Transição para a aposentadoria pode ser encarada tanto de forma positiva como negativa
E-mail enviado por uma leitora
“Não consigo ajudar meu marido a deixar o alcoolismo. Quanto mais eu peço, mais ele bebe. A situação só se agrava. Ele aposentou em final de 2017 e a partir daí passa o dia bebendo. Não suporto mais essa situação. Agora, esconde senhas bancárias, seus proventos e senhas de celular. Quando peço a ele que procure um terapeuta, mais ele bebe. Trata-me mal e com palavras que magoam. Não dorme mais comigo, e não temos mais relações há quase seis anos. Somos casados há 38 anos. Por fim, vejo uma vida de sonhos e planos indo por água abaixo. Perdi o homem que amo para a bebida e, consequentemente, com isso, vieram as traições, doenças venéreas e eu não sei como cheguei até aqui. Preciso de uma palavra amiga.”
Resposta
O consumo nocivo e inadequado de bebidas alcoólicas é um dos principais problemas de saúde pública ao redor do mundo. Eventos sociais e vitais negativos, embora muitas vezes inevitáveis, como perda de emprego, divórcio, perdas de familiares próximos, e aposentadoria, são amiúde apontados como fatores de risco significativos para o consumo imoderado de álcool.
A aposentadoria é um momento de transição na vida de qualquer pessoa e pode ser encarada ou enfrentada de maneiras, as mais diversas possíveis, não apenas negativamente, mas também positivamente.
Os estudos sobre o início de problemas com o consumo de bebidas alcoólicas entre aposentados apresentam resultados conflitantes ao redor do mundo. Isso significa que algumas pesquisas envolvendo essa população demonstram um aumento na frequência do uso e na quantidade de bebidas entre aposentados; todavia, outros estudos não têm constatado essa modificação no padrão do consumo de etanol após o evento da aposentadoria. Parece que aqueles que têm sido aposentados de forma compulsória ou involuntária apresentariam um risco maior de envolvimento no consumo nocivo de bebidas.
Esses achados contrastantes gerados por diferentes estudos podem denotar a existência de diferentes grupos de pessoas (geralmente, pessoas com mais de 50/60 anos) com características e fatores de risco específicos.
Alguns estudos têm apontado que o grupo de aposentados constituídos por homens, fumantes, habitantes de grandes centros urbanos, portadores de sintomas depressivos, e já usuários regulares de bebidas alcoólicas, estariam em maior risco para desenvolver problemas com o uso de álcool após o evento da aposentadoria.
Embora o período pós-aposentadoria pudesse ser caracterizado por uma etapa da vida com menor estresse, mais tempo para o lazer e diferentes oportunidades para planejamentos de novas atividades, esse período também pode ser caracterizado por notáveis modificações nos pretéritos laços de amizades e contatos sociais, isolamento social, sentimentos e pensamentos de menos valia e, portanto, mais estresse.
Alguns autores têm utilizado o termo “alcoolismo de início tardio” (late-onset alcoholism) para incluir aqueles indivíduos que iniciam o consumo nocivo de bebidas alcoólicas depois dos 50 anos de idade. Esta é uma estratégia de perfilar os bebedores, classificando-os pela idade de início de problemas com o uso de bebidas alcoólicas. Assim, existem aqueles indivíduos com mais de 50 anos que já apresentavam problemas com o consumo de álcool previamente e aqueles que apenas começaram tais problemas com o avanço da idade. A Tabela 01 expõe algumas possíveis diferenças entre os dois grupos sugeridos.
Tabela 01. Diferenças entre os bebedores de “início tardio” e de “início precoce”
Início antes dos 50 anos
• Mais frequente o início de problemas com o uso de bebidas;
• Mais frequentemente existem problemas de personalidade coexistentes;
• Mais frequentemente, o status socioeconômico é pior;
• Desnutrição pode ser mais corriqueiro;
• História de múltiplos sinais de lesões físicas passadas decorrentes do estado de intoxicação.
Início após os 50 anos
• Menos comum o início de problemas com o uso de álcool do que o outro grupo;
• Geralmente, maior estabilidade financeira;
• Frequentemente, estes indivíduos vivem com familiares;
• História positiva de trabalho pretérito;
• História de quedas e traumatismos recentes.
