Hormônios Contra o Crime – Revista Época

O tratamento usado por um psiquiatra para provocar impotência em pedófilos é aceitável?

Matéria de Solange Azevedo para  Revista Época

Há três anos, a Itália debate a legalização da castração química de condenados por crimes sexuais. Na França, o tema ganhou destaque depois da posse do presidente Nicolas Sarkozy, há cinco meses. A adoção desse tipo de tratamento médico é tão polêmica que, em várias partes do mundo, seus defensores foram chamados de nazistas. A controvérsia chegou ao Brasil. Na semana passada, o psiquiatra Danilo Antonio Baltieri, responsável pelo Ambulatório de Transtornos da Sexualidade (ABSex) da Faculdade de Medicina do ABC, em Santo André, São Paulo, admitiu fazer a castração química em pedófilos. Ele havia defendido o procedimento no último Congresso Brasileiro de Psiquiatria, dias antes. O ambulatório atende atualmente cerca de 30 portadores desse distúrbio. Alguns estão respondendo a processos judiciais. Mas nenhum deles foi condenado por pedofilia até agora. Questionado sobre a possibilidade de ter seu diploma cassado pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp), Baltieri afirmou ter feito o tratamento em apenas um homem. E a pedido do próprio paciente.

A castração química é feita com a aplicação de hormônios femininos. Nos Estados Unidos, o mais usado é o acetato de medroxiprogesterona. Aplicada no músculo, a substância é liberada aos poucos na corrente sanguínea e inibe os efeitos da testosterona, o principal hormônio masculino responsável pelo desejo sexual. Com isso, a libido diminui e a probabilidade de ereção e orgasmo também. Embora o efeito esperado seja uma espécie de impotência temporária, apenas durante o tratamento, o uso prolongado e excessivo desses hormônios pode dificultar a recuperação de toda a potência sexual do homem, diz o psiquiatra Aderbal Vieira Júnior, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Universidade Federal de São Paulo. Os efeitos colaterais dessa terapia podem ir do aumento da pressão arterial à atrofia da genitália masculina e ao câncer hepático.

Do ponto de vista ético, não há consenso na classe médica. “Um dos princípios da bioética é a autonomia”, diz Marco Segre, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e especialista em bioética. “Apesar de não gostar muito desse tipo de terapia por ela anular a função sexual, desde que haja o consentimento do paciente não vejo contra-indicação formal ao uso de hormônios.” Segundo o Cremesp, Baltieri está sendo investigado e terá de provar que há evidências científicas sobre a eficácia e a segurança do tratamento conduzido por ele no ambulatório da faculdade e se o paciente de fato autorizou a terapia hormonal.

Os efeitos colaterais podem incluir a atrofia da genitalia masculina e até anular a função sexual

A prescrição de hormônios femininos para homens com distúrbios psicossexuais como a pedofilia é prática corrente no exterior. Em alguns lugares, o tratamento também é aplicado como punição a estupradores e serve como alternativa à prisão. “Apesar de a Itália ainda estar discutindo a legalização, médicos fazem castração química no país há mais de 20 anos de forma não oficial, em voluntários”, diz o advogado Alberto Wunderlich, coordenador do Observatório de Violência da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), no Rio Grande do Sul. Segundo Wunderlich, essa terapia é permitida por lei em países como Canadá, Suécia, Alemanha e Dinamarca e em alguns Estados americanos, como Texas, Montana e Califórnia. Estudos feitos nos Estados Unidos mostraram que apenas 5% dos condenados por crimes sexuais que receberam injeções de hormônios voltaram a cometer crimes semelhantes, enquanto o índice entre os que ficaram apenas encarcerados chegou a 70%.

Especialistas alegam que a castração química só pode ser usada como última alternativa de tratamento. E apenas em portadores de graves distúrbios psicossexuais. “Altas doses de antidepressivos podem ser eficazes em casos de leve e médio porte. Mas isso tem de ser associado à psicoterapia, ao apoio social e à família do paciente”, diz o psiquiatra Leonardo Gama Filho, chefe do Serviço de Saúde Mental do Hospital Municipal Lourenço Jorge, no Rio de Janeiro. “Os antidepressivos são largamente usados no Brasil para esse fim.” Segundo Gama Filho, esse tipo de medicamento também diminui o desejo sexual do paciente e dificulta a ereção. Por que, então, questionar apenas a ingestão de hormônios femininos? “Os efeitos dos antidepressivos são bem menos intensos que os da castração química”, diz ele.

Juristas dizem que é nula a chance de o Brasil aprovar a lei que prevê a castração química de pedófilos

O psiquiatra canadense John Bradford, da Universidade de Ottawa, que estuda pedofilia há quase 30 anos, calcula que a prevalência do distúrbio atinja cerca de 4% da população mundial. Nem todos os pedófilos, no entanto, se tornam criminosos. Estima-se que mais de 90% dos casos de abuso sexual infantil sejam cometidos por pessoas que não têm interesse sexual voltado primariamente para crianças. Os abusadores que não atendem aos critérios regulares de diagnóstico da pedofilia são chamados de abusadores oportunos, regressivos ou situacionais. Um estudo feito em Goiás entre 2000 e 2003 mostrou que pedófilos respondiam por apenas 14% dos abusos contra crianças. Também por esse motivo, a castração química dos portadores desse distúrbio é tão polêmica. Psicólogos e ativistas em defesa dos direitos humanos afirmam que o abuso sexual não é um fenômeno puramente biológico. Pode ocorrer por uma conjunção de fatores, inclusive de relação de poder.

No Brasil, a castração química não está prevista em lei. Recentemente, o senador capixaba Gerson Camata (PMDB) apresentou no Congresso um projeto que prevê a diminuição do tempo de prisão de pedófilos que aceitarem se submeter ao tratamento com hormônios femininos. Mas a probabilidade de a proposta ser aprovada é considerada nula por juristas. “O projeto do senador é inconstitucional. Ele só tem um caminho, o lixo”, diz Sérgio Salomão Shecaira, atual presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). De acordo com a Constituição, ninguém pode ser submetido a tratamento desumano ou degradante. “O Brasil veta a punição corporal, mesmo com o consentimento do preso”, diz o advogado Wunderlich.

A pedofilia é um distúrbio incurável. Quando leva alguém a cometer um crime, a pessoa deve ser punida. Sobre isso não há dúvida. O debate que a ação do psiquiatra Danilo Baltieri inaugurou foi se há possibilidade de tratamento e se a sociedade brasileira está disposta a aceitá-lo.

 

Fonte: Revista ÉPOCA