O canadibiol seria uma esperança para o tratamento dos transtornos neurocognitivos de origem traumática?
Resposta
Embora os benefícios terapêuticos dos derivados canabinoides tenham sido observados e reportados desde a metade do século XIX, notavelmente para o tratamento de alguns tipos de epilepsias e da dor neuropática crônica, muitas controvérsias e questionamentos sobre a qualidade e os aspectos metodológicos dos estudos científicos têm sido apontados, repisando a difícil tarefa de separar o “joio do trigo”.
400 derivados canabinoides
Como já tenho descrito várias vezes neste site Vya Estelar, existem propriedades terapêuticas nos mais de 400 derivados canabinoides; todavia, os canabinoides não devem ser vistos como uma panaceia, dado que outras medicações e fórmulas terapêuticas têm sido mais bem estudadas e aprovadas para uso e ainda hoje consideradas como primeira linha de atuação para várias doenças.
O sistema endocanabinoide (aquele que existe no nosso Sistema Nervoso e também fora do Sistema Nervoso) tem sido notado com grande entusiasmo desde a metade do século XX, e estudos científicos sobre o uso de substâncias que atuam neste sistema, tanto para o tratamento de doenças neurológicas quanto das relacionadas à dor crônica, têm proliferado no século XXI.
No presente momento, Nabiximols (Sativex Ò) é aprovado em mais de 30 países para o manejo clínico da espasticidade muscular associada com a Esclerose Múltipla. No Canadá, o SativexÒ é aprovado para o tratamento da dor crônica relacionada com o câncer e para o manejo da dor crônica entre portadores de Esclerose Múltipla.
Embora tentativas investigando efeitos de neuroproteção do derivado canabinoide Dexanabinol tenham falhado em um estudo realizado em 2006, os pesquisadores continuaram investigações procurando alguma associação entre o uso dos derivados canabinoides e a proteção contra a progressão de danos cerebrais causados por fatores exógenos ou mesmo endógenos. E a lista de doenças para as quais os preparados canabinoides têm sido testados não é pequena.
Abaixo, forneço uma pequena tabela (Tabela 01) sobre algumas condições neuropsiquiátricas e os derivados canabinoides já aprovados (em alguns países) ou ainda em fase de investigação para uso clínico (referência: Russo EB. (2018). Cannabis therapeutics and the future of Neurology. Front Integr Neurosci, 12: 51).
Derivados Canabinoides e força de evidência em certas condições neuropsiquiátricas
Condição Médica | Derivados Canabinoides | Nível de Evidência |
Espasticidade na Esclerose Múltipla | Nabiximols | Conclusivo |
Epilepsias (Síndromes de Dravet e de Lennoux-Gastaut) | Canabidiol (EpidiolexÒ) | Conclusivo |
Dor crônica | Nabiximols, Tetrahidrocanabinol (THC) | Evidências consistentes |
Esquizofrenia (sintomas positivos e negativos) | Canabidiol | Evidências consistentes |
Perturbação do sono secundária à doenças neurológicas | Nabilona, Nabiximols, Tetrahidrocanabinol | Evidências moderadas |
Glaucoma | Tetrahidrocanabinol | Evidências moderadas |
Síndrome de Tourette | Tetrahidrocanabinol | Evidências moderadas |
Demências com agitação psicomotora | Tetrahidrocanabinol | Evidências limitadas |
Sintomas na Doença de Parkinson | Tetrahidrocanabinol, Canabidiol | Evidências limitadas |
Transtornos do Estresse Pós-Traumático (TEPT) | Tetrahidrocanabinol | Evidências limitadas |
Ansiedade Social | Canabidiol | Evidências limitadas |
Algumas das propriedades observadas nos derivados canabinoides e procuradas pelos pesquisadores que se dedicam a separar o “joio do trigo” são:
a) os endocanabinoides tendem a mediar o limiar convulsivo;
b) os endocanabinoides têm efeito contra o crescimento de células malignas;
c) os fitoendocanabinoides parecem ter efeito sobre o sistema dopaminérgico, preservando as células produtoras desta neurosubstância;
d) os fitoendocanabinoides parecem reduzir o estresse oxidativo cerebral;
e) os fitoendocanabinoides têm atividade anti-inflamatória cerebral;
f) os fitoendocanabinoides diminuem a atividade cerebral glutamatérgica excessiva (atividade excitatória), impedindo a morte neuronal;
g) os fitoendocanabinoides promovem a vasodilatação moderada no sistema nervoso central, permitindo maior afluxo de nutrientes e oxigênio para as células.
Canabinoides para tratar “demência de pugilistas”
Os efeitos antioxidantes dos derivados canabinoides, principalmente no que concerne à redução da excitabilidade glutamatérgica, levantam a teoria sobre a sua habilidade para reduzir os danos progressivos às células cerebrais provocados pela chamada “encefalopatia traumática crônica” ou “demência dos pugilistas”. Observações clínicas têm notado os seguintes benefícios clínicos no uso dos derivados canabinoides entre os pugilistas:
a) redução da inquietação psicomotora;
b) redução da náusea e cefaleia;
c) melhora do padrão do sono;
d) melhora da tontura e/ou vertigem;
e) redução de sintomas psicóticos (alucinações e/ou delírios).
Danos em jogadores de futebol americano
Na verdade, uma grande parcela (alguns autores apontam uma cifra de mais de 80%) dos jogadores de futebol americano mostram danos cerebrais em diferentes regiões cerebrais (como é o caso do hipocampo, uma das principais estruturas cerebrais relacionada com a memória). Sintomas de alerta para uma “demência pugilística” devem ser prejuízo na recuperação da memória, mudanças no comportamento, problemas de atenção e de concentração, crises convulsivas. Uma parcela significativa daqueles que abraça esportes de combate pode apresentar tais sintomas progressivamente.
De fato, nos cérebros de indivíduos submetidos cronicamente a traumas cranianos esportivos, depósitos de proteínas (proteína tau) têm sido observados em áreas corticais cerebrais, com alguma semelhança ao que acontece nos casos da classicamente chamada “Demência de Alzheimer”, além, obviamente, de micro-infartos cerebrais, atrofia cerebral, sangramentos, aumento da pressão intracraniana, fraturas cranianas etc. Outrossim, tratamentos clínicos efetivos para este tipo de transtorno neurocognitivo são por demais escassos.
Tem sido constatado que os canabinoides representam uma oportunidade farmacológica para o tratamento de diversas mazelas médicas. No entanto, como já discorrido neste site Vya Estelar, precisamos pesar os riscos e os benefícios, sempre dentro de uma área razoável de segurança terapêutica.
Abordagens para esportistas
Abordagens para esportistas que demonstram problemas neurocognitivos possivelmente relacionados com as suas atividades físicas devem sempre incluir:
a) avaliação por equipe interdisciplinar altamente especializada;
b) atividades físicas aeróbicas;
c) mudança no estilo de vida (se o paciente tiver outras comorbidades ou mesmo história de problemas com o uso de substâncias psicoativas, o tratamento deve também focar os danos específicos);
d) dieta adequada, sempre orientada por nutricionista experiente.
Os derivados canabinoides têm surgido como uma opção terapêutica para diferentes condições médicas. No caso de prescrição para o tratamento de doenças para as quais tais derivados não são aprovados ou chancelados pelos órgãos de controle e de fiscalização, o embasamento científico pelo médico e o consentimento por escrito do próprio paciente e de familiares tornam-se imperativos.
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.