Pedofilia como transtorno comportamental psiquiátrico crônico e transtornos comportamentais assemelhados

Danilo Baltieri Aula

Resumo

Deve ser realizada rigorosa distinção entre pessoas com desvio sexual crônico e indivíduos com padrão normal de comportamento sexual, mas que manifestaram conduta sexualmente ofensiva de forma impulsiva ou “oportunística”. Pessoas condenadas ou mesmo acusadas de crime sexual contra crianças não podem, de forma categórica, ser consideradas pedófilas, embora a literatura não científica comumente use esse termo para designar todas as pessoas acusadas de algum crime sexual contra
crianças. Ao contrário, a pedofilia é um transtorno psiquiátrico crônico. O desejo e as fantasias sexuais envolvendo crianças devem ocorrer por pelo menos seis meses, de acordo com critérios diagnósticos.
Apesar de abundante literatura científica internacional indicar a necessidade de diagnóstico e tratamento acurados, muitos apenados ou condenados por crimes sexuais são liberados das penitenciárias sem nenhuma avaliação diagnóstica ou intervenção psicossocial. O diagnóstico e os tratamento podem ajudar a melhorar a qualidade de vida dos apenados, tratar suas possíveis doenças e prevenir reincidência.

Este artigo objetiva definir pedofilia, mostrar seus principais fatores causais e discutir formas para fazer o diagnóstico correto. O autor acredita que,
uma vez a pedofilia seja de fato estabelecida como um problema médico tratável em nosso país, a vergonha que impede indivíduos com pedofilia procurar tratamentos adequados diminuirá, permitindo o pertinente manejo terapêutico desempenhado por um time de especialistas.

Palavras-chave. Pedofilia; molestadores de crianças; apenados; comorbidade.

Abstract

Pedophilia – chronic disease: cause or consequence.
Prevention, precocious identification and appropriate treatament

A rigorous distinction must be made between individuals who have a consistent pattern of sexually deviant behavior and those with a primarily normal sexual conduct who may impulsively or opportunistically perform isolated deviant acts. People who have been convicted or accused of sexual molestation against children cannot categorically be considered pedophiles, although the nonscientific literature commonly uses this term to refer to all individuals accused of sexual abuse against children. However, pedophilia is a chronic psychiatric disorder, and the sexual desires and fantasies involving children must occur for at least 6 months to meet the diagnostic criteria of the condition.

Despite the fact that international scientific data indicate the need for an accurate psychiatric diagnosis and treatment, most inmates convicted of a serious sexual crime are released from penitentiaries without any diagnostic evaluation or psychosocial intervention. Such diagnosis and treatment may help to improve their quality of life, treat their possible illnesses and, consequently, prevent recidivism. This paper aims to define pedophilia, show its main causal factors, and discuss ways to establish a correct diagnosis. The author believes that once pedophilia is established
as a treatable medical problem in our country, the shame that prevents pedophiles from seeking adequate treatment may decrease, allowing suitable treatment and management by a team of specialists.


Key words. Pedophilia, children molesters; inmates; comorbidities

Introdução

A pedofilia é um transtorno psiquiátrico de difícil diagnóstico e tratamento. Apesar disso, uma parcela significativa daqueles que padecem dessa doença
consegue responder adequadamente ao tratamento médico e psicológico adequadamente instalado. O indivíduo com pedofilia que ofende sexualmente uma criança deve ser adequadamente avaliado por especialistas na matéria e encaminhado para tratamento adequado. Da mesma forma, o portador de pedofilia que nunca ofendeu uma criança deve reconhecer as manifestações do transtorno e procurar auxílio médico especializado.

Frequentemente, o indivíduo que tem pedofilia não sofre comprometimento intelectivo e conhece assim as repercussões negativas de suas ações nefastas. Contudo, também frequentemente, o portador de pedofilia pode ter comprometimento da sua capacidade volitiva, ou seja, da sua capacidade de controlar seus impulsos, desejos e comportamentos sexuais dirigidos às crianças. Algum grau de prejuízo em sua capacidade de culpa poderá ser encontrado entre padecentes desse grave transtorno psiquiátrico. Dessa forma, a pessoa com esse transtorno que cometeu crime sexual deve receber tratamento adequado, ter seu risco de reincidência sempre avaliado e suas necessidades criminogênicas manejadas por profissionais qualificados na matéria.

“Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei” (art. 3, LEP – Lei de Execução Penal). Logo, o tratamento do apenado que tem essa doença, apesar dos estigmas que a cercam, é um direito humano básico.

Dentre vários fatores relacionados ao risco de reincidência criminal para agressores sexuais, ser portador do transtorno psiquiátrico conhecido como
pedofilia é um dos mais significativos. Logo, receber uma sanção penal sem a oportunidade de participar de um tratamento adequado não cobrirá as necessidades do preso com esse mal, tampouco propiciará sua reinserção social e segurança social.

Ofensas sexuais contra crianças são sempre condenáveis e provocadoras de grande comoção pública. De qualquer forma, o manejo legal daqueles
que cometeram tais ofensas deve ser corretamente fundamentado, cientificamente embasado a fim de promover justiça.

Este artigo visa a comentar sobre os principais aspectos científicos sobre o transtorno psiquiátrico conhecido como pedofilia, objetivando mostrar a
necessidade de avaliação altamente especializada para seu diagnóstico, de avaliação continuada do risco de reincidência e da promoção do tratamento
médico e psicológico cientificamente baseado.

Definição

Pedofilia é transtorno psiquiátrico classificado entre os chamados transtornos da preferência sexual ou parafilias, caracterizado por fantasias, atividades, comportamentos ou práticas sexuais intensas e recorrentes envolvendo crianças ou adolescentes menores de 14 anos de idade. Isso significa que o portador de pedofilia é sexualmente atraído exclusivamente, ou quase exclusivamente, por crianças ou indivíduos púberes.

Dentre os casos de abuso ou agressão sexual contra crianças, apenas uma porção dos agressores apresenta o quadro psiquiátrico de pedofilia. Em
uma pesquisa realizada no Brasil no período de 2004 a 2005, utilizando-se como amostra apenas sentenciados por crimes sexuais violentos de uma
penitenciária do Estado de São Paulo, entre os molestadores de crianças condenados, apenas 20% preenchiam critérios para o diagnóstico. Entre
os agressores sexuais de adolescentes, apenas 5% preenchiam esses critérios.1 Esse achado é corroborado por outros estudos ao redor do mundo.2

De fato, nem todo molestador de crianças é pedófilo e, da mesma forma, nem todo portador de pedofilia é molestador de crianças. Por exemplo, alguns indivíduos que sexualmente abusam de crianças podem, oportunisticamente, selecionar menores para o ato sexual, simplesmente porque estes estão disponíveis em um determinado momento e determinada situação. De outro lado, o indivíduo com diagnóstico médico de pedofilia pode manifestar fantasias sexuais intensas e recorrentes envolvendo crianças e púberes, mas jamais concretizar as fantasias.
Embora muitos pedófilos não concretizem suas fantasias desviadas, alguns fatores psicossociais têm sido apontados como facilitadores da sua expressão, tais como doenças afetivas (depressão), estresse psicológico intenso e abuso de substâncias psicoativas como o álcool. Quando quaisquer desses fatores ocorrem em uma situação em que o individuo com
pedofilia tem acesso às crianças, o comportamento pedofílico torna-se iminente.

Fatores Causais

Experiências de negligência e violência intrafamiliar, vivência de abuso sexual e carência de supervisão parental na infância têm sido associadas ao
desenvolvimento de comportamentos sexualmente inadequados na vida adulta.3 Estudos que demonstram associação entre experiência de abuso sexual na infância e interesses sexuais futuros por meninos,4 bem como entre experiência de abuso sexual na infância e recorrência de atividades sexualmente ofensivas futuras5 abundam na literatura. Existem autores que apontam aspectos intrínsecos ao abuso sexual, tais como a figura do perpetrador (se familiar, o risco é maior), o emprego de violência física e a cronicidade das relações sexuais abusivas que não podem ser descartados na avaliação da causalidade do interesse sexual pedofílico futuro na vítima.6 Contudo, embora vários estudos sugiram que experiências sexuais abusivas precoces estejam relacionadas ao surgimento da pedofilia, outros autores demonstram que a experiência sexualmente abusiva não é condição nem necessária nem suficiente para explicar a origem desse transtorno.7

