O tratamento do dependente de heroína e o manejo nas situações de overdose são bastante complexos
E-mail enviado por uma leitora
“Olá, há pouco tempo, meu namorado foi forçado a ter heroína injetada em seu braço. Amarraram-no e injetaram à força… Conseguimos tirar ele do lugar em que estava, mas não sei a quantidade que foi injetada. Foi por um dia inteiro mas, ainda assim, não sei o que isso pode causar. Ele está em um estado onde parece que o seu organismo pede mais. De qualquer forma, gostaria de saber se tem alguma forma de ajudar. O que isso vai causar a ele, mesmo com pouco tempo e pouca quantidade da droga? Os efeitos colaterais podem ser muito ruins?”
Resposta
O uso coercivo de substâncias psicoativas tem sido reportado em diversas situações, principalmente associadas com violência doméstica, violência sexual e crimes contra a propriedade. Existem relatos esporádicos sobre o uso coercivo de drogas injetáveis em uma determinada pessoa que é realizado por criminosos; todavia, o uso de substâncias psicoativas por via oral, sem o conhecimento da vítima ou mesmo de forma coerciva, tem sido muito mais amiúde registrado.
O uso da substância psicoativa conhecida como heroína, um opioide semissintético, é uma preocupação em diversos países ao redor do mundo. As consequências do uso ou abuso desta substância, tais como overdose acidental (ou mesmo intencional), aumentado risco para doenças infectocontagiosas, alto investimento público para o tratamento dos dependentes de heroína e de outros opioides, maior exposição às situações de violência, graves complicações para a saúde física e psíquica, têm demandado rigorosos métodos de intervenção governamental e policial.
De acordo com dados do NESARC (National Epidemiologic Survey on Alcohol and Related Conditions), 1,6% dos adultos usaram heroína em algum momento das suas vidas e 0,69% dos adultos demonstraram problemas (tais como o desenvolvimento de uma síndrome de dependência) com o uso desta substância entre 2012 e 2013.
Heroína: diferentes formas de consumir
Trata-se, realmente, de uma substância com alto poder para induzir dependência; outrossim, é importante lembrar que a heroína pode ser usada de diferentes maneiras, ou seja, injetando, cheirando ou mesmo fumando a droga. Uma overdose depende de vários fatores, tais como a pureza da droga, a tolerância do usuário, o uso conjunto de outras substâncias depressoras do Sistema Nervoso Central (benzodiazepínicos e álcool, por exemplo), ou mesmo o uso conjunto com cocaína.
Uma única dose já pode “condenar” o indivíduo à dependência?
Existem relatos anedóticos de que uma única dose desta droga pode já conduzir o indivíduo a procurar mais outras doses, dados os efeitos prazerosos intensos que ocorrem logo após o uso e mesmo devido aos incipientes sintomas negativos relacionados com a falta da heroína. Embora esta assertiva seja ouvida com certa frequência na prática clínica diária, as pesquisas demonstram que usar heroína uma vez na vida não significa uma sentença para o surgimento de um quadro de dependência.
Os principais efeitos da heroína logo após o uso são listados abaixo:
- Sonolência
- Fala empastada
- Retardo psicomotor
- Tontura
- Pupilas contraídas
- Euforia
- Constipação intestinal
- Dificuldades respiratórias
- Sensação de orgasmo
Quando o indivíduo passa a consumir a heroína com regularidade, ele pode desenvolver um quadro de síndrome de dependência, perdendo o controle sobre o seu consumo, demonstrando dificuldades para cessar o uso, demonstrando diversos prejuízos no trabalho, dificuldades nos relacionamentos familiares e interpessoais, e desenvolvendo diferentes estratégias para obter a droga. Nos casos do estabelecimento de uma síndrome de dependência, o indivíduo frequentemente apresenta sinais da síndrome de abstinência, quando ele permanece algum tempo (em geral, curto) sem usar a droga ou a usando com doses menores do que as anteriores.
