Tratamento deve ser realizado com medicações específicas
E-mail enviado por uma leitora
“Sou aluno de psicologia e envio este e-mail para pedir informações sobre esquizofrenia e dependência de cocaína. Tem cura?”
Resposta
As causas exatas da doença médica conhecida como Esquizofrenia são ainda elusivas, embora seguramente múltiplas vias para a sua causalidade existam.
Uma combinação de fatores genéticos, neurobiológicos, psicológicos e ambientais pode tornar pessoas mais vulneráveis ao surgimento do problema.
A Esquizofrenia tende a surgir entre indivíduos com história familiar da doença. Todavia, nenhum gene individual é responsável direto pelo problema; provavelmente, uma combinação de diferentes genes seja responsável por tornar pessoas vulneráveis. Também, múltiplos estudos têm revelado que existem diferenças em estrutura e funcionamento cerebral, além de alterações na distribuição e número de células neuronais, entre cérebros de portadores dessa doença quando comparado a cérebros de não portadores. Outrossim, alterações de neurotransmissão cerebral e de resposta aos neurotransmissores têm sido amplamente registradas nessa doença. Menos estudos têm também registrado que problemas durante a gestação, como diabetes, pré-eclampsia, infecções poderiam colaborar para o surgimento do problema. Trata-se de uma doença crônica que necessita de tratamento continuado.
As drogas não diretamente causam a doença Esquizofrenia. No entanto, elas podem desencadear o problema. Certas drogas, como a maconha, cocaína, LSD e anfetaminoides são mais frequentemente registradas como potentes desencadeadores da doença entre indivíduos suscetíveis. Há crescente evidência científica dessa associação entre usuários precoces de maconha.
Além de poder, então, desencadear a doença Esquizofrenia entre indivíduos suscetíveis, a cocaína e outras substâncias podem induzir quadros psicóticos que em muitos aspectos lembram um quadro esquizofrênico. Os indivíduos podem apresentar pensamentos delirantes, alucinações, alterações do comportamento, inquietação psicomotora. No entanto, esses quadros, apesar de semelhantes ao de um surto esquizofrênico, não correspondem exatamente à Esquizofrenia. De fato, estudo tem revelado que altas doses de anfetaminas podem induzir psicose entre voluntários saudáveis. Usuários recreativos de estimulantes têm revelado altas taxas de sintomas psicóticos transitórios, os quais estão relacionados com a dose e a frequência do consumo. A diferenciação é importante e deve ser realizada por médicos especialistas na matéria. Muitas vezes, o principal diferenciador é o tempo de permanência dos sintomas psicóticos na ausência do consumo de cocaína e de outras drogas.
Sintomas psicóticos são uma das complicações mais comuns entre usuários de cocaína. Apesar disso, a prevalência de sintomas psicóticos entre usuários de cocaína tem variado entre diferentes estudos. A prevalência dos sintomas psicóticos tem sido registrada em 7% entre usuários que não buscam tratamento e 12% em dependentes hospitalizados.
A grosso modo, a cocaína atua no Sistema Nervoso Central, provocando liberação intensa e desenfreada de várias substâncias, dentre elas a dopamina. Isso parece ser fundamental, mas não a única causa dos sintomas psicóticos induzidos. As liberações dopaminérgicas e glutamatérgicas seriam responsáveis pelos sintomas de alucinações e delírios, e a subsequente exaustão do sistema dopaminérgico poderia ser responsável pelos sintomas de apatia e negativismo. Uma desregulação dos sistemas de neurotransmissão cerebral, bem como uma sensibilização dos receptores cerebrais para substâncias endógenas (que tem origem no interior do organismo) também contribuem para os sintomas induzidos.
As características dos sintomas psicóticos induzidos pelo uso da cocaína são bastante similares entre diferentes indivíduos. Inicialmente, existe um período em que o indivíduo parece desconfiado, ansioso, com comportamentos repetitivos. Depois, o indivíduo acredita que existem pessoas o observando (por exemplo, agentes da polícia) ou mesmo que pessoas desejam furtar sua droga. Alucinações também são comuns.
Mais da metade daqueles que apresentam sintomas psicóticos dizem ouvir coisas (por exemplo, passos de alguém atrás dele); menos comumente, existem as alucinações visuais (por exemplo, que existem espiões na janela do quarto). Alguns indivíduos descrevem alucinações cinestésicas (por exemplo, sentem a pele infestada por parasitas ou formigas).
Aqueles que consomem cocaína em idade precoce (entre 17 e 20 anos, ou menos) parecem ser mais vulneráveis ao surgimento de sintomas induzidos bem como ao desencadeamento de uma psicose endógena. Outros fatores de risco têm sido estudados, como vistos na tabela 1.
Tabela 1. Fatores de risco para psicose induzida entre usuários de cocaína
Fatores de risco com maior consenso na literatura
- Idade precoce
- Dose da droga
- Vulnerabilidade genética
- Via de uso
- Associação com maconha
Fatores de risco com menor consenso na literatura
- Idade atual e duração do consumo
- Menor índice de massa corporal
- Coexistência de transtorno de personalidade
De qualquer forma, os quadros psicóticos, sejam eles propriamente esquizofrênicos ou não esquizofrênicos, merecem atenção intensiva dos profissionais da saúde. São quadros de alto risco para o indivíduo e, às vezes, para terceiros.
O tratamento deve ser realizado com medicações específicas (antipsicóticos) e o paciente deve ser rigorosamente monitorado. Internação em clínicas especializadas (sempre com recursos médicos adequados) pode ser necessária.
Referência: Roncero, C., et al., Prevalence and risk factors of psychotic symptoms in cocaine-dependent patients. Actas Esp Psiquiatr, 2012. 40(4): p. 187-97.
Médico psiquiatra. Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Atualmente é Professor Assistente da Faculdade de Medicina do ABC, Coordenador do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FMABC, Pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria da FMUSP (GREA-IPQ-HCFMUSP) e Coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex). Tem experiência em Psiquiatria Geral, com ênfase nas áreas de Dependências Químicas e Transtornos da Sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Tratamento Farmacológico das Dependências Químicas, Alcoolismo, Clínica Forense e Transtornos da Sexualidade.