Estigmas de masculinidade contribuem para invisibilidade de casos que envolvem crianças
Por Ana Luiza Peixoto
Pressionados pelo estereótipo de que homens devem estar sempre prontos para o sexo, meninos e adolescentes em parte não reconhecem como violência os abusos cometidos por mulheres mais velhas.
A cultura que transforma essas situações em iniciação sexual faz com que casos de abuso sejam tratados como conquistas, dificultando a denúncia. Pela lei brasileira, porém, qualquer relação sexual com menores de 14 anos é crime, já que jovens dessa faixa etária são considerados incapazes de consentir.
De 2015 a 2021, o Brasil registrou 164.814 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes até 14 anos, segundo notificações do sistema Viva/Sinan. Dessas vítimas, 25.724 eram meninos.
Mulheres foram responsáveis por 4,5% das agressões contra meninos (1.149 casos) e 2,8% dos casos contra meninas (3.909). Os dados fazem parte do boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, publicado em 2024.
Embora minoritários, os números indicam subnotificação e dificuldade de reconhecimento.
De acordo com o psicólogo e pesquisador Denis Ferreira, do Núcleo de Estudos Transdisciplinares sobre Violência Sexual e Homens, a sociedade patriarcal e machista contribui para a ideia de que o homem, desde a infância, é forte, capaz de se defender e sempre pronto para o sexo, o que impede a denúncia.
Para Caroline Arcari, escritora, pedagoga e mestra em educação sexual pela Unesp, os meninos são dessensibilizados desde cedo, por exemplo, com a introdução à pornografia.
“Na cultura brasileira, sempre foi comum que meninos sejam incentivados, até dentro da própria família, a consumir pornografia como forma de afirmar a masculinidade.”
Hoje, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, mostrar material pornográfico, enviar fotos ou exibir conteúdo erótico são considerados violência sexual.
Nesse código de masculinidade, denunciar é visto como fraqueza e, quando tentam falar, os meninos muitas vezes são ridicularizados.
Fernando Mota Scaglione, 32, conta que sua primeira relação sexual, aos 16, foi com uma mulher nove anos mais velha: “Eu queria que fosse algo especial, mas foi tudo muito corrido, me senti pressionado”.
Ele relata que, ao falar com os amigos, sentiu-se obrigado a dizer apenas coisas boas. Mas, para ele, a experiência foi frustrante. O desconforto aumentou quando a própria mulher fez piadas sobre o que havia acontecido, expondo a intimidade entre eles diante dos amigos.
Também fundador do portal Memórias Masculinas, organização especializada no atendimento a homens vítimas de violência sexual no Brasil, Denis Ferreira identificou em uma pesquisa online com 1.200 homens que 70% deles relataram violências sem contato físico antes dos 11 anos, como exposição a conteúdos pornográficos e conversas com teor sexual. Já 30% disseram ter sofrido sexo forçado.
Segundo a advogada Leticia Ueda, especialista em enfrentamento da violência para a garantia dos direitos humanos, o termo violência sexual abrange diversas condutas sem consentimento, como estupro, assédio, manipulação, ameaça, importunação e exploração sexual, podendo ocorrer sem contato físico.
Essa definição ampla é fundamental para entender a forma como mulheres cometem abusos contra meninos.
O psiquiatra e coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex), Danilo Baltieri, explica que, no geral, mulheres agressoras recorrem também à sedução. Muitas consomem drogas e utilizam instrumentos além dos dedos ou da língua para praticar a violência.
De acordo com o boletim epidemiológico, a maioria das ocorrências contra meninos menores de 14 anos acontece no contexto intrafamiliar, com 71% das agressões cometidas por familiares ou conhecidos próximos.
Nesses casos, o psiquiatra explica que predomina o abuso manipulativo, mais disfarçado, com a oferta de presentes seguidos de ameaça.
“Um paciente, depois de um ano de tratamento, contou que, aos seis anos, tinha uma funcionária em casa que esfregava suas partes íntimas no rosto dele. Ele ainda dizia que não via aquilo como abuso.”
De acordo com Baltieri, disfunções sexuais e dificuldades em relacionamentos estão entre os impactos que marcam as vítimas e geralmente aparecem quando o abuso ocorre na infância ou na pré-adolescência, antes dos 14 anos.
Para Arcari, da Unesp, é preciso ensinar aos meninos que eles podem expressar fragilidade, emoções e empatia.
Outro ponto fundamental é desromantizar a ideia de que o contato de uma mulher mais velha com o corpo de um menino é uma conquista, porque qualquer aproximação sexual de uma criança é abuso.
Os especialistas defendem que as ações devem estar articuladas entre família, escola e Estado, criando uma rede capaz de proteger os meninos e oferecer suporte contínuo.
Esta reportagem é resultado do curso sobre cobertura jornalística de violência sexual infantil promovido pela Folha e pelo Instituto Liberta em junho de 2025
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foi Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC durante 26 anos. Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC por 20 anos, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) durante 18 anos e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex) durante 22 anos. Tem correntemente experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.