Usuários crônicos de cocaína: alguns sintomas podem surgir semanas a meses após o último consumo da substância.
E-mail enviado por um leitor
“Bom dia doutor. Resolvi parar com o uso de bebidas e cocaína. Senti tonturas, dores de cabeça e fui ao neurologista. Fiz vários exames, tais como tomografia de crânio, exames para labirintite, mas não deram nada. Eu apresentava quadro de ansiedade e o médico me passou Alprazolam 0,5. É um remédio controlado, mas quando terminei, voltou ansiedade e essa luta já permanece há quatro. Resolvi então ir ao psiquiatra e ele me passou Topiramato para controlar a compulsão e mais outro pra dormir. Tomei durante uma semana e pioraram os sintomas. Ele suspendeu as medicações e não retornei mais na clínica. Tenho dores de cabeça, tontura, ansiedade, inquietação, irritabilidade e insônia. Já estou cinco meses sem bebida e cocaína e estou buscando libertação com Deus… mas, não está sendo fácil suportar estes sintomas. O que devo fazer?”
Resposta
As síndromes de abstinência às substâncias psicoativas consistem em sinais e sintomas físicos e/ou psicológicos advindos da parada ou redução abrupta do consumo das mesmas. Como regra geral, para cada grupo de substâncias (substâncias depressoras, estimulantes, perturbadoras do funcionamento do Sistema Nervoso Central), sintomas físicos e/ou psicológicos relativamente específicos são esperados para aqueles que fazem uso crônico, recorrente e problemático delas.
É importante ressaltar que os sintomas de uma síndrome de abstinência podem variar também em função de características individuais (aspectos genéticos, sexo, status nutricional), tempo do uso problemático, uso concomitante de duas ou mais substâncias, quantidade das drogas consumidas, vias de administração, pureza das substâncias, tratamentos realizados, dentre vários outros fatores.
Em geral, as síndromes de abstinência podem ser classificadas em dois tipos:
a) Síndromes de abstinência agudas: os sintomas e sinais físicos/psicológicos surgem horas ou poucos dias após a parada ou redução abrupta do uso da substância abusada;
b) Síndromes de abstinência crônicas ou protraídas: os sintomas físicos/psicológicos aparecem semanas a meses após o último consumo das substâncias.
Álcool – Síndrome de Abstinência Aguda
No caso do álcool, aqueles que fazem uso crônico e problemático das bebidas podem apresentar os seguintes grupos de sintomas, quando cessam ou reduzem abruptamente o consumo das mesmas:
a) Aumento das atividades excitatórias periféricas do corpo (hiperatividade autonômica): tremores de membros superiores, sudorese importante, taquicardia, náuseas, vômitos, sintomas ansiosos, inquietação psicomotora. Tais sintomas tipicamente surgem dentro de poucas horas depois do último consumo de bebidas alcoólicas;
b) Convulsões, que, geralmente, podem surgir dentro de 12 a 48 horas após o último gole. No entanto, há que considerar que o surgimento de crises convulsivas relacionadas com a síndrome de abstinência alcoólica pode se dar após um tempo maior da parada do uso;
c) Delirium tremens: quadro caracterizado por importante confusão mental, flutuação do nível da consciência, fenômenos alucinatórios (ver coisas que não estão de fato presentes, ouvir coisas que não estão acontecendo etc). Este quadro, bastante temível dada a alta taxa de mortalidade associada, tende a aparecer entre 24 e 48 horas após o último consumo das bebidas alcoólicas entre os bebedores crônicos, recorrentes e problemáticos.
Na tabela 01, aponto os principais sintomas da síndrome de abstinência alcoólica.
