Do Sistema Tradicional ao Transgressional na Vida Sexual: Muito Além da Infidelidade

As complexas e variadas conceituações das estruturas tradicionais de gênero e das variantes do comportamento sexual humano não são suficientes para abarcar os diferentes e múltiplos estilos de vida sexual do cotidiano.

Os significados sexuais e eróticos dos múltiplos estilos de vida sexual (modi vivendi) não se concentram nem na construção de hierarquias nem na interrogação racionalizada de (in)verdades. Em vez disso, examinam as diversas possibilidades de prazer sexual que as formas tradicionais de conceituar a vida sexual têm amplamente ignorado ou manipulado. Oferecem, assim, um modelo alternativo de universos sexuais na formação e na interpretação de inúmeras vivências sexuais.

Tais interpretações têm sido baseadas na natureza cada vez mais mutável da vida pós-moderna, a qual tem minado a legitimidade de estruturas sociais clássicas como a família, a Igreja e até mesmo o Estado. De fato, ao longo da história, as vivências sexuais tendem a escapar ou mesmo a transpor as fronteiras categóricas de gênero e das práticas sexualmente convencionais e tradicionais.

Por meio da sua relação com sistemas sociais e culturais, a natureza da experiência erótica/sexual tem se modificado, e somente examinando-a em relação a tais sistemas será possível interpretar sua própria lógica e compreender as maneiras pelas quais essa lógica transforma o significado da prática sexual. Isso, por sua vez, permitirá explorar a gama de meios associados à vida erótica e examinar a experiência erótica, não reduzindo-a a algum outro nível de realidade ou conjunto adicional de “princípios explicativos”, mas interpretando-a como uma construção cultural em irrefreável modificação: um produto de formas simbólicas intersubjetivas, estruturas ideológicas, configurações semânticas e afins, que assumem significado dentro da vida social.

Seja implícita ou explicitamente, os sistemas clássicos de gênero e sexualidade articulam claramente um repertório de práticas sexuais, algumas definidas como aceitáveis e outras como proibidas. No entanto, eles não conseguem limitar totalmente esse repertório porque a própria noção de proibição implica a possibilidade de transgressão. Da mesma forma como a definição do “aceitável”, uma definição do proibido – e por extensão, das formas de transgressão – tem sido central para os significados simbólicos de gênero e sexualidade.

De fato, através da racionalidade negativa sobre as transgressões sexuais, seja através de figuras concretas como o cuckold e o infiel ou em conceitos abstratos como o pecado, a doença, ou a anormalidade, os sistemas mais tradicionais de gênero e sexualidade foram capazes de se regular e se reproduzir. No entanto, a sua ordem interna depende de sua capacidade de se espelhar na vida cotidiana (externa), e, nesse ponto, o fracasso parece evidente.

Por exemplo, há uma distinção cultural entre os domínios público e privado que talvez seja mais bem capturada em expressões populares como “embaixo do pano, tudo pode acontecer” ou, “entre quatro paredes, tudo pode acontecer “. As pessoas podem assim dizer que “qualquer coisa pode acontecer dentro de quatro paredes” porque o mundo – os sistemas tradicionais – não importa.

Uma mulher cheia de inibições, um homem cheio de inibições, os machistas, ou as supermulheres – subitamente, podem não ser tão femininas ou tão machistas dentro de quatro paredes. Porque não tem ninguém assistindo, e só o que acontece lá dentro é o que importa. Seja “dentro de quatro paredes” ou “sob os lençóis”, a chave é que tudo está de alguma forma escondido da visão pública. No privado, ou quando escondido, então, o caráter da vida sexual é transformado. Tudo pode acontecer.

Subvertem-se os sistemas tradicionais, insinuando que as possibilidades inesperadas de prazer sexual podem acontecer. Entre a casa e a rua, há uma chave para a organização (desorganização) da vida cotidiana. A casa tende a estar ligada a todo um conjunto de noções relacionadas aos limites próprios da sexualidade feminina e/ou masculina. É normalmente entendido como o domínio da família e dos valores familiares. Embora possa ser um mundo habitado em primeiro lugar por mulheres, também está associado a pelo menos alguma forma de autoridade patriarcal tradicional, e é obviamente visto como o local da sexualidade doméstica (ou domesticada). A casa é onde o nome da família tem que ser respeitado… É o lugar da boa conduta e da moral exemplar.

A preservação do ambiente familiar tradicional dentro de casa é dever de todos: mãe e pai, filhos, avós… A rua, por outro lado, é um domínio muito mais impessoal do trabalho e da luta. Oferece liberdade individual, bem como tentação e perigo. É um espaço ainda fortemente masculino, habitado, também, por sexual workers e pecadores, mas certamente não tanto por uma esposa ou mãe dedicada propriamente dita: a rua é uma plataforma para travar a guerra, onde, tradicionalmente, pelo menos, o chefe da família vai lutar e ganhar a vida… A rua é onde você encontra perigos e a casa é a fortificação onde a família está protegida. Mas na rua você encontra muita diversão…

No imaginário erótico, no entanto, a relação “normal”, a dicotomia nítida entre esses dois domínios pode ser pelo menos temporariamente invertida, pois a liberdade sexual (e o perigo) da rua invade o espaço isolado e tradicional da casa.  Aliás, à medida que as funções sexuais controladas associadas à vida familiar da casa escapam aos seus controles e se desdobram no mundo impessoal (e, portanto, mais uma vez, perigoso) da rua, as distinções normalmente nítidas entre o interior e o exterior, entre o privado e o público, dissolvem-se, e as estruturas da vida cotidiana são derrubadas, relativizadas e reorganizadas. Nesses momentos, em que os limites se tornam permeáveis, dentro desse ideário, tudo pode acontecer. Com sua mistura imposta de tentação e perigo, ao que muitos podem definir como sacanagem, as regras que deveriam controlar o fluxo da vida cotidiana são vilipendiadas. Isso implica pelo menos em alguma forma de rebelião simbólica ou provocação.