Existem várias teorias psicossociais sobre a gênese da pedofilia, que variam desde as psicoanalíticas até as relacionadas ao aprendizado precoce e condicionamento. Em modelos animais, o condicionamento precoce a determinado estímulo erótico tem sido demonstrado.8 Em seres humanos, estudos longitudinais relacionados à teoria do aprendizado no campo das parafilias não são desenvolvidos por motivos éticos. Contudo, evidências de condicionamento precoce a determinados estímulos eróticos têm sido vislumbrados em algumas parafilias.9 Nesses estudos, a exposição de crianças a determinado estímulo, que de alguma forma adquiriu significado erótico, condicionaria o futuro adulto a responder sexualmente a esse estímulo. Contrariamente, outros estudos não mostram evidências de alguma forma de condicionamento a determinado estímulo erótico na gênese das parafilias ou comportamentos parafílicos.10

A falha na descoberta de determinantes ambientais e psicossociais para as parafilias, o aparecimento precoce do transtorno e sua aparente estabilidade ao longo da vida encorajam o desenvolvimento de explicações neurobiológicas e genéticas para o problema. Existem, até o momento, poucos estudos sobre o papel dos fatores genéticos na etiologia dos transtornos de preferência sexual. O único geneticamente relevante escrito por Gaffney e colaboradores11 revelou que familiares de pessoas com pedofilia apresentam mais frequentemente e significativamente essa mesma condição clínica do que familiares de portadores de outros transtornos de preferência sexual e do que familiares de não portadores.

Com alguma proximidade aos estudos genéticos propriamente ditos, autores têm mostrado que ndivíduos com pedofilia e hebefilia – atração sexual recorrente e intensa por adolescentes – têm menor estatura física do que não portadores.12 Na mesma linha, estudos têm mostrado que as pessoas com pedofilia são mais frequentemente canhotos do que não portadores.13 Tais dados poderiam ser marcadores relacionados de alguma forma ao neurodesenvolvimento do problema. Paralelamente, alguns estudos sobre doenças relacionadas ao transtorno obsessivo compulsivo, com sinais e sintomas de parafília, têm aventado a hipótese de similares alterações genéticas e processos neurobiológicos subjacentes.14 Também, comportamentos parafílicos, como fetichismo, exibicionismo e pedofilia, têm sido reportados entre indivíduos com diferentes síndromes genéticas.15

A causa e a patofisiologia das parafilias estão ainda sob investigação. Todavia, não se pode dizer que sabemos pouco sobre os fatores relacionados à origem do problema. O que podemos afirmar é que mais estudos precisam ser desenvolvidos para clarificação de algumas hipóteses já firmadas. Como a população de indivíduos com parafilias é extremamente heterogênea, modelos de causalidade podem variar de acordo com o tipo específico do problema. Muitos estudos têm mostrado anormalidades em nível biológico, tais como alterações hormonais e neuropsicológicas entre pessoas com parafilias.16 Maes e colaboradores17 descreveram altas concentrações plasmáticas de epinefrina e norepinefrina
em uma amostra de homens com pedofilia. Esses autores também observaram hiperreatividade do cortisol após administração de metaclorofenilpiperazina entre indivíduos com pedofilia, quando comparados ao grupo-controle. Gaffney e Berlin18 observaram significativo aumento na secreção do hormônio luteinizante após administração intravenosa de hormônio agonista liberador de hormônio luteinizante (LHRH) em um grupo de pedófilos, quando comparado a um grupo-controle. Há, também, relatos de casos que mostram correlação entre danos cerebrais e desenvolvimento de sinais e sintomas de pedofília. Burns e Swerdlow19 registraram o caso de um homem de 40 anos de idade com manifestações de pedofília devido a um tumor cerebral na região orbitofrontal. Mendez e colaboradores20 descreveram dois casos de homens sexagenários, um com esclerose hipocampal e outro com demência frontotemporal, que manifestaram sintomas de pedofilia associados às suas alterações funcionais e estruturais cerebrais.