Tabela 01. Sintomas da Síndrome de Abstinência Alcoólica Aguda
• Taquicardia
• Hipertensão arterial
• Sudorese
• Cefaleia
• Tremores em membros, língua
• Insônia
• Náuseas e vômitos
• Tonturas e vertigem
• Alucinações auditivas, visuais e táteis
• Inquietação psicomotora
• Sintomas ansiosos
• Crises convulsivas
• Desorientação no tempo e no espaço
Naturalmente, quanto mais cedo o usuário problemático de álcool perceber o início dos sintomas da síndrome de abstinência aguda, mais rapidamente ele deve procurar auxílio em serviço de emergência clínica, com a finalidade de realizar tratamento médico. O tratamento precoce, ou seja, o início do uso de medicações específicas e padronizadas para a situação deve ocorrer o mais rapidamente possível, tentando, assim, evitar a progressão dos sintomas.
Cocaína – Síndrome de Abstinência Aguda
No caso da cocaína, os sintomas da síndrome de abstinência aguda tendem a ser também intensos entre os usuários crônicos, recorrentes e problemáticos, e sempre devemos levar em consideração os fatores influenciadores já reportados no início deste texto. Na tabela 02, aponto os principais sintomas da síndrome de abstinência aguda à cocaína. Estes sintomas surgem entre 12 e 24 horas depois do último consumo entre aqueles usuários diários e recorrentes, e duram de 1 semana a 1 mês.
Tabela 02. Sintomas da Síndrome de Abstinência Aguda à Cocaína
• Fissura intensa (desejo quase que irrefreável para consumir a droga)
• Fadiga
• Sonhos não prazerosos, vívidos
• Insônia ou aumento do sono
• Aumento do apetite
• Retardo psicomotor ou agitação psicomotora
• Humor deprimido
• Bradicardia (redução da frequência dos batimentos cardíacos) ou taquicardia
Síndromes de abstinência crônicas ou protraídas
No entanto, alguns dos sintomas descritos acima, tanto para a síndrome de abstinência aguda ao álcool quanto para a síndrome de abstinência aguda à cocaína, podem surgir semanas a meses (às vezes, dependendo da substância, anos) após o último consumo da substância psicoativa específica. A tais quadros dá-se o nome de síndrome de abstinência crônica ou protraída. Nas síndromes de abstinência crônicas ou protraídas, os sintomas ditos “psicológicos,” tais como fissura, ansiedade, prejuízos do sono, inquietação psicomotora, cefaleia são os mais evidentes.
Desta feita, o tratamento das dependências químicas deve ser contínuo e o portador precisa ser persistente e assíduo às consultas e às atividades propostas pelo médico psiquiatra especialista.
Na tabela 03, aponto alguns dos principais sintomas observados na chamada síndrome de abstinência protraída ao álcool.
Tabela 03. Sintomas da Síndrome de Abstinência Protraída ao Álcool
• Falta de prazer nas atividades (anedonia)
• Sintomas de ansiedade
• Sintomas depressivos
• Sintomas dolorosos (especialmente cefaleia)
• Fissura
• Alterações no funcionamento gastrintestinal (por exemplo, diarreia)
No caso de usuários crônicos e problemáticos da cocaína, alguns sintomas podem surgir semanas a meses após o último consumo da dita substância. Na tabela 04, aponto alguns dos sintomas da chamada síndrome de abstinência crônica ou protraída à cocaína.
Tabela 04. Sintomas da Síndrome de Abstinência Crônica ou Protraída à Cocaína
• Sintomas depressivos
• Sintomas ansiosos
• Inquietação psicomotora
• Prejuízos do sono
• Falta de motivação
• Fissura
• Episódios de raiva ou comportamento agressivo
• Falta de prazer nas atividades anteriormente sentidas como prazerosas
Existem dois pontos que devem ser considerados neste momento:
a) Em muitas situações, os sintomas que surgem em um síndrome de abstinência crônica ou protraída não são tão específicos para um dado grupo de substâncias psicoativas como muitas vezes o são nas síndromes de abstinência aguda;
b) Outrossim, muitos dos sintomas que surgem durante as síndromes de abstinência crônicas ou protraídas podem estar associados com um outro transtorno mental coexistente no usuário crônico e problemático de substâncias psicoativas.
Assim, o portador deve estar sendo acompanhado por médico especialista objetivando clarear o quadro clínico para estabelecer a melhor conduta terapêutica. Novamente insisto que, em grande parte dos casos, o seguimento médico e psicossocial deve ser continuado.
