injetável.
Segundo explicou ao Nexo o médico urologista Fernando Facio, coordenador do departamento de andrologia, reprodução e sexualidade da Sociedade Brasileira de Urologia, esses hormônios promovem uma deprivação androgênica para reduzir os níveis de testosterona, cujo um dos efeitos é a redução da libido. Essa forma é a mesma utilizada, de maneira temporária, para pacientes com câncer de próstata.
De acordo com o psiquiatra Danilo Baltieri, atualmente os médicos têm usado a finasterida (remédio para tratar calvície) associado com antidepressivos e psicoterapia para tratar transtornos parafílicos, e não propriamente medicações consideradas mais antiquadas, como a medroxiprogesterona. “O tratamento hormonal não é uma panaceia. Se o projeto colocasse, entre as opções, o tratamento hormonal, seria melhor”, afirmou.
A eficácia médica – e os custos
Para o psiquiatra Danilo Baltieri, o tratamento, como argumenta o senador Styvenson Valentin, pode reduzir os crimes sexuais no Brasil. Desde que sejam aplicados os critérios de: voluntariedade, reincidência e a presença de transtorno mental, como o transtorno parafílico ou sádico-sexual.
Segundo as pesquisas de Baltieri, com análise de prisões dos Estados Unidos e do Canadá, cerca de 40% dos apenados que cometeram crimes sexuais contra crianças têm um transtorno mental que necessita de tratamento médico.
Em sua análise, a proposta brasileira pode ser uma medida interessante se for lida como uma atenção para essa população de criminosos reincidentes, e não como forma de punição. “Senão eu estaria falando muito mal do projeto”, afirmou.
O psiquiatra afirma que há bons resultados em países que adotam o tratamento – seja hormonal ou com medicações associadas com antidepressivos e psicoterapia – desde que realizado de maneira crônica, sem um tempo determinado para acabar.
“Se o cara tem um transtorno parafílico ou de personalidade, isso não vai acabar em um ano ou dois. Nos estados americanos, o tratamento vai até quando a equipe médica julgar necessário”, disse Baltieri.
Os medicamentos hormonais têm um custo alto, em torno de R$ 3.000, e precisam ser aplicados a cada três meses em média. Os remédios, além do conjunto de profissionais que o tratamento demandaria, como psicólogos, geraria mais custos ao sistema carcerário.
“O projeto implica em um maior investimento dentro dos presídios, vai ter que gastar mais”, afirmou Baltieri. O senador não traz em seu projeto de lei uma estimativa de custos com a medida.
As críticas e lacunas
Embora o projeto de lei traga como critério a adesão voluntária por parte do preso, há risco às pessoas privadas de liberdade, disse ao Nexo a advogada Melina Fachin, pós-doutora em democracia e direitos humanos pela Universidade de Coimbra.
“A implementação de tratamentos hormonais obrigatórios, ainda que com o consentimento do preso, pode ser vista como uma forma de coerção, especialmente em um contexto onde a alternativa é continuar encarcerado. Isso levanta questões sobre a real voluntariedade do consentimento”, afirmou Fachin.
A liberdade condicional, segundo a advogada, pode mascarar uma forma de coerção, mesmo que seja lida como uma vantagem em um primeiro momento. “Em um contexto onde a alternativa é continuar encarcerado, o consentimento do preso para o tratamento hormonal pode não ser verdadeiramente voluntário, mas sim uma escolha forçada pela circunstância”.
O projeto, diz Fachin, ataca apenas um aspecto do problema da violência sexual, com foco em reincidentes e no controle da libido ao invés de abordar causas subjacentes, como a cultura da violência e da falta de consentimento.
“A maioria dos crimes sexuais no Brasil são cometidos dentro de casa por conhecidos ou familiares, o que sugere a necessidade de programas robustos de prevenção e educação. O projeto não parece oferecer medidas diretas para apoiar as vítimas de crimes sexuais, que é uma parte crucial para combater o problema”, afirmou Fachin.
Os ganhos políticos
Propostas como a do senador Styvenson Valentim não são novidade no Congresso brasileiro. O tema costuma voltar à baila quando ocorrem casos de estupro ou de violência sexual com grande repercussão, como o de uma jovem que foi vítima de estupro coletivo no Rio de Janeiro, em 2016.
Em 2013, um projeto de lei apresentado pelo então deputado federal Jair Bolsonaro (PL) na Câmara dos Deputados também propunha o tratamento. O ex-presidente da República defendeu a “castração química” em sua campanha eleitoral para a presidência em 2018 e durante o seu mandato, em postagens nas redes sociais.
“Há temas com certo apelo demagógico, e esse me parece um deles. Há certos grupos de parlamentares que têm interesse em fazer com que esse negócio entre na discussão, por que eles se promovem em cima disso. É uma demagogia e uma forma de apelar ao eleitorado que entende que uma das formas de punição são essas draconianas de lidar com o crime para resolvê-los”, afirmou ao Nexo o cientista político Cláudio Couto, professor da FGV São Paulo e produtor no canal do YouTube “Fora da Política Não Há Salvação”.
Segundo Couto, o fato de a proposta sempre aparecer no Congresso e nunca andar significa uma resistência por parte do legislativo, que percebe que a proposta teria uma implementação complexa. “É algo problemático para ser transformado em política de Estado. Por isso a coisa vai e nunca aprova”, disse.
Atendimento – Consultório
Telefone: 0 XX 11 3120-6896
E-mail: [email protected]
Endereço: Avenida Angélica, 2100. Conjunto 13
Condomínio Edifício da Sabedoria
CEP: 01228-200, Consolação – São Paulo

Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC durante 26 anos. Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC por 20 anos, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) durante 18 anos e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex) durante 22 anos. Tem correntemente experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.