Dentre os sintomas da síndrome de abstinência, podemos citar:
- Tremores
- Agitação psicomotora
- Inquietação
- Diarreia, náuseas e vômitos
- Intenso desejo de usar a substância (fissura)
- Insônia
- Aumento do tamanho das pupilas
- Alteração da pressão arterial e da frequência cardíaca
- Dores musculares e ósseas
Tais sintomas da síndrome de abstinência são extremamente desconfortáveis para o portador da síndrome de dependência, o que, muitas vezes, dificulta a parada do consumo e mesmo a busca por ajuda.
Overdose: sintomas
A overdose (ou superdosagem) acidental ou intencional é caracterizada por alguns sinais e sintomas clínicos, tais como:
- Depressão respiratória
- Diminuição significativa do tamanho das pupilas (miose)
- Grave prejuízo da consciência neurológica (coma)
Em caso de suspeita de overdose
Suspeita de overdose requer atendimento clínico urgente
Em casos de suspeita de overdose, o usuário deve, o mais rapidamente possível, ser conduzido a um serviço de emergências clínicas, no qual medicações específicas deverão ser utilizadas, bem como manobras de ressuscitação utilizadas.
Nos quadros de dependência de heroína já instalados, medicações deverão ser aventadas pela equipe de saúde para amenizar os intensos sintomas da síndrome de abstinência.
Dentre as medicações mais utilizadas para este tipo de tratamento estão a metadona, a buprenorfina (ou a associação buprenorfina/naloxona), a clonidina e o naltrexone. É importante sempre enfatizar que o tratamento farmacológico deve sempre estar associado com outras formas de manejo terapêutico, tais como psicoterapias e grupos de mútua ajuda.
Duas formas de tratamento
Muitos autores classificam o tratamento em duas formas: a desintoxicação e a manutenção. Na verdade, a diferença entre as duas modalidades reside no tempo em que o portador do problema permanece fazendo uso das medicações (principalmente a metadona e a buprenorfina) indicadas para promover a parada do consumo do opioide primariamente abusado (no caso, a heroína).
Na manutenção, a medicação (metadona ou buprenorfina, por exemplo) usada para o tratamento do portador de problemas com o uso de opioides ultrapassa os 06 meses.
Na desintoxicação, pretende-se que o portador fique livre de qualquer medicação opioide em até 30 dias (desintoxicação curta) ou de 31 a 180 dias (desintoxicação longa).
O uso da metadona em regime de ambulatório é realizado em várias partes do mundo, onde existe um sistema rigoroso para a dispensação da medicação. Frequentemente, os pacientes dependentes de opioides em tratamento com metadona dirigem-se diariamente aos centros de tratamento – conhecidos como “clínicas de metadona” – para adquirir a medicação diretamente com um encarregado pela sua distribuição. Esta conduta é recomendável, já que se trata de droga com notável potencial para induzir dependência, além do fato de que um dos objetivos fundamentais do tratamento é a abstinência completa de todo e qualquer opioide.
O uso da metadona tem sido o tratamento padrão para os pacientes portadores de problemas com o uso de opioides há mais de 40 anos. Apesar disso, a falta do acesso às clínicas especializadas de metadona, as restrições para a dispensação de uso (em diversos países), longas listas de espera e o próprio estigma associado com este tipo de problema desencorajam portadores de envolver-se no tratamento.
Buprenorfina
A buprenorfina, um agonista parcial de receptores m (um dos tipos de receptores cerebrais para opioides), tem apresentado resultados satisfatórios no tratamento da síndrome de abstinência de opioides e durante o tratamento de manutenção. É um derivado do opioide natural tebaína, com uso sublingual e meia-vida longa. Por ser um agonista opioide parcial, a buprenorfina pode desencadear sintomas de intoxicação e abstinência em situações de abuso. A dose recomendada varia de 2 a 16 mg/dia sublingual. Após um período variável de estabilização, a buprenorfina também é eficaz se administrada duas a três vezes por semana, visto que apresenta lenta dissociação dos receptores de opioides. É importante notar que a buprenorfina tem um efeito teto (ceiling effect), quando as suas propriedades agonistas aumentam linearmente até o máximo nas doses entre 16 e 32 mg. Doses superiores a estas diariamente não produzem efeitos farmacológicos clinicamente desejáveis.
