“Como é que faz, por exemplo, aquele que sabe se vingar e, de modo geral, defender-se? Quando o sentimento de vingança, suponhamos, se apodera dele, nada mais resta em seu espírito, a não ser este sentimento. Um cavalheiro desse tipo atira-se diretamente ao objetivo, como um touro enfurecido, de chifres abaixados, e somente um muro pode detê-lo.”
(Fiodor Dostoievski – Memórias do Subsolo)
Introdução
A motivação criminal, um dos temas centrais em Criminologia, refere-se aos fatores internos e externos que impulsionam indivíduos a cometer crimes (Akers, 2013). Não se trata de uma simples vontade ou impulso, mas de um processo complexo, influenciado por múltiplos fatores que interagem de forma dinâmica. Compreender esses fatores é crucial para a prevenção e controle do crime.
Diversas teorias buscam explicar a motivação criminal. Teorias biológicas, por exemplo, apontam para fatores genéticos e neurobiológicos como predisponentes à criminalidade (Raine, 2013). Já as teorias psicológicas enfatizam a influência de aspectos da personalidade e processos cognitivos distorcidos (Eysenck, 1997). As teorias sociológicas, por sua vez, destacam o papel do ambiente social, incluindo pobreza, desigualdade, desorganização social e influência de grupos (Sutherland & Cressey, 1978).
Compreender diferentes tipos de motivações criminais é essencial para ambos os processos de investigação policial quanto de classificação dos crimes. A motivação por trás de um crime pode variar amplamente, desde ganhos materiais até razões pessoais, sexuais ou ideológicas. Abaixo, são apresentados os principais tipos de motivações criminais, com base no Crime Classification Manual (CCM) do FBI (Federal Bureau of Investigation) (Douglas, J. E., Burgess, A. W., Burgess, A. G., & Ressler, 2015) que oferece um sistema padrão para investigar e classificar crimes ditos violentos.
Este manual apresenta uma classificação de crimes baseada na motivação primária do criminoso. Esta categorização ajuda a padronizar a terminologia, facilitar a comunicação entre diferentes áreas do sistema de justiça criminal e educar o público sobre os tipos de crimes cometidos. O manual divide os crimes em várias categorias principais, cada uma com subcategorias e características específicas.
Tipos de Motivações Criminais e suas Características
O sistema de classificação aqui embasado identifica as seguintes motivações primárias, cada qual com suas próprias características:
Motivação de “Empresa” Criminal: Os crimes desta categoria são cometidos em busca de ganho material, como dinheiro, bens, território ou favores. Os exemplos incluem assassinato por contrato, assassinatos motivados por gangues e homicídios relacionados ao crime organizado. Os crimes dessa categoria tendem a ser bem planejados e o criminoso frequentemente demonstra alta sofisticação. Dentro dessa categoria, encontram-se subcategorias como:
Assassinato por Contrato (Contract Murder): Ocorre quando um indivíduo é contratado para matar outra pessoa, geralmente sem qualquer relação pessoal com a vítima. O assassino é um “homem de aluguel” que age por dinheiro.
Assassinato Motivado por Gangues (Gang-Motivated Murder): Crimes cometidos por membros de gangues, geralmente relacionados a disputas por território, vingança ou manutenção do poder dentro da organização criminosa.
Assassinato por Competição Criminal (Criminal Competition): Ocorre quando criminosos eliminam rivais para controlar mercados ilegais, como tráfico de drogas ou contrabando.
Assassinato por Sequestro (Kidnap Murder): Quando o sequestro de uma pessoa resulta em sua morte, seja por acidente, negligência ou como parte de um plano premeditado.
Assassinato por Contaminação de Produtos (Product Tampering): Crimes em que produtos são adulterados para causar danos ou mortes, muitas vezes com o objetivo de extorsão ou para prejudicar uma empresa.
Assassinato Relacionado a Drogas (Drug Murder): Mortes que ocorrem no contexto do tráfico de drogas, seja por disputas entre traficantes, execuções de dívidas ou eliminação de testemunhas.
