Esta é uma questão de interesse à Saúde Pública e à Justiça Criminal. Está sendo proposta uma quantidade entre 25 e 60 gramas de maconha ou a posse de até seis plantas fêmeas como critério para distinguir “posse” de “tráfico”. Votação no STF está parada, mas retorna até novembro.
Resposta
Nesta penúltima semana do mês de agosto do ano de 2023, tem-se discutido, dentre outras pautas, a descriminalização do porte de uma quantidade ainda não totalmente delimitada de maconha para o uso pessoal. Propõe-se a fixação de um critério nacional, exclusivamente em relação à maconha, para diferenciar os usuários dos traficantes.
Na verdade, o artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) não pune com prisão o porte de drogas “para consumo próprio”, mas não define critérios objetivos para diferenciar consumo próprio de tráfico. Essa definição fica a cargo do sistema de persecução penal (Polícia, Ministério Público e Judiciário), que interpreta a norma de formas diversas
(https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=511645&ori=1)
O artigo 28 da referida Lei de Drogas determina que “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
(…)
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
O artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) não define qual é essa quantidade. Está sendo proposta uma quantidade entre 25 e 60 gramas de maconha ou a posse de até seis plantas fêmeas como critério para distinguir “posse” de “tráfico”.
Segundo reporta o site acima referido do STF, o porte de pequena quantidade de entorpecentes passou, em muitos casos, a ser qualificado como tráfico, tornando a punição mais dura e aumentando significativamente o número de presos por tráfico. Além disso, pessoas presas com a mesma quantidade de droga e em circunstâncias semelhantes podem ser consideradas usuárias ou traficantes, dependendo da etnia, de nível de instrução, renda, idade ou de onde ocorrer o fato”.
Essa quantidade de maconha (entre 25 e 60 gramas de maconha ou a posse de até 06 plantas fêmeas) foi baseada em um levantamento sobre o volume médio de apreensão de drogas no Estado de São Paulo, entre 2006 e 2017(STF).
De uma forma geral, embora amplamente utilizado nas discussões em política criminal quanto à maconha, o termo descriminalização correntemente tem permanecido algo confuso na arena internacional. O termo implica literalmente uma mudança na status criminal do porte de maconha; no entanto, numerosos países e jurisdições que são reconhecidos como tendo descriminalizado o porte da maconha, na verdade, apenas reduziram ou modificaram as penas associadas à posse de quantidades especificadas. Consequentemente, o termo despenalização da maconha tem evoluído no meio acadêmico como um termo mais preciso que reflete a diversidade nas políticas que existem entre os países.
A descriminalização, no entanto, continua sendo um termo comum usado em discussões e debates políticos.
Um país (ou jurisdição menor) que esteja interessado em reduzir o ônus da justiça criminal associado ao crime de posse de maconha poderia fazê-lo em uma de, pelo menos, duas formas: (1) mantendo o status criminal mas removendo qualquer pena de prisão imposta por esses crimes (despenalização) ou (2) eliminando o status criminal, o que também eliminaria a pena de prisão imposta com este delito (descriminalização).
Brasil adota a despenalização para o crime de posse
O Brasil tem adotado, desde 2006, o que, aqui, chamamos de despenalização para o crime de posse de maconha para uso pessoal (Artigo 28 da Lei de Drogas). Um dos “índícios de suspeita” para distinguir “posse” de “tráfico” de maconha é a quantidade encontrada desta droga com o investigado. No artigo 28 da Lei de Drogas, conforme descrito acima, não existe essa definição ainda.
Essa discussão não é prerrogativa do Brasil. Em vários territórios Australianos, por exemplo, precisamente naqueles que adotam o Cannabis Expiation Notice (CEN), a posse de até cem gramas de maconha, vinte gramas de resina de maconha ou equipamentos para consumir a maconha são todos tratados como crimes menores puníveis com pequenas multas (Bammer et al., 2002).
Maconha: Alemanha
Já na Alemanha, a depender dos Estados, a quantidade permitida varia entre 6 e 30 gramas de maconha. Esta variação entre os diferentes Estados é resultante das diferentes interpretações das disposições contidas tanto na Lei sobre Narcóticos (Betäubungsmittelgesetz), no Código de Processo Penal (Strafprozeßordnung) e na Lei dos Tribunais de Menores (Jugendgerichtsgesetz) que, sob certas condições, empoderam os promotores de Justiça e os tribunais a desconsiderarem processos criminais envolvendo crimes relacionados ao consumo e posse de drogas (Körner,1996).