De acordo com Cantor e colaboradores,13 homens com pedofilia mostram menor desempenho em testes de memória verbal e visoespacial, quando comparados a homens normais. Todos esses achados neuropsiquícos parecem estar relacionados com algumas anormalidades do funcionamento
cerebral. Estudos de imagem têm também sido desenvolvidos entre pessoas com pedofilia para verificar alterações no funcionamento cerebral. Schiffer e colaboradores21 notaram que homens om pedofilia têm menor volume de substância cinzenta nas regiões frontoestriatais, e Cantor e colaboradores22 registraram menores volumes de substância branca nos lobos temporal e parietal entre homens com pedofilia quando comparados a criminosos não sexuais. Todos esses dados reiteram a natureza neurobiológica do problema e demandam tratamento médico e psicossocial adequados para seu controle.

Interesses Parafílicos em Populações não Clínicas

Interesses parafílicos, que não satisfazem critérios plenos para o diagnóstico dos transtornos de preferência sexual, não são incomuns entre
homens ditos saudáveis. Crepault e Coulture23 questionaram 94 homens quanto às suas fantasias masturbatórias ou mesmo durante o intercurso sexual. Cerca de 62% referiram fantasias envolvendo meninas jovens, 33% fantasias masoquistas, 5% fantasias em ter sexo com animais, e 3% fantasias de iniciar um menino na vida sexual. Também, Templeman e Stinnett24 investigaram sessenta estudantes do sexo masculino quanto às
fantasias ou interesses parafílicos. Cerca de 42% registraram já ter participado de atividades do tipo voyeur, 35% do tipo frotteur, 8% em chamadas telefônicas com conteúdo sexual obsceno, 5% em atividade sexual coerciva, 2% em atividades exibicionistas e 3% em algum contato sexual com meninas menores de 12 anos etários. Também, Langstrom e Seto25 verificaram, em uma amostra de 2.810 adultos de ambos os sexos na Suécia, que cerca de 4% dos homens e 2% das mulheres apresentaram pelo menos um comportamento exibicionista na vida. Ao examinar essas amostras não clínicas, pode-se sugerir que interesses ou mesmo fantasias parafílicas não são incomuns na população geral e incluem ampla variedade de pensamentos e comportamentos tipicamente vistos em clínicas especializadas para o tratamento de indivíduos com transtorno parafílico.

Dado que as parafilias podem ser do tipo exclusivo ou não exclusivo, a diferenciação clínica entre interesse parafílico e parafilia propriamente dita tem se baseado na frequência, intensidade e recorrência de fantasias, pensamentos, urgências ou comportamentos atípicos. De qualquer forma, homens com interesses sexuais pedofílicos, ou seja, não propriamente portadores de pedofilia, quanto comparados àqueles sem tais interesses, mostram menor capacidade de socialização, menor autoestima, maior consumo de pornografia e maior impulsividade sexual. O diagnóstico das parafilias é baseado nos critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana e da Classificação Internacional de Doenças. Todavia, numerosas críticas têm surgido quanto à influência da subjetividade e inexperiência dos avaliadores sobre a validade e confiabilidade do diagnóstico. Para isso, investigações complementares para o diagnóstico têm sido usadas para aumentar a validade, como o teste falométrico (pletismografia peniana) e a aplicação de questionários ou instrumentos específicos, que, combinados, aumentam a confiabilidade e a validade diagnóstica. Infelizmente, tanto o teste falométrico quanto a maioria dos questionários específicos não têm sido utilizados, nem validados em nosso país.

Parafilias e Comorbidades Psiquiátricas

Muitos estudos têm mostrado consistentemente altas taxas de comorbidades psiquiátricas em pacientes com parafilias. Por exemplo, Raymond e colaboradores26 relataram alta prevalência de transtornos de humor (67%), transtornos por ansiedade (64%) e uso de substâncias psicoativas (60%) em 45 pacientes com pedofilia. Kafka e Hennen27 também reportaram elevadas taxas de transtornos do humor, ansiedade e abuso de substâncias entre homens parafílicos. Baltieri1 registrou altas taxas de abuso de álcool e outras drogas entre molestadores de crianças em geral, sejam portadores ou não portadores de pedofilia.

Parafilias e os Agressores Sexuais

Deve-se lembrar que o termo agressor sexual referese àquele que comete um crime sexual, definido por lei vigente em determinado local, específico período histórico e determinada cultura. Não se trata de um construto médico, mas sim de construto social e jurídico. Dessa maneira, não se pode imediatamente associar um criminoso sexual com algum transtorno
mental específico. Os agressores sexuais consistem em um grupo extremamente heterogêneo formado, em sua maioria, por homens. As mulheres agressoras sexuais, além de consistirem em número muito menor, têm sido menos estudadas.