Assassinato por Seguro (Insurance-Related Death): Quando o criminoso mata para receber o pagamento de uma apólice de seguro, seja por motivos pessoais ou comerciais.
Assassinato durante a Prática de um Crime (Felony Murder): Ocorre quando uma morte acontece durante a execução de outro crime grave, como roubo ou sequestro.
2. Causa Pessoal: Esta categoria abrange crimes motivados por conflitos pessoais, raiva ou vingança, geralmente envolvendo pessoas com um relacionamento pré-existente. As subcategorias podem incluir homicídios passionais, homicídios por erotomania (obsessão romântica idealizada), homicídios por vingança, homicídios por questões de honra e assassinatos não especificados. Estes crimes podem ou não ser bem planejados, e o nível de violência pode variar amplamente. As subcategorias incluem:
Assassinato por Erotomania (Erotomania-Motivated Murder): Quando o criminoso mata alguém devido a uma obsessão romântica ou sexual não correspondida.
Assassinato Doméstico (Domestic Homicide): Crimes cometidos dentro do ambiente familiar, como o assassinato de um cônjuge, filho ou parente. Pode ser espontâneo ou planejado.
Assassinato por Discussão/Conflito (Argument/Conflict Murder): Ocorre quando uma discussão ou conflito pessoal escalona para um ato violento resultando em morte.
Assassinato por Autoridade (Authority Murder): Quando o criminoso mata alguém que representa uma figura de autoridade, como um policial, juiz ou professor.
Assassinato por Vingança (Revenge): Crimes cometidos com o objetivo de se vingar de uma pessoa ou grupo por uma ofensa real ou percebida.
Assassinato sem Motivo Específico (Nonspecific Motive Murder): Quando o criminoso não tem um motivo claro ou específico para cometer o crime.
Assassinato Extremista (Extremist Homicide): Crimes cometidos por motivos políticos, religiosos ou socioeconômicos, muitas vezes com o objetivo de promover uma causa ou ideologia.
Assassinato por “Misericórdia” ou “Herói” (“Mercy/Hero” Homicide): Quando o criminoso acredita que está agindo por compaixão (por exemplo, eutanásia) ou para se tornar um herói (por exemplo, matar alguém para salvar outros).
Assassinato de Refém (Hostage Murder): Quando um refém é morto durante um sequestro ou situação de crise.
3. Intenção Sexual: Essa categoria inclui crimes nos quais um elemento sexual é fundamental para o ato. A classificação é subdividida em homicídios sexuais organizados (planejamentos cuidadosos, controle meticuloso da cena do crime) e homicídios sexuais desorganizados (atos impulsivos, cenas do crime desordenadas). A motivação em crimes de intenção sexual frequentemente envolve fantasias sexuais, domínio sobre a vítima, e, em alguns casos, sadismo sexual. As subcategorias incluem:
Assassinato Sexual Organizado (Organized Sexual Homicide): Crimes planejados e executados de forma meticulosa, com o criminoso demonstrando controle sobre a vítima e o cenário do crime.
Assassinato Sexual Desorganizado (Disorganized Sexual Homicide): Crimes cometidos de forma impulsiva, com pouca ou nenhuma planejamento, muitas vezes deixando um cenário caótico.
Assassinato Sexual Misto (Mixed Sexual Homicide): Quando o crime apresenta características tanto organizadas quanto desorganizadas.
Assassinato Sádico (Sadistic Murder): Crimes em que o criminoso sente prazer em infligir dor e sofrimento à vítima, muitas vezes com elementos de tortura.
Assassinato Sexual de Mulheres Idosas (Elder Female Sexual Homicide): Crimes sexuais que têm como alvo mulheres idosas, muitas vezes envolvendo violência extrema.