Em Portugal, após a recomendação da Comissão para uma Estratégia Nacional sobre Drogas (CNDS) em 1998, a Assembleia da República e o Conselho de Ministros portugueses descriminalizaram a simples posse e o consumo de cannabis, juntamente com todas as outras drogas, em julho de 2001. Esta decisão baseou-se em uma ampla política de redução de danos que visa a reduzir os danos ao indivíduo usuário de drogas, bem como para a sociedade.
Um elemento central desta estratégia de redução de danos é a declaração de que os consumidores de drogas não devem ser expulsos da sociedade como criminosos, mas deveriam ser membros plenamente integrados da sociedade.
Se a polícia se depara com alguém usando ou portando maconha, os flagrados são convocados para comparecer perante um tribunal da cidade. Um comitê administrativo composto por três pessoas, dois médicos qualificados e um operador do Direito, decidirá sobre um curso de ação com base nas evidências do caso, incluindo a gravidade do crime, o tipo de droga utilizada, se o uso foi público ou privado, se a pessoa demonstra indícios de ser dependente química, se o uso tem sido ocasional ou habitual e quais as circunstâncias pessoais e sociais do usuário (van het Loo et al., 2002).
Maconha: Uruguai
Indo além, desde 2013, no Uruguai e em 10 jurisdições nos Estados Unidos e no Canadá, foram aprovadas leis que licenciam a produção e a venda de cannabis para adultos com fins não medicinais, ou seja, recreativos (Benedetti et al., 2021).
Como vimos, as quantidades permitidas variam de forma evidente entre diferentes países e dentro de cada país, o que leva à ideia da arbitrariedade na definição quanto à quantidade permitida e se, de fato, essa definição é embasada em qualquer pensamento científico.
Em particular, embora as mudanças nas políticas relativas à cannabis estejam mais amiúde voltadas aos adultos, muitos de nós médicos e profissionais da saúde estamos também preocupados como tais mudanças afetarão os adolescentes. Isso porque a cannabis é de longe a substância ilícita mais popular entre os jovens, que relatam acesso fácil à substância e que demonstram maior prevalência de uso de cannabis em comparação à população adulta (Laqueur et al., 2020).
Consumo de maconha se inicia na adolescência; indica estudos
Além disso, pesquisas mostram que a iniciação ao uso de cannabis normalmente ocorre na adolescência precoce e/ou tardia e que existe uma forte associação entre o primeiro uso precoce e a duração e a intensidade do consumo de cannabis durante a vida adulta, com uma variedade de resultados negativos à saúde associados.
Em geral, as políticas que regem as questões relacionadas com a cannabis são direcionadas principalmente aos adultos e alguns legisladores imaginam que elas não afetarão o consumo por adolescentes. Apesar disso, vários autores sugerem que estas mudanças, despenalizando significativas quantidades de maconha ou mesmo descriminalizando a posse, podem afetar indiretamente os adolescentes, modificando seu acesso à cannabis e contribuindo para moldar as normas sociais dentro de uma comunidade (Pudney et al, 2010).
Dentre as várias consequências negativas do uso da cannabis, vou abordar apenas um deles, dado o espaço e objetivo desta coluna.
O uso de maconha entre adolescentes e adultos jovens pode disparar o surgimento de sintomas psicóticos, semelhantes a quadros esquizofrênicos (Kuepper et al., 2013). O uso continuado da droga pode, de fato, aumentar o risco da instalação de transtornos psicóticos persistentes.
Fumar maconha pode ser bastante nocivo à saúde mental
Pessoas jovens devem saber que fumar maconha pode ser bastante nocivo para a sua saúde mental (e, também, física), ao contrário do que muitos dos próprios adolescentes e adultos jovens (e, às vezes, não tão jovens) pensam.
Jovens com menos de 16 anos que iniciam o consumo de maconha (na forma fumada) parecem ter um risco maior para problemas comportamentais futuros. Essa fração da população jovem que fuma maconha frequentemente tende a manter o consumo por tempo mais prolongado.
Vários estudos prévios já tinham reportado o maior risco de sintomas psicóticos entre usuários da droga. Um importante estudo no British Medical Journal (Kuepper et a., 2011) demonstra que, em uma percentagem não negligenciável, o consumo de maconha precede o surgimento de quadros psicóticos.
