Cultivo de cannabis para fins medicinais e industriais: projeto aprovado pela Câmara dos Deputados visa liberar o cultivo por empresas. A medida ocorreu no dia 08 de junho de 2021
Apesar desta aprovação preliminar feita pela Câmara, os deputados contrários ao projeto entrarão com recurso tentando evitar a tramitação pelo Senado Federal. Em suma, o projeto prevê os seguintes itens:
a) Fica aprovado o cultivo da cannabis em todo o território nacional por pessoa jurídica autorizada pelo poder público;
b) Deverá haver cota de cultivo, dependendo da demanda já contratada;
c) Rigorosa rastreabilidade da produção, desde a aquisição da semente até o processamento final;
d) Plano de segurança, objetivando evitar desvios (videomonitoramento em todos os pontos de entrada; instalações protegidas com muros, telas ou alambrados; estruturas de cultivo protegidas com cerca elétrica e muros altos a fim de evitar invasões).
Cultivo de cannabis para fins medicinais
A discussão a respeito desta aprovação preliminar do cultivo das plantas do gênero Cannabis no Brasil transcende em muito o campo da Medicina, tendo o imperativo de recorrer a outras ciências, tais como a Criminologia, a Engenharia Agrícola, as Políticas Criminais, o Meio Ambiente, dentre várias outras.
Podemos dizer que as medicações derivadas da Cannábis sativa ou Cannabis indica não são drogas de primeira escolha para o tratamento das diferentes doenças e transtornos médicos para os quais elas têm sido recomendadas. Comumente, tais medicações são aventadas após a constatação de que o dito problema médico é refratário aos tratamentos convencionais.
Dito isso, e sabendo que existem problemas refratários aos tratamentos convencionais, médicos precisam possuir um armamentarium farmacológico amplo e adequado para tratar ou mesmo amenizar o sofrimento dos seus pacientes. Já os pacientes, por sua vez, precisam ter acesso às medicações recomendadas pelos seus médicos a um custo acessível.
O derivado canabinoide conhecido como Canabidiol e mesmo a combinação Canabidiol com Tetraidrocanabinol (Mevatyl) estão disponíveis em redes de farmácias no Brasil e podem ser adquiridos pelos pacientes com prescrição médica controlada. Outrossim, os pacientes podem adquirir medicações derivadas dos canabinoides através de importadoras, desde que a solicitação tenha a aprovação individualizada pela ANVISA.
Cannabis para fins medicinais não é panaceia
Os derivados canabinoides não são uma panaceia. Todo médico deve estar bastante embasado cientificamente antes de prescrever tais medicações aos seus pacientes, sempre sobrepesando os riscos e benefícios.
O próprio FDA (Food and Drug Administration) fez alertas em relação aos derivados canabinoides (em especial ao Canabidiol), datadas de Maio/2020:
a) O derivado canabinoide THC (Tetrahidrocanabinol) produz efeitos psicotrópicos e pode conduzir o usuário ao abuso e à síndrome de dependência;
b) A maconha não é a mesma coisa que o Canabidiol. O Canabidiol é um único derivado da planta de gênero Cannabis (dentre mais de 480 outros derivados);
c) O FDA tem aprovado o Canabidiol para tratar formas raras e graves de problemas médicos, quando outras tentativas têm mostrado ineficácia;
d) É correntemente ilegal comercializar o Canabidiol taxando-o como um suplemento alimentar ou dietético;
e) O FDA tem visto ainda poucos dados sobre a real segurança terapêutica do Canabidiol e isso deve ser levado em consideração ao prescrever e/ou fazer uso da substância;
f) Infelizmente, alguns produtos derivados canabinoides têm sido comercializados sem comprovada eficácia e aprovação pelos órgãos reguladores. Portanto, os cuidados devem ser redobrados!!!
g) O Canabidiol tem potencial para causar efeitos adversos, como dano hepático, interação com outras medicações usadas pelo indivíduo, potencial para interferir com a fertilidade, sonolência, alteração no funcionamento digestivo, mudanças no humor e ansiedade.
Questões ainda não respondidas sobre o Canabidiol
Segundo o mesmo órgão fiscalizador e regulador, existem questões que ainda precisam ser respondidas, além de uma dúvida razoável:
- O que ocorre ao indivíduo que faz uso crônico de Canabidiol?
- Como diferentes modos de administração da substância afetam o curso dos sintomas das doenças?
- Como o Canabidiol afetará o desenvolvimento, maturação cerebral e as suas conexões sinápticas ao longo do uso em crianças?
- Quais são os efeitos do Canabidiol sobre o feto e recém-nascido?
- O Canabidiol realmente provoca efeitos deletérios sobre a fertilidade masculina, como tem sido observado em estudos com animais (ratos)?
Como mencionado, é essencial termos novas opções terapêuticas seguras e eficazes para o tratamento de diferentes doenças cujo controle é impérvio aos efeitos de medicações tradicionais ou mais convencionais. No entanto, devemos estar alerta aos efeitos indesejáveis das novas drogas. Devemos saber diferenciar o que é a boa ciência do que é a ciência “junk”. Devemos estar alerta aos interesses comerciais sobre a possibilidade da produção e venda indiscriminada das substâncias derivadas dos canabinoides.
Fazendas de cannabis
Alguns autores têm apontado alguns prós e contras quanto à existência de “fazendas de Cannábis”. Os principais ingredientes insalubres parecem ser o impacto sobre o meio ambiente, a diversificação do uso dos derivados canabinoides (ou seja, a coexistência da demanda para fins medicinais e/ou industriais com outras demandas não legalizadas), a exigência de rigorosa fiscalização sobre as ditas “fazendas de Cannabis”, o alto custo de todo processo de produção, dentre outras.
Em países como o Brasil, em que o uso recreativo da maconha é ilegal, devemos sempre sobrepesar os danos, os benefícios e a responsabilidade ao se legalizar as ditas “fazendas”. Os interesses comerciais não devem superar a avaliação rigorosa dos danos possíveis e, por vezes, inevitáveis considerando uma maior disponibilidade. A disponibilidade é a mãe do consumo.
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.