Como reportado anteriormente, a aposentadoria é um dos fatores para o desencadeamento deste chamado “alcoolismo de início tardio.” No entanto, os outros fatores já apontados, como sintomas depressivos, intranquilidade com a mudança na autoimagem, preocupação recorrente com o fato de estar envelhecendo, perdas e mortes na família, isolamento social e familiar, confusão quanto à própria identidade enquanto pessoa e profissional, dentre vários outros sentimentos, pensamentos e acontecimentos colaboram para a perda do controle diante do comportamento de beber. Muitas vezes, não apenas o álcool se torna um problema na vida do indivíduo com mais idade, mas também outras condutas nocivas que são sentidas por esse indivíduo como imediatamente prazerosas.
Deve-se sempre levar em conta que se trata de população que comumente apresenta outras disfunções no organismo, como alterações de pressão arterial, níveis glicêmicos, problemas metabólicos, funcionamento cerebral, dentre inúmeros outros. O uso imoderado de bebidas alcoólicas seguramente complicará disfunções orgânicas já instaladas, bem como poderá desencadear com certa facilidade algumas disfunções ainda não alojadas no indivíduo. Portanto, o médico clínico deve estar ciente sobre o comportamento de beber do seu paciente e tal fato deve ser reportado ao médico pelo próprio paciente ou mesmo pelos seus familiares. A Tabela 02 indica, sumariamente, algumas consequências do beber imoderado.
Tabela 02. Consequências físicas do beber imoderado
Efeitos diretos do álcool
• Desregulação do metabolismo da vitamina D
• Aumento dos níveis de estrógenos (hormônio feminino)
• Diminuição da disponibilidade de testosterona
• Alteração do funcionamento cardiovascular
• Má absorção da vitamina B12
• Acúmulo de gordura no fígado
Consequências
• Piora da osteoporose e osteopenia
• Aumento do volume mamário
• Atrofia testicular
• Disfunção erétil
• Sintomas depressivos
• Arritmias cardíacas
• Anemia (Anemia Megaloblástica)
• Atrofia gástrica
• Hepatite alcoólica
• Anemia por deficiência de ferro
• Cirrose
Na tabela 03 abaixo, cito alguns fatores de risco comumente reportados nos gêneros textuais médicos para a instalação do “alcoolismo de início tardio.”
Tabela 03. Fatores de risco para o início do beber nocivo entre pessoas com mais de 50 anos de idade
– Aposentadoria;
– Perda ou distorção da própria identidade pessoal;
– Aprovação do comportamento de beber por novos ou “velhos” amigos;
– Morte da esposa;
– Sintomas depressivos.
Além, claro, de estimular check-ups com médicos clínicos, nos quais os comportamentos não saudáveis e intoleráveis devem ser reportados, o cônjuge deve estar preparado para uma nova etapa da vida.
Por se tratar de população altamente heterogênea, uma vez identificado o problema do alcoolismo no ente familiar, um modelo individualizado de tratamento médico e de manejo psicossocial deverá ser proposto. Seguramente, um especialista deverá ser consultado.
Na Tabela 04, aponto algumas dicas sobre como lidar com o cônjuge aposentado.
Tabela 04. Dicas para aperfeiçoar o relacionamento pós aposentadoria
• Aposentadoria é um momento de replanejamento, de reformulação. Não aconselho o dito: “homem em casa durante o dia só atrapalha; faça alguma coisa fora!;”
• Compartilhe seus sonhos e tente realizá-los em conjunto;
• Identifique gostos em comum neste momento da vida;
• Tenha, sim, e respeite espaços de individualidade;
• Renove as conversações com seu parceiro, estimule-as;
• Jamais diga “nunca”; também, evite dizer “você sempre”;
• Gaste tempo ouvindo o que o seu parceiro está tentando contar. Saiba ouvir e saiba falar. Tenha certeza de que você está sendo TAMBÉM ouvida;
• Liste boas razões para investir no relacionamento que já é duradouro;
• Ajude-se para poder ajudar o seu parceiro.
Boa sorte!!!
Abaixo, forneço interessante referência para possível consulta:
Emiliussen J, Nielsen AS & Andersen K (2017). Identifying Risk Factors for Late-Onset (50+) Alcohol Use Disorder and Heavy Drinking: A Systematic Review. Substance Use & Misuse, 52:12, 1575-1588.
Atenção!
Este texto não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.
Fonte: VyaEstelar
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.