Nesse estudo, durante 10 anos, os pesquisadores acompanharam 1923 indivíduos da população geral da Alemanha, entre 14 e 24 anos de idade, sem história prévia de quadros psicóticos ou mesmo uso de maconha. Aqueles que iniciaram o consumo de maconha durante o estudo apresentaram risco cerca de duas vezes maior de apresentar sintomas psicóticos do que aqueles que permaneceram livres da maconha. Esse fato foi mantido, mesmo após os pesquisadores controlarem os efeitos de outras variáveis que podiam confundir os resultados, como idade, gênero, nível social, consumo de outras substâncias e outros problemas e transtornos psiquiátricos.
A taxa de incidência de sintomas psicóticos entre usuários de maconha foi de 30% contra 20% entre não usuários, considerando o período desde o início do estudo até 3,5 anos depois. Já no período entre 3,5 anos do início do estudo até 8,4 anos após, a taxa de incidência de sintomas psicóticos entre usuários de maconha foi de 14% contra 8%, respectivamente.
É importante destacar que os usuários de maconha que apresentaram sintomas psicóticos e mesmo assim mantiveram o consumo da droga tiveram maior chance de persistência desses sintomas do que aqueles usuários que deixaram de fumar depois do surgimento dos ditos sintomas.
Consumo de maconha e sintomas psicóticos
Esses resultados indicam que o consumo de maconha aumenta o risco do surgimento de sintomas psicóticos e que a manutenção do uso possibilita a manutenção desses sintomas. Na minha prática clínica já presenciei alguns exemplos desses sintomas:
– indivíduo usuário de maconha passa a acreditar que está sendo perseguido pelo exército e, devido a essa crença, passa a vigiar a sua vizinhança. Todo movimento dos vizinhos pode ser motivo para recrudescer a desconfiança.
– indivíduo usuário de maconha vai a um show de música e acredita que o músico no palco enviou uma mensagem para ele através do olhar. O usuário corre para a sua casa, bastante agitado, e diz para a sua mãe que algumas pessoas têm muito poder sobre a sua vida. Como sua mãe percebe um comportamento não usual, fica bastante preocupada e tenta acalmar seu filho sem muito sucesso.
Os autores do estudo explanam que o link entre consumo de maconha e sintomas psicóticos é biologicamente defensável, já que um outro estudo demonstrou que o uso intravenoso de tetrahidrocanabinol (o princípio básico da maconha) provocou tanto sintomas psicóticos ditos positivos (delírios, alucinações, agitação psicomotora) quanto sintomas psicóticos ditos negativos (embotamento afetivo, apatia, abulia) e de maneira dose-dependente tanto entre pessoas normais quanto entre portadoras da doença esquizofrenia.
O desafio do estudo, segundo os pesquisadores, é convencer os jovens sobre esses riscos, diminuindo a incidência de novos usuários.
O nosso desafio é outro: Convencer o mundo de que, talvez, estamos em um caminho algo equivocado e pernicioso.
A decisão está conosco. Todos somos responsáveis.
Referências: Bammer, G., Hall, W.D., Hamilton, M. and Ali, R. (2002). Harm minimization in a prohibition context: Australia. Annals of the American Academy of Political and Social Sciences, 58, 80-93. Benedetti, E., Resce, G., Brunori, P., Molinaro, S. (2021). Cannabis Policy Changes and Adolescent Cannabis Use: Evidence from Europe. International Journal of Environmental Research and Public Health, 18, n. 10. Körner, H. (1996). Die Entpoenalisierung und die Entkriminalisierung von Cannabiskonsumenten mit geringen Cannabismengen zum Eigenkonsum. Deutsche Vereinigung für Jugendgerichte und Jugendgerichtshilfen, 3: 232-241. Kuepper, R., van OS, J., Lieb, R., Wittchen, H.U. et al. (2011). Continued cannabis use and risk of incidence and persistence of psychotic symptoms: 10 year follow-up cohort study. British Medical Journal, 342, p. d738. Kuepper, R., van winkel, R., Henquet, C. (2013). [Cannabis use and the risk of psychotic disorders. An update]. Tijdschrift voor Psychiatrie, 55, n. 11, p. 867-872. Laqueur, H., Rivera-Aguirre, A., Shev, A., Castillo-Carniglia, A., Rudolph, K., Ramirez, J., Martins, S., Cerda, M. (2020). The impact of cannabis legalization in Uruguay on adolescent cannabis use. International Journal of Drug Policy, 80, 102748. Pudney, S., Adda, J., Boone, J. (2010). Drugs policy: What should we do about cannabis? Economic Policy, 25, 165–211. van het Loo, M., van Beusekom, I. and Kahan, J.P. (2002). Decriminalization of drug use in Portugal: The development of a policy. Annals of the American Academy of Political and Social Science, 582, 49-63.
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Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.