Dentro desse mundo fundamentalmente marginal e rebelde, as interações sexuais adquirem sentido, pelo menos do ponto de vista dos seus participantes, não como uma expressão das relações hierárquicas que separam homens de mulheres, não como um sinal externo de alguma verdade interior, mas, ao contrário, tornam-se um fim em si mesmo, uma realização do desejo ou, uma conquista do prazer imediato, da excitação. Neste contexto de transgressão, o que importa é a emoção, o que importa é o fazer, o que importa é o sentir.

Também neste contexto, abre-se o mundo proibido – um mundo que é ao mesmo tempo desconhecido e perigoso, dadas as possíveis consequências. Os prazeres que podem ser encontrados neste mundo tornam-se ainda mais profundos por causa do perigo que é preciso enfrentar para alcançá-los. Porém, por serem prazeres fortuitos e intensos, podem acabar por não durar muito tempo.

Centrado na transgressão daquelas regras e regulamentos que, de outra forma, proibiriam certas práticas sexuais, este quadro de referência implica uma interpretação muito diferente da natureza da vida sexual daquela proporcionada pelo discurso tradicional da sexualidade. Esta interpretação é, em si mesma, claramente imanente, naturalmente, nas proibições que definem estes outros sistemas. No entanto, dentro do contexto desses sistemas, as práticas que rompem as fronteiras do “bom comportamento” continuam sendo uma afronta a qualquer sentimento próprio de vergonha, repositório de pecado, sinal inegável de anormalidade. Dentro do quadro erótico de referência, no entanto, seu significado é radicalmente diferente.

Embora talvez nunca completamente eclipsadas, as distinções hierárquicas entre homens e mulheres e a classificação detalhada de normalidade e anormalidade sexual dão lugar aqui a uma nova compreensão de um campo simbólico-sexual que toma forma como uma estética da excitação, do prazer físico e dos sentidos.

Como tanto nos sistemas clássicos de gênero e sexo quanto nos discursos mais formais da sexualidade, o desejo sexual parece ser entendido como uma força ou energia que está ligada à própria existência. Dentro desses outros sistemas de transgressão, no entanto, o status da energia sexual parece ser ambíguo. Ao contrário do valor do desejo estar no objeto e não no instinto ou na pulsão, nesses outros sistemas é o próprio desejo e não o seu objeto ou objetivo específico, que é o centro das atenções. O desejo é visto como positivo em si mesmo, e o objeto de desejo é menos importante do que as sensações físicas que ele produz. De fato, a própria noção de desejo como uma espécie de energia difusa é ela mesma construída através de um complexo simbolismo cultural que simultaneamente o define e o vincula às suas manifestações físicas concretas no corpo humano – à excitação sexual. De acordo com a lógica transgressora do ideal erótico, é no jogo mais amplo possível dessa energia que o valor positivo do desejo é mais evidente.

A chave aqui parece ser uma noção geral de falta, de estar insatisfeito: é a falta de algo que cria o desejo. O indivíduo quer satisfazer seu desejo. O próprio corpo humano torna-se ao mesmo tempo objeto de desejo e o provedor da satisfação. As complexas conexões simbólicas aqui envolvidas tornam-se mais claras na linguagem mais extensa do desejo que foi construída na cultura popular – uma linguagem que liga as conotações em grande parte mentais do desejo às suas manifestações mais concretas na excitação do próprio corpo. Com isso em mente, desejo pode ser sentido, por exemplo, como uma espécie de “apetite”. O desejo sexual aqui é, portanto, sinônimo de apetite sexual: jogando-se com a noção do objeto sexual como uma espécie de alimento, e o ato sexual como um ato de comer, um ato de incorporação, o desejo sexual está ligado ao apetite, ao desejo de alimentação. Como a fome, no entanto, o “apetite” nunca pode ser plenamente satisfeito. Não importa o quão saciado o indivíduo esteja: ele se sentirá satisfeito depois de comer, mas sempre voltará a ter “apetite”.

Estilos de vida sexuais caracterizados por encontros sexuais fortuitos, casuais têm ganhado força e, como mencionado, pouco importa o objeto utilizado para a satisfação da lascívia. O que importa é o ato transgressional. Embora muito próximo do conceito do Transtorno do Comportamento Sexual Compulsivo (Dependência de Sexo ou Apetite Sexual Impulsivo), aqui, nesse contexto, não parece haver perda de controle. Há busca por diversão esporádica mas intensa, prazer e calor. Perigoso ? Sim, muito. Porém, presente no estilo de vida sexual de muitas pessoas.

A sexualidade não se resume aos seus transtornos classificados nos manuais médicos. Ela vai muito além e, mesmo para os mais experientes, assume formas arrebatadoras que precisam ser compreendidas e avalizadas pelos que ouvem e avaliam as histórias sexuais, durante as boas anamneses.

 

Referência

Parker, R.G. (1991). Bodies, Pleasures and Passions – Sexual Culture in Contemporary Brazil. Boston, Massachusetts: Beacon Press.

 

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