Muitas esposas (parceiras) de dependentes químicos acabam por desenvolver notáveis sintomas psíquicos que perturbam gravemente a própria qualidade de vida
E-mail enviado por uma leitora:
“Bom dia, tudo bem? Busco orientação de alguma maneira. Olhando um texto seu aqui no Vya Estelar, identifiquei-me com o que vivo hoje. Me casei há quase um ano e meio. Dois meses antes de nos casarmos, meu marido me falou que foi usuário de drogas. Em nossa conversa, ele falou que foram dois anos internado, e já são cinco anos limpos. No entanto, no ano passado e nessa semana, ele simplesmente sumiu: desligou o celular e passou a noite fora. Ele é uma pessoa maravilhosa, com um grande coração. Na infância, foi abusado várias vezes e foi abandonado por sua mãe. São diversos traumas que ele não consegue verbalizar. Eu como esposa quero ajudar, quero apoiar; porém, estou sem direção, pois não sei se ficar em silêncio ajuda e se posso chorar na frente dele. Não sei o que fazer! Pedi ajuda de todos os familiares e pedi para não julgarem e sim para tentar ajudar de alguma maneira. Ele marcou um psicólogo e espero que isso ajude. Você, que é especialista no caso, se tiver algo que possa me falar para abrir a minha mente ou se der algum tipo de palestra, me informe por favor! Obrigada desde já!”
Resposta:
Frequentemente, esposas de parceiros com quadros de dependência química demonstram significativo sofrimento acerca do comportamento do dependente químico, não poupando esforços no sentido de auxiliá-lo. Não estar sozinha nessa empreitada é um aspecto importante, tendo em vista o alto custo emocional que a jornada na busca pela recuperação do dependente químico e de si mesma pode representar.
Muitas esposas (parceiras) de dependentes químicos acabam por desenvolver notáveis sintomas psíquicos que perturbam gravemente a própria qualidade de vida, a do casal e a dos filhos.
Abaixo, aponto algumas características típicas de parceiros de dependentes químicos:
a) a parceira desempenha enormes esforços e sacrifícios para preencher as necessidades dos dependentes;
b) a parceira tem dificuldades para impor limites ao dependente ou mesmo para dizer “não” diante das demandas dele;
c) a parceira “encobre” problemas profissionais, legais e familiares gerados pelo comportamento do dependente químico, com a finalidade de não prejudicá-lo ou mesmo de não causar vergonha diante dos familiares e amigos próximos;
d) a parceira demonstra elevada preocupação com as opiniões de terceiros;
e) a parceira não mostra o quanto está infeliz, angustiada, magoada e preocupada para o próprio parceiro dependente químico nem tampouco para os demais membros familiares;
f) a parceira percebe que não consegue modificar o comportamento e atitudes do esposo dependente e, consequentemente, sente-se impotente;
g) a parceira desempenha diferentes atos no sentido de auxiliar o parceiro dependente, inclusive deixando de cuidar adequadamente de si mesma e dos seus filhos.
Geralmente, a parceira não dependente inicia o processo conhecido como codependência estabelecendo um sistema de crenças nocivo. Esse indivíduo pode então avaliar de forma distorcida seu próprio comportamento, suas necessidades, sua história e seus relacionamentos pretéritos.
A partir de então, desenvolve pensamentos que distorcem a realidade e amparam o comportamento do parceiro dependente. Por exemplo, sempre fui pouco desejável; logo, é melhor permanecer nessa forma atual do que em uma outra. Ou mesmo: minha mãe sempre manteve o relacionamento com meu pai, apesar dos seus problemas com o álcool; logo, tenho a mesma sina. Ou mesmo: ele é assim, porque sofreu muito na infância. Tenho a obrigação de ser convivente.
A mesma sensação de solidão e de perda do controle experimentada pelo dependente químico pode ser vivenciada pelo parceiro codependente.
Consequentemente, muitos codependentes manifestam:
- Perda de amigos;
- Tristeza e pensamentos de ruína;
- Sonhos não usuais;
- Mudanças de apetite e padrão do sono;
- Falha no desempenho de tarefas usuais;
- Problemas financeiros;
- Comportamentos degradantes ou humilhantes.
Em situações como estas, aliás nada incomuns, é recomendável e desejável que tanto o parceiro dependente quanto o parceiro codependente iniciem um tratamento específico.
Caso o parceiro dependente não o deseje, é fundamental que o companheiro não dependente químico (mas codependente) faça seu próprio tratamento. É essencial que os pensamentos disfuncionais sejam reconhecidos e comportamentos não saudáveis possam ser modificados.
Infelizmente, muitos codependentes acreditam que conseguem domar a situação por si mesmos ou com o auxílio de alguns familiares. No entanto, um ciclo de comportamentos problemáticos e desenfreados pode já estar ocorrendo há algum tempo e o reconhecimento disso, bem como seu manejo, pode ser bastante salutar.
Uma atitude recomendada para a parceira codependente é a busca por tratamento psiquiátrico especializado para si mesma. Muito amiúde, não basta que “ele tenha agendado um psicólogo”. Você tem que agendar a sua própria consulta, comparecer à consulta, e iniciar um tratamento sério e condizente com a sua situação.
Não aguarde soluções mágicas. Da mesma forma, não espere soluções provenientes apenas do tratamento dele (se ele realmente comparecer à consulta agendada). Comece por você e para você. Somente assim, fortalecida e com os instrumentos necessários, poderá tomar as decisões mais corretas para você e para a sua família. Corra!

Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC durante 26 anos. Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC por 20 anos, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) durante 18 anos e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex) durante 22 anos. Tem correntemente experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.