4. Causa de Grupo: Este tipo de homicídio é cometido por duas ou mais pessoas com uma ideologia comum que sanciona o ato. Embora os crimes motivados por gangues e crimes extremistas possam cair sob essa categoria, os casos são analisados com base na motivação principal. Os exemplos de subcategorias incluem crimes cultuais (motivados pelas crenças ou práticas de um culto), crimes religiosos (motivados pela fé ou doutrinas religiosas) e crimes extremistas (motivados por ideologias políticas ou socioeconômicas). Estes crimes podem envolver alta premeditação e sofisticação, ou podem ser impulsivos e desorganizados, dependendo das crenças e dinâmicas do grupo. As subcategorias incluem:
Assassinato por Culto (Cult Murder): Crimes cometidos por membros de seitas ou cultos, muitas vezes como parte de rituais ou para promover a ideologia do grupo.
Assassinato Extremista de Grupo (Group Extremist Homicide): Crimes cometidos por grupos com motivações políticas, religiosas ou socioeconômicas, como ataques terroristas.
Assassinato por Excitação de Grupo (Group Excitement): Crimes cometidos por grupos que buscam emoção ou adrenalina, muitas vezes resultando em violência coletiva.
5.Crimes não Letais: Esta categoria inclui crimes que não resultam em morte ou ferimentos graves, mas que ainda podem ter consequências graves para a vítima. Inclui ameaças (por meio de comunicação escrita, verbal ou não-verbal), perseguição, assalto e agressão. A motivação nestes crimes pode variar amplamente, desde a intenção de assustar ou humilhar a vítima até a tentativa de extorquir dinheiro.
Exemplo Recente (fevereiro/2025)
Recentemente, na cidade de São Paulo, crimes ditos de “roubo” têm repetidamente se destacado pelo homicídio da vítima antes mesmo da obtenção ou tentativa de obtenção do objeto de valor desejado. Isso tem levantado à suspeita de que o objeto primário do ato criminoso é o homicídio e não o suposto roubo de celulares, por exemplo, de civis.
Considerando a classificação apresentada no livro “Crime Classification Manual”, atos não isolados de homicídio de civis para depois roubar-lhes dinheiro ou celular, cairiam, provavelmente, na categoria Felony Murder, mais especificamente na subcategoria Indiscriminate Felony Murder.
A razão para essa classificação é que o homicídio é cometido durante a prática de um crime (roubo), sem que haja uma vítima específica pré-determinada. O ato de matar é uma consequência direta, embora não planejada, do roubo. O assassino não tem intenção de matar a vítima, mas o faz para garantir o sucesso do roubo e evitar ser identificado ou preso. A repetição sugere um padrão, não um ato isolado e impulsivo.
Sob uma outra perspectiva, poderia também ser considerado como um crime de “Empresa” Criminal caso o homicídio faça parte de uma operação maior, visando a um ganho financeiro em larga escala e não somente o dinheiro ou celular da vítima. Para determinar qual subcategoria seria a mais adequada, é necessário levar em conta o contexto completo do crime e as evidências encontradas. Muitas vezes, para fazer valer o posicionamento de facções criminosas junto a setores políticos e de controle social, nada mais chamativo e amedrontador do que envolver a população geral.
Questionário para avaliar as Motivações Criminais
Este questionário busca avaliar diferentes tipos de motivação criminal. Lembre-se que este questionário serve como ferramenta auxiliar e não substitui a avaliação profissional de especialistas em criminologia e em psiquiatria. As respostas devem ser usadas com cautela e em conjunto com outras informações relevantes para uma avaliação completa.
Dados Gerais
Data do crime
Local do crime
Número de vítimas
Relação entre o(s) ofensor(es) e a(s) vítima(s): (estranhos, conhecidos, familiares etc.)
Sexo do(s) ofensor(es)
Sexo da(s) vítima(s)
Idade do(s) ofensor(es)
Idade da(s) vítima(s)
Etnia do(s) ofensor(es)
Etnia da(s) vítima(s)
Ocorrência de violência além do homicídio (por exemplo: estupro, tortura, roubo etc.)