Considerando-se, por exemplo, o crime de estupro (art. 213, Código Penal Brasileiro), envolvendo ou não crianças e púberes, é possível definir uma série de características que ocorrem frequentemente, em outras palavras, uma síndrome. O problema é determinar se essa “síndrome” corresponde ou não a um transtorno psiquiátrico. O diagnóstico psiquiátrico pretende servir para uma série de propósitos, incluindo-se a identificação de pessoas que compartilham um conjunto de sinais e sintomas, a confiabilidade entre diversos clínicos que realizam o mesmo diagnóstico e a melhora no entendimento da etiologia da categoria diagnóstica sindrômica.

A Associação Psiquiátrica Americana (APA) foi a primeira a oferecer os critérios diagnósticos das chamadas parafilias ou transtornos de preferência sexual, cujos sintomas e sinais envolvem uma ampla taxa de comportamentos, fantasias ou práticas sexuais desviados e não convencionais. Para algumas das categorias descritas, como pedofilia e exibicionismo, desde que constituam práticas sexuais e não apenas em pensamentos ou fantasias, os comportamentos por si são considerados criminosos no Brasil. Para outras categorias, como fetichismo e fetichismo transvéstico, apesar de comportamentos desviados, não constituem por si atividades catalogadas como criminosas.

Embora os agressores sexuais, aqueles que cometeram algum crime sexual adequadamente definido pela lei, possam sofrer de transtornos psiquiátricos diferentes, cerca de 30% a 70% deles não apresentam quaisquer transtornos psiquiátricos diagnosticáveis. Apesar disso, a parcela nada negligenciável de agressores sexuais que padece de transtornos
psiquiátricos deve receber adequado tratamento médico e psicossocial.

Seguramente, as parafilias não são o único transtorno psiquiátrico evidenciado entre os agressores sexuais. Segundo Dunsieth e colaboradores,28 em uma amostra de 113 homens condenados por crimes sexuais, 85% apresentavam transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas, 38% mostraram quadro compatível com impulso sexual excessivo, 56% transtornos de personalidade, 24% transtornos do humor e 74% transtornos de preferência sexual (pedofilia e ou sadismo sexual). Briken e colaboradores29 também afirmam que, entre os agressores sexuais homicidas, existem altas taxas de transtornos da preferência sexual, em especial sadismo sexual.

Apesar de constatações como essas, a grande maioria dos agressores sexuais não recebe quaisquer intervenções psicossociais dentro ou fora da prisão, objetivando a redução da reincidência criminal e melhora da qualidade de vida. Os indivíduos com transtornos da preferência sexual ou parafilias podem exercer atividades criminosas em decorrência do mal do qual padecem. Dentre eles, destacam-se os portadores de pedofilia, exibicionismo e sadismo sexual que são os que mais sofrem sanções legais dentre todos os parafílicos.

Tratamento das Parafilias

Até o momento, não há cura para essas condições, mas os transtornos parafílicos podem ser tratados eficazmente com os tratamentos biológicos e psicoterápicos disponíveis. Sem tratamento, os pacientes com algumas formas de parafilia, como pedofilia e sadismo sexual, apresentam considerável risco de ofender sexualmente quando comparados àqueles submetidos a tratamento. Apesar de muitos pesquisadores em âmbito
mundial terem já demonstrado que o tratamento adequado dos agressores sexuais parafílicos pode ser eficaz para o controle dos impulsos sexuais
inadequados, alguns países não estão tratando o assunto de forma adequada.

Os objetivos do tratamento das parafilias são:
a) controlar fantasias e comportamentos parafílicos;

b) controlar o impulso e as urgências sexuais;

c) diminuir o nível de estresse e prejuízo dos pacientes com parafilias.

Paradoxalmente, à medida que ganhamos maior entendimento sobre os agressores sexuais e desenvolvemos melhores técnicas de tratamento, as políticas públicas ao redor do mundo encorajam maiores leis punitivas e menor apoio ao tratamento.

