O médico e os ‘monstros’: o psiquiatra brasileiro que trata pedófilos

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Em duas horas de entrevista, o psiquiatra Danilo Baltieri, 48, se irritou apenas duas vezes. Na primeira, quando relatou o que ouviu que seu trabalho consistia em “passar a mão na cabeça de pedófilo”. Atendendo pacientes com transtornos sexuais parafílicos nos últimos 21 anos — 18 deles na coordenação de um dos poucos ambulatórios gratuitos no país que recebe pedófilos em busca de tratamento —, diz que a frase não abre espaço nenhum para diálogo. A segunda ocasião foi quando estava para ser fotografado ao lado de um quadro com a imagem de Jesus Cristo, batendo em uma porta.

“Vocês querem me pintar de carola?”, perguntou Baltieri, um tanto incomodado, no seu consultório adornado de objetos religiosos em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. De família italiana, o psiquiatra se diz “bem católico”, mas a sugestão de ser representado como um fanático o incomoda. “Ser de uma religião não significa que eu concorde com tudo que ela diz”, argumenta ele, ajeitando o terno preto e deixando à mostra o anel dourado com o brasão da ordem beneditina, à qual pertence o Mosteiro de São Bento.

Mestre e doutor em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), onde se especializou em transtornos sexuais e dependência química de álcool e drogas, Baltieri criou em 2003 o ABSex (Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC), localizado em Santo André.

O ABSex não só é um dos únicos ambulatórios preparados para receber quem sofre de transtornos sexuais, como também é independente do sistema judiciário. Isto é: não se trata de um local oferecendo tratamento compulsório para possíveis agressores sexuais. A adesão ao tratamento do ambulatório é voluntária.

 

‘Não sou contra a prisão’

O tratamento médico especializado a quem é diagnosticado com transtorno pedofílico é comumente associado a um tipo de vantagem para agressores sexuais, uma forma de fugir da Justiça. O médico deixa claro que não é contra a lei e nem a prisão — inclusive defende que medidas de repressão sejam aplicadas em casos de crimes sexuais. Porém, argumenta que o sistema judiciário poderia ter uma relação mais harmoniosa com a medicina especializada. “O cara vai preso, não recebe tratamento e, quando sai, as chances de reincidência são altíssimas”, afirma.

O tratamento para pedófilos é um tema espinhoso. Em 2007, o próprio psiquiatra esteve no epicentro de uma polêmica na comunidade médica, depois de ter dado uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, sobre o tratamento de hormonização para diminuir o desejo sexual de pedófilos. Na entrevista, Baltieri defendeu o tratamento. Foi usado o termo “castração química” (que não existe na literatura médica) para definir o tratamento. “Aí ferrou”, relembra.

Na época, profissionais especializados em bioética chegaram a dizer que o tratamento está no nível dos que os nazistas adotavam durante o Terceiro Reich, e o Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) abriu uma sindicância contra o psiquiatra. O processo foi extinto em 2010, de acordo com Baltieri. O Cremesp não respondeu os pedidos de confirmação ao TAB, até a publicação da reportagem.

O evento de 2007 é tratado quase como um divisor de águas na carreira do psiquiatra. Por um período, ele foi tachado como um médico “medieval”, emasculador de pacientes. “Não tem castração nenhuma, não tem nada disso”, esclarece, pela milésima vez, após mais de uma década, desde a publicação da entrevista. O episódio o fez passar a ter mais cuidado com sua comunicação, optando por responder perguntas por escrito ou cara a cara com a imprensa, para não abrir brechas a más interpretações.

 

Redução de libido

O tratamento para pedófilos mudou consideravelmente desde 2007. A hormonoterapia ainda é uma possibilidade — no entanto, são administradas doses bem mais baixas do que alguns imaginam—, mas a maioria ingere alguns tipos de antidepressivo para diminuir a libido. Se o paciente chegar via ABSex, ele é obrigado a participar de terapia em grupo (que contam com, no máximo, 12 pessoas), acompanhado por dois profissionais. O monitoramento, conta Baltieri, é essencial para evitar que os presentes deturpem a dinâmica e passem a fazer apologia às suas fantasias.