Álcool e cocaína
O uso concomitante de bebidas alcoólicas e cocaína é um importante problema de saúde pública ao redor do mundo. Vários estudos têm reportado que a grande maioria dos usuários problemáticos de cocaína também abusam de bebidas alcoólicas. Portadores do uso problemático de ambas as substâncias concomitantemente demonstram mais dificuldades para manter a abstinência (ficar “limpo”), mais complicações psicossociais, pior prognóstico clínico, e maiores repercussões negativas para órgãos e sistemas orgânicos vitais, tais como sistema cardiovascular, cérebro, sistema gastrointestinal, rins etc.
A coadministração de álcool e cocaína gera uma substância conhecida como coca-etileno, que é um metabólito ativo da cocaína com ação mais duradoura no organismo do que a cocaína per si (cerca de 3 a 5 vezes mais longa). Esta substância tóxica tem sido associada com crises convulsivas, lesões no fígado e redução da atividade imunológica do corpo. Outrossim, dado que a substância coca-etileno é mais tóxica do que a cocaína, o risco de morte súbita é maior.
Na presença do álcool, a taxa de absorção da cocaína também é maior. Alguns estudos têm registrado que o pico de concentração sanguínea da cocaína, quando usada concomitantemente com o álcool, é aumentado em cerca de 20 vezes quando comparado ao consumo de cocaína isolado. Com isso, a sensação de euforia causada pela associação das duas substâncias tende a ser maior; no entanto, as repercussões ao sistema cardiovascular podem ser devastadoras. Esta associação (álcool e cocaína) aumenta ainda mais a secreção de hormônios relacionados com o stress (tais como o cortisol e a norepinefrina), o que teoricamente aumenta o risco de arritmias. Na tabela 05, aponto alguns dos efeitos da substância coca-etileno.
Tabela 05. Efeitos da Substância Coca-etileno
• Morte súbita devido ao surgimento de arritmias
• Aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial
• Risco aumentado para acidentes vasculares cerebrais
• Mais danos estruturais e funcionais no fígado
• Sensação de maior euforia, o que promove a continuidade e aumento do uso das duas substâncias (álcool com cocaína), elevando, assim, o risco de overdose
• Aumento dos comportamentos impulsivos e de risco
Alguns estudos têm sugerido que portadores do uso problemático, crônico e recorrente de álcool e cocaína, quando cessam ou reduzem abruptamente o consumo, tendem a apresentar os mesmos sintomas de abstinência para cada substância isoladamente, mas com menos sintomas de hiperatividade autonômica (tremores e sudorese, principalmente).
Estes achados poderiam ser justificados pelas alterações diversificadas no sistema de neurotransmissores provocadas pelo álcool e pela cocaína, ou seja, uma substância depressora e outra substância excitatória cerebral. No entanto, devemos considerar limitações importantes quanto a estes achados, visto que as amostras utilizadas são altamente heterogêneas, frequentemente o grupo de portadores do uso problemático e crônico de álcool e cocaína é mais jovem do que o grupo de portadores do uso problemático e crônico somente de álcool.
Devemos também considerar que os sintomas das síndromes de abstinência superpõem-se nos portadores do uso problemático e crônico das duas substâncias. Outrossim, também devemos considerar que os usuários problemáticos das duas substâncias podem apresentar mais amiúde complicações cardiovasculares e metabólicas, dada a ação continuada do metabólito ativo e tóxico da cocaína, a substância coca-etileno.
Você precisa realizar um tratamento continuado com especialista em dependências químicas. É uma boa notícia o fato de ter conseguido 5 meses de abstinência completa de ambas as substâncias. Seguramente, essa conquista não é nada fácil.
De qualquer forma, você deve insistir no tratamento. Sempre repiso neste site – Vya Estelar – que o tratamento para as diferentes formas de dependências químicas é uma via de mão dupla: o sucesso depende de uma equipe especializada disposta a auxiliar e de um portador disposto realmente a tentar ajudar a si próprio.
Não perca tempo!
Atenção!
Este texto não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.
Publicação original: VyaEstelar
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.