Motivacional
Objetivo principal do crime: Ganho financeiro (roubo, extorsão), vingança, satisfação sexual, ideologia (religiosa, política), impulso, demonstração de poder, outros. Especifique:
Ganho financeiro: Houve tentativa de ganho financeiro? Em caso afirmativo, detalhe o tipo de ganho.
Vingança: O crime foi motivado por vingança? Se sim, por quê? Quem foi o alvo da vingança?
Satisfação sexual: Houve qualquer ato sexual envolvido no crime? Detalhe.
Ideologia: O crime foi motivado por ideologias religiosas, políticas ou socioeconômicas? Se sim, descreva.
Impulso: O crime foi impulsivo ou planejado? Detalhe o planejamento, caso exista.
Demonstração de poder: O crime foi motivado por uma vontade de demonstrar poder ou controle? Como?
Outros Motivos: Existem outros motivos que não foram mencionados acima? Quais?
Características do Crime
Planejamento: O crime foi planejado? Detalhe.
Local: O crime ocorreu em local público ou privado? Qual?
Arma(s) utilizada(s): Descreva a(s) arma(s) usada(s). As armas eram próprias do ofensor ou de oportunidade?
Evidências deixadas no local do crime: Quais?
Tentativa de ocultação da cena do crime/da vítima: Houve alguma tentativa de ocultar a cena do crime ou o corpo da vítima? Se sim, descreva.
Excesso de violência (overkill): Houve mais violência do que o necessário para a realização do ato? Se sim, descreva.
Mutilação: Houve alguma mutilação do corpo da vítima? Se sim, descreva.
Ritualismo: O crime apresenta qualquer ritualismo ou comportamento bizarro? Detalhe.
Co-ofensores: O crime foi praticado por mais de uma pessoa? Se sim, descreva as relações entre eles e suas contribuições para o ato.
Observações
Após responder às perguntas, analisar os padrões para determinar qual motivação parece ser a mais proeminente. Considerar que o criminoso pode ter múltiplas motivações, e a classificação é baseada na motivação principal.
Informações adicionais, como declarações de testemunhas e relatórios policiais, são cruciais para complementar as respostas deste questionário e chegar a uma análise mais completa.
Este questionário proporciona um ponto de partida para a avaliação da motivação criminal. É importante lembrar que a avaliação precisa de crimes violentos requer análise aprofundada e experiência profissional.
Considerações Investigativas
O manual do FBI destaca a importância de considerar uma ampla gama de fatores durante a investigação de um crime, incluindo a vitimologia, as características do local do crime e as evidências forenses. O sucesso em vincular casos e identificar suspeitos depende frequentemente da capacidade de detectar padrões de comportamento e motivação do criminoso, seja ele individual ou parte de um grupo.
Palavras Finais
É importante ressaltar que a motivação criminal raramente é unidimensional. Um mesmo crime pode ser resultado da interação de diferentes fatores motivacionais. A investigação criminal precisa considerar a complexidade deste processo, utilizando uma abordagem interdisciplinar que incorpore perspectivas biológicas, psicológicas e sociológicas para uma compreensão mais completa do fenômeno.
Referências Akers, R. L. (2013). Criminology: Theories, patterns, and typologies. Oxford: Oxford University Press. Douglas, J. E., Burgess, A. W., Burgess, A. G., & Ressler, R. K. (Eds.). (2013). Crime Classification Manual: A Standard System for Investigating and Classifying Violent Crimes (3rd ed.). Hoboken: Wiley. Eysenck, H. J. (1997). Personality and crime: An interactionist perspective. New York: Springer Press. Raine, A. (2013). The anatomy of violence: The biological roots of crime. Oxford: Oxford University Press. Sutherland, E. H., & Cressey, D. R. (1978). Criminology. London: Lippincott.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC durante 26 anos. Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC por 20 anos, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) durante 18 anos e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex) durante 22 anos. Tem correntemente experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.