Buprenorfina e naloxona
Uma associação entre buprenorfina e naloxona, na proporção de 2 para 0,5 mg, de 4 para 1 mg, ou de 8 para 2 mg – comprimidos de administração sublingual, consistindo na medicação comercializada nos EUA como Suboxone®, foi aprovada pelo FDA (Food and Drug Administration) em 2002. Tem sido preconizada para o tratamento de manutenção de dependentes de opioides, demonstrando menor risco de uso abusivo por parte dos pacientes.
Em relação à metadona
Em relação à metadona, a associação de buprenorfina com naloxona apresenta menor eficácia quanto à prevenção de recaídas do uso da heroína. Entretanto, seu menor potencial de uso abusivo e sua maior segurança contra eventos depressores do Sistema Nervoso Central permitem a sua administração ambulatorial, com adequada adesão a longo prazo. O Suboxone® é, portanto, uma alternativa para a manutenção da abstinência de pacientes já submetidos ao tratamento de desintoxicação e manutenção em regime ambulatorial. Entretanto, embora a buprenorfina seja apontada como a medicação de escolha para o tratamento dos portadores de transtornos relacionados ao uso de opioides, inclusive no Brasil, a forma adequada para ser administrada (via sublingual) nestes pacientes não está disponível no nosso meio. A formulação bucal – medicação posta entre a bochecha e a gengiva – (Bunavailâ) também tem sido usada em alguns países com sucesso.
Clonidina
A clonidina, uma a2 agonista, é eficaz na redução da sudorese, pilo-ereção, formigamentos, náuseas, vômitos e dores musculares. Entretanto, não tem qualquer ação na redução da fissura ou “craving” pelos opióides. Os resultados no tratamento da síndrome de abstinência com clonidina são altamente controversos nos gêneros textuais médicos. A clonidina age suprimindo as respostas noradrenérgicas no Lócus Coeruleus. A dose varia de 0,6 a 1,2 mg/dia. Não é recomendado para pacientes com história recente de Acidente Vascular Cerebral, gestantes e cardiopatas. Estudos têm mostrado que esta medicação, bem como uma similar – a lofexidina – podem ser úteis para aqueles pacientes que não desejam manutenção com agonistas opioides, nem transição para naltrexone.
Naltrexone
O naltrexone, antagonista opioide puro, deve ser iniciado somente após a abstinência completa de todo e qualquer opioide, com a finalidade de não induzir sintomas da síndrome de abstinência. Este tempo de abstinência completa tende a variar entre 10 e 30 dias após o último consumo de quaisquer opioides. Além de consistir em medicação controvertida nos gêneros textuais médicos, dada a pobre adesão dos pacientes e de eficácia duvidosa para esta finalidade terapêutica, o naltrexone aumenta a sensibilidade dos receptores opioides, tendo em vista a sua atividade antagonista. Isso significa que, em uma recaída com a heroína, o portador terá efeitos intensificados e potencialmente fatais. Apesar disso, na Rússia, é a única medicação aprovada nos casos de problemas com o uso de opioides lícitos ou ilícitos.
Como se percebe da leitura do texto, o tratamento do dependente de heroína e o manejo nas situações de overdose são bastante complexos e devem ser realizados por especialistas altamente treinados. O tempo de tratamento para aqueles que desenvolveram um quadro de síndrome de dependência é longo; e é muito difícil prever um período para o seu término, dadas as particularidades da síndrome.
Você está perguntando sobre o que deve fazer em uma situação de violência onde supostamente a heroína foi injetada coercitivamente no seu namorado. O seu namorado deve procurar um médico especialista urgentemente (aliás, já deveria ter feito isso). O médico especialista avaliará o quadro e a situação com todos os detalhes necessários. Claramente, o profissional de saúde solicitará exames clínicos e, dependendo do quadro, toxicológicos. As consequências do ato violento para a saúde física e psicológica do seu namorado também deverão ser rigorosamente avaliados. Corra !!!
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.