Métodos de Avaliação de Portadores de Pedofilia ou de Outras Parafilias

Autorrelato

As parafilias, de forma geral, podem ser avaliadas usando-se uma variedade de métodos. O autorrelato durante a entrevista clínica ou por meio de questionário autorresponsivo é o método mais simples e direto para acessar pensamentos, fantasias e impulsos sexuais do individuo. No entanto, um problema óbvio desse método é a negação das fantasias e dos comportamentos sexualmente desviados, que muitas vezes é causada por vergonha ou mesmo medo de estigmatização ou de sanções penais. A validade do autorrelato pode ser melhorada quando o entrevistador mantém postura não julgadora e empática e quando as perguntas centrais para avaliação diagnóstica são feitas após tópicos ‘menos sensíveis’.

 

História do Comportamento Sexual

Em razão dos problemas com os autorrelatos, os pesquisadores tentam outras formas de abordar os pacientes com pedofilia, especialmente aqueles que cometeram crimes sexuais. Décadas de pesquisa têm demonstrado que certas características das vítimas estão associadas de forma confiável com o diagnóstico de pedofilia entre alguns agressores sexuais. Em particular, agressão sexual contra meninos, múltiplas vítimas, envolvimento de vítimas menores de 11 anos de idade e não relacionadas
(não familiares) ao perpetrador, são itens que, quando somados, são a favor de possível quadro de pedofilia. Seto30 desenvolveu a escala chamada
SSPI (The Screening Scale for Pedophilic Interests) para avaliar metricamente a história de agressão sexual contra crianças e para servir como forma de avaliação putativa diagnóstica. A correlação entre os escores totais desse instrumento e os resultados de testes falométricos (pletismográficos) tem sido positiva e significativa. A seguir, oferecemos esquema de como esta escala é pontuada:

Ter um escore total de 3 ou mais mostra alta sensibilidade e especificidade de acordo com o diagnóstico de pedofilia realizado por meio do teste falométrico.

Tempo de visualização É um procedimento utilizado para avaliação da pedofilia usando-se uma série de figuras de meninos, meninas, homens ou mulheres trajando vestes completas e sumárias. Os participantes também podem ser questionados sobre cada imagem, tais como sobre quão atraente ou interessante é esta ou outra pessoa. Vários estudos têm demonstrado que os agressores sexuais de crianças podem ser diferenciados de outros homens pela quantidade de tempo que os primeiros passam olhando figuras de crianças em relação às figuras de adultos. Falometria Envolve a medida da resposta peniana a estímulos visuais ou mesmo sonoros que variam sistematicamente. Ao indivíduo, diferentes imagens de adultos, adolescentes e crianças são mostradas, e a resposta peniana é avaliada. Essas imagens não são aviltantes à dignidade sexual das pessoas.

Frequentemente são utilizados desenhos de formas humanas e fotos de revistas de lojas de departamentos. A forma mais comumente usada de falometria é a medida do perímetro peniano. Esse método não tem sido usado no Brasil. Várias décadas de pesquisas têm consistentemente mostrado que os índices de resposta peniana ao estímulo sexual com crianças diferenciam os agressores sexuais de crianças dos outros homens e diferenciam homens que têm interesses sexuais em crianças pré-puberes daqueles homens que relatam preferir outras idades.31 No entanto, devido à heterogeneidade na utilização desse método em diferentes regiões do mundo, este carece de adequada validade.

 

Avaliação de Risco

Quatro diferentes grupos de variáveis têm sido usados para avaliar o risco de cometimento de crimes sexuais entre agressores sexuais parafílicos e não parafílicos: 1) variáveis de risco estáticas; 2) variáveis de proteção estáticas; 3) variáveis de risco dinâmicas (estáveis e agudos); 4) variáveis de proteção dinâmicas. Variáveis estáticas são assim denominadas porque são estáveis e não se modificam ao longo do tempo, porque não são suscetíveis a tratamento. Por exemplo, número de vítimas prévias, sexo da vítima envolvida, número de ofensas sexuais e não sexuais prévias, estado marital do agressor. Ao contrário, as variáveis ditas dinâmicas podem mudar ao longo do tempo, principalmente quando um tratamento eficaz é estabelecido. Por exemplo, abuso de substâncias psicoativas, fantasias sexualmente desviadas, impulsividade.

