A prevalência de fumantes de tabaco entre dependentes de cocaína e crack ultrapassa os 75%
E-mail enviado por leitora
“Sou codependente, leio muito e estudo tudo sobre dependência química para ajudar meu marido. Perdi alguma lutas, mas não a guerra, estou tendo dificuldades com meu marido, pois ele voltou a fumar cigarro. Ele era usuário de crack, está limpo; porém, ainda não totalmente recuperado. Ele diz que o cigarro não é nada, mas eu vejo como uma adição que surgiu para substituir a outra. Como lido com a situação? Não quero gerar conflitos, mas quero ser sábia em argumentos e atitudes para ajudá-lo. Ele tem muita dificuldade em abrir a mente e é muito autossuficiente para recorrer a ajudas.”
Resposta
A associação do uso de tabaco com o consumo de cocaína/crack tem sido bem estabelecida em estudos clínicos. Em estudos experimentais (com ratos já preparados), a exposição à nicotina antes mesmo do uso da cocaína/crack aumenta os comportamentos de busca pela cocaína/crack e resulta em mudanças sinápticas em certas regiões cerebrais, como as amígdalas e outras estruturas relacionadas com o circuito de recompensa. Na mesma linha, tem sido verificado, em estudos laboratoriais, que macacos expostos à nicotina antes da substância cocaína, consomem mais intensamente a segunda droga do que aqueles não expostos. Outrossim, a administração concomitante do tabaco com a cocaína resulta em um mais intenso consumo de ambas as substâncias.
Uso de cocaína e crack pode disparar fissura por cigarro
De uma outra forma, o uso de cocaína/crack pode disparar a fissura pelo uso de cigarros. Alguns estudos têm mostrado que uma substância experimental que bloqueia a atividade da nicotina no cérebro, conhecida como mecamilamina, reduz a fissura pela cocaína entre usuários de ambas as drogas.
Clinicamente, as taxas da dependência de cocaína/crack são significativamente maiores entre aqueles que iniciaram o uso desta droga após já terem consumido cigarros, quando comparadas com as taxas daqueles que primeiramente iniciaram o uso da cocaína e, depois, de cigarros.
A prevalência de fumantes de tabaco entre dependentes de cocaína/crack ultrapassa os 75%, e o consumo de cigarros está associado com quadros mais graves da dependência de cocaína, incluindo mais frequente consumo de cocaína/crack, maior risco de uso de drogas injetáveis, mais problemas legais, sociais e pessoais. Infelizmente, o status de ser fumante pode ser um notável fator de risco para a experimentação de outras substâncias psicoativas.
Usuários de cocaína, que fumam concomitantemente cigarros, acabam por fumar muito mais do que se não estivessem usando cocaína.
Tendo em vista o estreito relacionamento entre o consumo de cigarros com o consumo de cocaína/crack, cessar o consumo de cigarros está relacionado com um maior sucesso na interrupção ou redução de recaídas entre usuários de cocaína/crack.
Interromper consumo de cigarro facilita a parada do consumo de cocaína e crack; indica estudo
Alguns estudos têm revelado que, para pacientes que fumam cigarros e utilizam cocaína/crack, a interrupção do consumo de cigarros facilita a parada do consumo da cocaína/crack. Portanto, um tratamento conjunto para ambos os problemas (consumo de nicotina e de cocaína/crack) pode ser imperativo.
Podemos afirmar, portanto:
a) fumantes que usam cocaína fumam mais;
b) fumantes que usam cocaína têm mais problemas com o uso de cocaína;
c) o tratamento adequado para o tabagismo contribui significativamente para o sucesso na interrupção do consumo de cocaína/crack e na redução de recaídas.
As duas substâncias agem sobre o sistema de recompensa cerebral, o que promove um redundante processo de fissura por ambas. Entretanto, até o presente momento, não há medicações comprovadamente eficazes para o tratamento da síndrome de dependência de cocaína/crack. Ao contrário, existem várias fórmulas terapêuticas (farmacológicas) comprovadamente eficazes e seguras para o tratamento da síndrome de dependência de nicotina. Dito isso, um conduta médica enfatizando a parada do consumo de cigarros tanto para a população geral quanto para aqueles que abusam de cocaína/crack tem sido altamente recomendável. Na verdade, suspender o uso de cigarros que pode sustentar e fomentar os efeitos cerebrais da cocaína/crack deve ser levado seriamente em consideração durante as abordagens médicas especializadas.
Não há qualquer razão para apoiar o uso de nicotina com uma forma de “substituição” para o uso de cocaína
Como lemos no texto corrente, o consumo de nicotina pode, inclusive, facilitar recaídas por cocaína/crack.
Além disso, fumar cigarros de nicotina explica cerca de 443 mil mortes anualmente nos Estados Unidos da América. Sendo assim, a disponibilização dos tratamentos farmacológicos específicos para os dependentes de nicotina terá significativo impacto sobre a saúde pública e sobre o próprio consumo de cocaína/crack.
O seu esposo parece afirmar que “cigarro não é nada”. Infelizmente, parece-me que a negação dos efeitos deletérios do consumo de tabaco fragilizará a presumida atual manutenção da abstinência do crack.
Ele precisa entender e aceitar o relacionamento entre as substâncias e procurar tratamento médico eficaz para auxiliá-lo a abster-se do tabaco (e, claro, do próprio crack). Sabemos que a negação faz parte de vários problemas médicos. No entanto, tendo em vista a história de várias lutas contra o crack travadas por vocês, está mais do que na hora de interromper o consumo do tabaco evitando, assim, outras novas batalhas.
Advirta-o!!!
Atenção! Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.