“[A terapia] É para sempre. O que acontece é que as pessoas que têm pedofilia acreditam que as crianças querem sexo, que elas gostam de sexo, que elas olham para a braguilha da calça do adulto com vontade de abrir. Para nós, isso é um absurdo, mas é uma crença arraigada no cara, e é difícil tirar isso e mudar”, explica.

Todos os pacientes são obrigados a assinar um termo de compromisso antes de participar. Baltieri pediu para que o termo não fosse reproduzido na reportagem (“é que o pessoal pode copiar”), mas o contrato firma um acordo entre o paciente e o ABSex, em que este declara estar consciente de que, a partir daquele momento, não deverá abusar ou molestar fisicamente de quaisquer menores de idade. Caso ele descumpra e revele o caso durante o tratamento, as autoridades serão notificadas.

O contrato passou por algumas mudanças ao longo dos anos, de acordo com novas demandas do ambulatório. “Esse pessoal é muito esperto, precisa sempre ficar atento.”.

 

Reconstrução da sexualidade

O grande desafio de tratar pedófilos está em saber que é impossível eliminar neles o desejo. A tarefa está em ajudá-los a direcionar e reconstruir a sexualidade dos pacientes com pessoas adultas. Em muitos casos, esposas participam do tratamento, já que 80% dos pacientes são casados. O trabalho terapêutico é complicado: o psiquiatra ajuda o paciente a buscar outras coisas que o excitem.

Em 21 anos atendendo pedófilos, Baltieri aprendeu a identificar quem busca por ajuda e quem está em busca de um álibi. No caso do último, ele dispensa o atendimento. Mas a dúvida permanece. “Grande parte dos que me procuram estão sendo processados”, diz. “Mas, dentro de uma dúvida razoável, posso dizer que a maioria quer realmente se tratar.”

Dados sobre portadores de transtorno pedofílico são muito difíceis de serem coletados por motivos óbvios: grande parte dessas pessoas não procura ajuda. Por conta disso, o que se sabe é uma estimativa.

Para o psiquiatra, a maioria é composta de homens acima dos 40 anos, casados com mulheres e de todas as classes sociais. Estão longe de ser monstros, como é comum no imaginário social.

 

Tratar para impedir abusos

“O profissional precisa estar muito preparado e muito à vontade para trabalhar nessa área”, avalia Camita Abdo, psiquiatra e coordenadora geral do ProSex (Projeto Sexualidade do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo). A coordenadora foi professora de Baltieri na USP e também parte da banca de doutorado de Baltieri, em 2006, quando o psiquiatra defendeu sua tese “Consumo de álcool e outras drogas e impulsividade sexual entre agressores sexuais”.

“Quem escolhe esse caminho, como é o caso do Danilo, é alguém que consegue ficar tranquilo, ouvir tudo que tiver de ser ouvido em relação ao comportamento. O maior desafio é acolher o paciente, porque se ele não fica à vontade, ele não vai conseguir trazer a questão que realmente o incomoda e que o faz sofrer”, diz.

Nos anos de ambulatório, o psiquiatra já ouviu todo tipo de justificativa e histórias de embrulhar o estômago. Ao falar de um paciente que justificou ter ficado mais tempo do que o necessário parado em frente a uma escola, porque queria passar manteiga de cacau nos lábios rachados, a expressão de Baltieri permanece a mesma: professoral e neutra, como é possível ver nas fotos do seu site e no Facebook.

O especialista também tentou levar o tema da pedofilia para dentro da Igreja Católica. Chegou a dar uma aula no Mosteiro São Bento sobre tratamento de pedófilos, mas percebeu que não teve muita abertura para se aprofundar no projeto. Sobre os casos de abuso sexual cometidos por membros do clero, afirma que é algo comum de toda instituição fechada. “É como acontece dentro dos esportes”, afirma.

Seu trabalho não o enoja, pelo contrário: Baltieri o enxerga como uma forma de evitar que mais crianças sejam vitimadas por pedófilos. “Você pode dar uma pena capital, mas não vai exterminar essa população. Não é 100%, mas posso falar que consigo uma redução de 15%. Parece pouco, mas não é. (…) Sou médico, e minha função é tratar aqueles que sofrem e impedir que façam vítimas. Se conseguir evitar que uma, duas crianças sejam vitimadas, já ganhei a semana. Vamos supor, é uma função que faço para Deus”, disse, apontando para o quadro de Jesus acima de sua cabeça.

 

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