Variáveis de risco correspondem àqueles fatores que aumentam a probabilidade de ações ilícitas. Variáveis protetoras correspondem àqueles fatores que diminuem a probabilidade dessas ações. Vários instrumentos de avaliação de risco têm sido desenvolvidos e validados ao redor do mundo. Alguns usam apenas variáveis “estáticas”, enquanto outros combinam as “estáticas” com as “dinâmicas”. Uma avaliação de risco por meio de variáveis “estáticas” tem menor acurácia na estimativa da reincidência quando comparada à avaliação que utiliza uma combinação de fatores de risco dinâmicos e estáticos.

Um dos instrumentos de avaliação de risco “estáticos” mais usados no mundo é o chamado Static-99. Esse instrumento foi desenvolvido para estimar a probabilidade de um adulto do sexo masculino, que tenha já cometido um crime sexual, apresentar reincidência no mesmo crime. A escala contém dez itens e a maioria deles é preenchida com base nos dados oficiais do prontuário jurídico do sentenciado. Quatro itens – presença de vítimas do sexo masculino, vítimas não relacionadas, vítimas desconhecidas e estado marital do apenado – podem ser preenchidos com as informações do próprio sentenciado, das vítimas e do serviço de assistência social. Apesar de potencialmente útil, uma entrevista com o apenado não é necessária para aplicação do Static-99.32 Esse instrumento foi criado com fundamento nas conclusões de revisões sistemáticas dos fatores relacionados à reincidência criminal entre agressores sexuais.

Apesar da alta confiabilidade do instrumento, é difícil avaliar sua validade, visto que muitos crimes não são registrados, tampouco solucionados, além de exigir um tempo grande para avaliar a reincidência criminal real.33 Nesse instrumento, escores menores do que 1 significam baixo risco de reincidência, escores de 2 a 5 indicam risco médio, e escores maiores do que 6 indicam alto risco de reincidência em crimes sexuais.
Embora múltiplos fatores, tanto estáticos quanto dinâmicos, devam ser avaliados, sempre pareados com a avaliação clínica do médico especialista,
dentro do que se chama de Julgamento Profissional Estruturado (JPE), os principais fatores relacionados com a reincidência criminal para crimes sexuais entre agressores sexuais são: presença de um transtorno da preferência sexual – especialmente pedofilia e sadismo sexual – e presença de transtorno da personalidade antissocial ou narcisista.

O Sexual Violence Risk (SVR-20) é um dos instrumentos com maior confiabilidade na predição de risco de reincidência ao redor do mundo quando comparado a outros vários. De fato, esse instrumento desenvolvido pelo Prof. Douglas Pieter Boer avalia tanto fatores estáticos quanto dinâmicos. A tabela 1 mostra os itens para avaliação.

Tabela 1. Itens do Sexual Violence Risk (SVR-20)

O item ‘Psicopatia’ deve ser avaliado por intermédio do PCL-R (Psychopathy Checklist – Revised).

Conclusão

A pedofilia tem sido extensivamente estudada em todo o mundo, o que revela tratar-se de transtorno de curso crônico, de difícil tratamento e com uma miríade de fatores causais. Dada a complexidade do quadro, equipes interdisciplinares altamente especializadas no tema devem estar envolvidas no seu manejo terapêutico. Quando a pedofilia está presente em pessoas que praticam ou praticaram atos sexuais ilícitos, e tal parafilia é causalmente associada com esses atos ilícitos, os problemas exacerbam-se, especialmente em países onde o manejo clínico e psicossocial dessa população não é realizado.

Para a população de agressores sexuais que têm pedofilia, o tratamento deve ser disponível sempre que necessário e recomendado. Não podemos, sob quaisquer aspectos ou pretextos, confundir tratamento com pena. O tratamento de uma doença adequadamente categorizada nos manuais de Medicina é um direito humano básico e deve ser disponibilizado para aqueles que padecem de pedofilia e desejam tratar-se. Infelizmente, pessoas com pedofilia têm sido rotuladas e isoladas e, às vezes, apenas encarceradas. Embora as causas da pedofilia sejam ainda elusivas, seus sinais e sintomas podem ser adequadamente manejados. A natureza socialmente ultrajante do problema e o estigma a ele associado têm prejudicado o envolvimento ativo de profissionais da saúde no seu manejo clínico.

Enquanto não somos, obviamente, contrários à criminalização das ofensas sexuais, somos contra a ausência de tentativas sérias para engajar portadores desse transtorno da sexualidade em tratamento médico e psicossocial adequado.